
Quintal propõe uma experiência baseada no improviso e no imprevisível. Como foi construir o jogo entre dança, teatro e música?
O espetáculo vem das nossas experiências como crianças em quintais e famílias. Então, o jogo se faz a partir da necessidade de brincar, de apenas usar os elementos que estão no entorno. E como transformar isso em um lugar de abstração, para pensar o mundo? Em vez de traçar temas e improvisações, o que a gente fez foi treinar o jogo. É como as crianças constroem suas brincadeiras. Estávamos imbuídos desse brincar. Fazemos cada vez mais um exercício de ampliar a nossa capacidade de percepção. Que informações o som nos traz, que jogo nos propõe? Como é que isso afeta o vento, o chão, os objetos no espaço? Para nós, povo preto, não é uma estética, é uma sobrevivência. Quando você é abordado pela polícia, tem que ter uma presença, porque nosso jogo é de vida e morte. Então, como você sobrevive nesse jogo? É aguçando os sentidos, aprendendo a inverter a relação. É isso que a gente traz para essa experiência, essa atenção. Não é um corpo que improvisa, mas um corpo que tem presença.
Como você sobrevive nesse jogo? É aguçando os sentidos. Não é um corpo que improvisa, mas um corpo que tem presença.

De que forma o pensamento negrodiaspórico do trio de criadores ecoa no trabalho e na forma como os corpos se relacionam com o tempo, o espaço e entre si?
Quando a gente fala de pensamento negrodiaspórico, muitas vezes se esquece da diáspora que acontece dentro deste país de porte continental. Pensando em Brasil, é importante demarcar tantas vertentes culturais e formas de sentir o mundo. No caso do espetáculo, a gente traz não só as culturas afrodiaspóricas, mas a cultura do brincar. Que dialogam muito entre si, porque têm a mesma base epistemológica. A nossa relação com o tempo, com o brincar na cultura da infância e o vadiar na cultura afrodiaspórica. Trabalhar juntos [três artistas de idades distintas] é entender que não estamos no Cronos, no tempo do relógio, mas em um espiralar. A gente pode se encontrar em Exu, na encruzilhada. O nosso exercício foi criar esse tempo largo, e esse tempo espiralar de uma repetição, um looping, que vai nos envolvendo. A gente não tinha algo com começo, meio e fim. A gente estava no começo, meio e começo. E esse tempo do looping é aquele tempo do redemoinho que vai nos envolvendo, envolvendo o espaço.
Como você enxerga o papel da dança na sociedade atual e o que ela pode mobilizar ou revelar sobre nossos tempos?
A dança hoje é uma grande potência para entender construções de conhecimento. Pensando na dança como uma expressão de seres humanos, é um jeito ancestral de conservação, de luta de espécies. E hoje, no mercado neoliberal, uma forma de discutir humanismo. Para a dança contemporânea, é importante que a gente preta não divida o que é dança, o que é teatro, o que é música. Porque senão nós estaríamos discutindo sobre o sexo dos anjos. Nós somos pessoas contemporâneas, construindo epistemologias negras.
Artistas brasileiros crescidos da diáspora africana, Gil Amâncio, Luiz de Abreu e Altemar Di Monteiro apresentam um jogo poético, uma partilha de intuições negras em que dança, música e teatro se embaralham sem hierarquias. Nesse jogo de improviso, o conceito de “quintal” ultrapassa a metáfora do espaço onde se brinca, descreve também um lugar onde o tempo dobra em si mesmo, onde a vadiagem pode entrar, onde algo pode acontecer. Os criadores-performers formam um trio de corpos que entram em confluência e investigam como jogar com o mundo sem depender, exclusivamente, dos sentidos da visão. Eles ecoam o pensador quilombola Nêgo Bispo, percorrendo tempos e espaços que vivem antes, durante e além de nós. Encontram-se numa dinâmica entre tempos e memórias que desafia a lógica cronológica e propõe outros modos de relação.
Quintal proposes an experience based on improvisation and the unpredictable. How was it to build the interplay between dance, theater, and music?
The show comes from our experiences as children in patios and families. So, the interplay is based on the need to play, to just use the elements that are around us. And how can we turn this into a place of abstraction, to think about the world? Instead of outlining topics and improvisations, what we did was practice the game. This is how children build their games. We were imbued with this playfulness. We increasingly exercise our ability to perceive. What information does sound bring us, what play does it propose? How does this affect the wind, the ground, the objects in space? For us, Black people, it’s not an aesthetic — it’s survival. When you are approached by the police, you have to have a presence, because our game is one of life and death. So how do you survive in this game? By sharpening your senses, learning to turn this relationship around. This is what we bring to this experience, this awareness. It is not a body that improvises, but a body that has presence.
How do you survive in this game? By sharpening your senses. It is not a body that improvises, but a body that has presence.
How does the trio of creators’ Black diasporic thought echo in your work and in your bodies’ relationship with time, space, and each other?
When we talk about Black diasporic thought, we often forget about the diaspora that exists in this continent-sized country. When we think about Brazil, it is important to highlight the many cultural strands and ways of experiencing the world. In the case of the show, we bring in not only African diasporic cultures, but also the culture of play. They converse a lot because they have the same epistemological basis. Our relationship with time, with play in childhood culture, and with loitering in African diasporic culture. Working together — three artists of different ages — means understanding that we are not in Chronos, in clock time, but in a spiral. We can find ourselves in Eshu, at the crossroads. Our exercise was to create this long time, and this spiraling time of repetition, a looping that envelops us. We didn’t have something with a beginning, middle, and end. We were at the beginning, middle, and beginning. And this looping time is that time of the whirlwind that envelops us, enveloping the space.
How do you see the role of dance in today’s society and what can it mobilize or reveal about our times?
Dance today is a great power for understanding the construction of knowledge. Thinking of dance as an expression of human beings, it is an ancestral form of conservation, of the struggle for existence. And today, in the neoliberal market, it is a way of discussing humanism. For contemporary dance, it is important that Black people do not separate dance from theater or music. Otherwise, we would be counting how many angels can dance on the head of a pin. We are contemporary people, building Black epistemologies.
Gil Amâncio, Luiz de Abreu, and Altemar Di Monteiro are Brazilian artists raised in the African diaspora presenting a poetic play, sharing Black intuitions in which dance, music, and theater are combined with no hierarchy. In this improvisational play, the concept of “quintal” (patio) goes beyond the metaphor of a place to play, describing a place where time folds in on itself, where loitering can come in, where something can happen. The creators-performers make up a trio of bodies that come together and investigate how to play with the world without relying exclusively on the senses of sight. They echo the Quilombola thinker Nêgo Bispo, traveling through times and spaces that live before, during, and beyond us. They find themselves in a dynamic between times and memories that challenges chronological logic and proposes other forms of relationship.
Utilizamos cookies essenciais para personalizar e aprimorar sua experiência neste site. Ao continuar navegando você concorda com estas condições, detalhadas na nossa Política de Cookies de acordo com a nossa Política de Privacidade.