
A obra insiste na coletividade como gesto político. Para você, de que forma dançar em conjunto opera como estratégia de sobrevivência?
Dançar em conjunto é afirmar que o encontro ainda importa. Num tempo marcado por fragmentação e hiperindividualismo, a convivência é uma escolha radical. Trabalhar a coletividade como gesto político é insistir que só nos movemos porque não estamos sós . O que se cria junto somente existe porque há disposição para o dissenso e para o cuidado. Essa dança insiste em produzir comunidade quando quase tudo convida à dispersão. No entanto, essa convivência em conjunto a que me refiro, no meu caso, só tem sido possível porque existe uma lei de fomento à dança para a cidade de São Paulo. Ela permite que trabalhos continuados possam existir. Sem ela, a precariedade da dança que fazemos se acentua, e o movimento mira o sustento individual, porque as contas de alguém não são pagas coletivamente. A gente vive em um país que vibra arte e cultura, mas a gente também vive sabendo que, nesse país, quando se muda uma gestão, o investimento em cultura pode desabar, ou mesmo deixar de existir.
Trabalhar a coletividade como gesto político é insistir que só nos movemos porque não estamos sós

As fronteiras entre corpo, som e palavra se embaralham numa dramaturgia estruturada, mas aberta ao risco. Qual o papel do improviso e da presença na obra?
A estrutura da obra é formada por roteiros simultâneos: para a trilha sonora – toda criada e executada ao vivo pelo elenco –, para os corpos em movimento e para os figurinos que se transformam em cena. Mas tudo isso é orientado por uma atenção fina do presente. O improviso não é ausência de estrutura, mas justamente a habilidade de dançar em sintonia com o que emerge. Há muito estudo neste sentido. Apesar disso, não se trata de uma peça inteiramente improvisada. Criamos um roteiro formado por arranjos que selecionamos durante o processo. Esses arranjos também orientam o conjunto temporalmente durante a experiência. Gosto de pensar em artistas como BJs (Body Jockeys), em referência ao texto de Helena Katz, que aproxima o gesto do dançarino ao do DJ – aquele que seleciona, mixa, cria conceito e contexto. Presença, para mim, é uma qualidade regulada pela habilidade de modular tônus e imaginação simultaneamente. Quando passamos a considerar o fora e o outro, da mesma forma que consideramos a nós mesmos. O que está em jogo é uma fricção constante entre rigor e ousadia.
Como você enxerga o papel da dança na sociedade atual e o que ela pode mobilizar ou revelar sobre nossos tempos?
Não consigo pensar em dança no singular. Para mim, não existe uma dança – são muitas. A que pratico é uma forma de pensamento, um modo de produzir mundos com o corpo. Num tempo em que tudo é acelerado, utilitário e descartável, busco oferecer outras experiências de tempo e atenção para perceber e conversar com os mundos ao redor. Acredito que qualquer dança possa revelar tensões do presente, mas também abrir fendas de imaginação e sensibilidade. Elas nos lembram que somos corpo, que somos muitos, que estamos aqui. No entanto, tenho percebido que já não são mais elas que movem o tempo, e sim o tempo, com suas pautas e imperativos, que tem movido – e moldado – as danças que ganham palco e atenção.

A obra, dirigida por Cristian Duarte, propõe uma experiência sensível de convivência radical, em que sons, gestos e palavras são acionados ao vivo, compondo e descompondo sentidos. Nove artistas de formações e repertórios diversos criam esta dança, que faz do encontro um campo instável e vivo de produção de presenças, articuladas em uma dramaturgia estruturada, mas aberta ao risco e à vitalidade da improvisação cênica. A singularidade de cada performer se inscreve na cena como matéria e método, acionando um organismo coletivo que pulsa entre o caos e a escuta. A convivência é tratada não como harmonia, mas como atrito capaz de reinventar modos de estar junto em tempos de fragmentação. O trabalho apresenta uma experiência labiríntica em que as fronteiras entre corpo, som e palavra se embaralham. E o que se cria ali – no entre – só é possível porque não se está só.
The work insists on collectivity as a political gesture. For you, in what way does dancing together operate as a survival strategy?
Dancing together is to affirm that the encounter still matters. In a time marked by fragmentation and hyper-individualism, coexistence is a radical choice. Working on collectivity as a political gesture means insisting that we only move because we are not alone. What is created together exists only because there is a willingness for both dissent and care. This dance insists on producing community when almost everything invites dispersion. However, this shared coexistence, in my case, has only been possible because there is a public dance funding program in the city of São Paulo. It allows ongoing work to exist. Without it, the precariousness of the dance we make would worsen, and movement would aim for individual survival, because someone’s bills are not paid collectively. We live in a country that vibrates with art and culture, but we also live knowing that, here, when administrations change, cultural investment can collapse — or even cease to exist.
Working on collectivity as a political gesture means insisting that we only move because we are not alone

The boundaries between body, sound, and word blur in a dramaturgy that is structured yet open to risk. What role do improvisation and presence play in the work?
The structure of the work is formed by simultaneous scores: for the soundtrack — entirely created and performed live by the cast — scores forthe moving bodies, and for costumes that transform on stage. But all of this is guided by a fine attention to the present. Improvisation is not the absence of structure, but the skill of dancing in tune with what emerges. There is extensive study in this regard. Still, it is not an entirely improvised piece. We created a score composed of arrangements we selected during the process. These arrangements also guide the ensemble’s timing throughout the experience. I like to think of the artists as BJs (Body Jockeys), in reference to Helena Katz’s text, which likens the dancer’s gesture to that of the DJ — one who selects, mixes, creates concept and context. Presence, to me, is a quality regulated by the ability to modulate tone and imagination simultaneously. When we begin to consider the outside and the other in the same way we consider ourselves. What is at stake is a constant friction between rigor and boldness.
How do you see the role of dance in today’s society, and what can it mobilize or reveal about our times?
I cannot think of dance in the singular. To me, there is no such thing as one dance — there are many. The one I practice is a form of thought, a way of producing worlds through the body. In a time when everything is accelerated, utilitarian, and disposable, I seek to offer other experiences of time and attention to perceive and converse with the worlds around us. I believe any dance can reveal the tensions of the present, but also open cracks for imagination and sensitivity. They remind us that we are bodies, that we are many, that we are here. However, I have noticed that it is no longer dance that moves time — rather, it is time, with its agendas and imperatives, that has moved and shaped the dances that reach the stage and the spotlight.
Directed by Cristian Duarte, the work offers a sensorial experience of radical coexistence, in which sounds, gestures, and words are activated live, composing and decomposing meanings. Nine artists from diverse backgrounds and repertoires come together to create a dance that turns the encounter into an unstable, living field for producing presences, articulated in a structured dramaturgy yet open to the risk and vitality of scenic improvisation. The singularity of each performer is inscribed in the scene as both material and method, activating a collective organism that pulses between chaos and attentiveness. Coexistence is treated not as harmony, but as friction capable of reinventing ways of being together in times of fragmentation. What is created there — in the in-between — is only possible because one is not alone.
Confira a entrevista com com DJ Michell.
Utilizamos cookies essenciais para personalizar e aprimorar sua experiência neste site. Ao continuar navegando você concorda com estas condições, detalhadas na nossa Política de Cookies de acordo com a nossa Política de Privacidade.