
Paraisópolis transborda vida.
Nas ruas, nos comércios abertos, nas crianças que brincam. Transborda vida nos muros coloridos, no som que sai das casas e bares, nos passos apressados de quem constrói diariamente São Paulo. Seus mais de 58 mil habitantes carregam essa força: trabalhadores, acadêmicos, poetas, artistas. Um território popular, criativo, que respira cultura em cada esquina.
É nesse cenário que, todos os dias, cerca de duzentos jovens e crianças chegam a Rua Major José Marioto Ferreira com um mesmo objetivo: realizar um sonho. Ali está o Ballet Paraisópolis, uma companhia de dança nascida e feita por quem vive Paraisópolis.
Ao cruzar o portão, surge uma escola com a mesma vida que está na comunidade: nas paredes, a arte de Mena e Kobra, um quadro com a assinatura de Ana Botafogo, troféus e prêmios que contam histórias de conquistas e de incentivo social. Mas o que mais salta aos olhos é a presença de funcionários que colocam paixão em cada gesto e dão sentido a tudo o que ali acontece.






À frente dessa história está Monica Tarragó, 60 anos, um dos nomes mais importantes da dança no Brasil. Fundadora e diretora do projeto que nasceu em 2012, ela transformou um sonho individual em um movimento coletivo capaz de revolucionar a forma de pensar a dança em territórios periféricos.
A relação de Monica com a arte começou cedo. Aos quatro anos, já frequentava aulas de balé clássico pelo método Royal Ballet. “Foi assim que tudo começou e eu fiquei alguns anos com a Carla Perotti. Depois fui para a ginástica olímpica, depois voltei. Aí eu comecei com a Penha de Souza fazendo Martha Graham”, relembra. A formação seguiu com nomes como Jane Plaut e Ismael Gizer, até experiências internacionais que ampliaram ainda mais sua visão, em Turim, na Itália, deu aulas e acompanhou companhias profissionais e na Rússia mergulhou em uma temporada intensa de estudos.

Com bagagem de formação nacional e internacional, Monica levou a paixão pela dança para a sala de aula. Ela que sempre foi vizinha de Paraisópolis encontrou ali no território a sua grande missão. “Comecei em Interlagos com setenta alunos e depois me estabeleci aqui. No início eram cem crianças na União dos Moradores, e logo já estávamos com duzentos. Realizamos exames de seleção duas vezes por ano com mais de mil a dois mil candidatos”.
O Ballet Paraisópolis cresceu, se estruturou e hoje é mais que uma escola: é uma companhia profissional reconhecida nacional e internacionalmente. O caminho, no entanto, não foi simples. “O maior obstáculo foi mostrar para patrocinadores e para as próprias famílias que dança é profissão. Muitos pais não aceitavam. Fizemos inúmeras reuniões até que percebessem que seus filhos podiam, sim, ter uma carreira”, conta.
O projeto se diferencia pela excelência da formação e pelo olhar inclusivo. Ali, corpos diversos encontram espaço, assim como alunos em cadeiras de rodas e pessoas autistas. A estrutura também impressiona: professores especializados, psicólogos, fisioterapeutas, estilistas e parceria com uma universidade que oferece bolsas de estudo. Mais que técnica, o que sustenta o projeto é a paixão. “É um projeto de amor. Todos aqui trabalham com amor. Quando você entra no Ballet Paraisópolis, sente isso na atmosfera.”




Nos dias 5 e 6 de setembro de 2025, o Sesc Santana recebeu a Cia. Ballet Paraisópolis para duas apresentações especiais de Vórtex e Véspera, criações do coreógrafo Christian Casarin. Se em Véspera predominam a leveza e o desenho dos movimentos, em Vórtex a energia é intensa e densa. Monica define como “obras de potência, técnica, virtuosidade e contemporaneidade… essa diferença faz a noite mágica”.

Confira nosso bate-papo com Monica Tarragó, a educadora que uniu formação clássica e compromisso social para erguer, junto aos jovens, um espaço de criação e pertencimento:
Qual seu primeiro contato com a dança?
Eu tenho 60 anos. Meu primeiro contato com a dança foi aos 4 anos, com a Carla Perotti, com o método Royal Ballet. Foi assim que tudo começou e eu fiquei alguns anos com a Carla. Depois eu fui para a ginástica olímpica, depois eu voltei. Aí eu comecei com a Penha de Souza fazendo Martha Graham. Depois, nesse meio do caminho, eu estudei com Jane Plaut, depois eu fazia aula com Ismael Gizer, então eu migrei para várias escolas, fazendo aulas por várias técnicas. Até que eu voltei para Itália para encontrar a Carla Perotti, mas lá eu já estava basicamente profissional. Então eu fazia aula com a companhia profissional que existia dentro do Teatro Nuovo de Turim. Eu ministrava aulas de ballet. Na época se chamava moderno também. E eu entrei no grupo Arcobaleno, que é um grupo contemporâneo, e de lá pra frente participei de alguns grupos, mas eu comecei a ministrar aulas já aos 17 anos, que eu amo dar, amo. E aí? É isso. Eu estou até hoje. Hoje em dia, pouco eu consigo entrar em sala de aula, mas eu amo ministrar aulas e tenho 200 pequenas aqui mais a companhia.
E essa influência da dança, de onde surgiu essa paixão pela dança?
Ela nasce com você, porque eu tive algumas tentativas assim de eu que eu estudei numa escola que tinha uma parte esportiva muito boa. Então lá eu fiz várias tentativas, mas eu acabava indo para teatro e eu acabava indo para orquestra. Tudo o que tinha na escola, na parte artística, eu comecei a me interessar, mas não tinha dança naquela época. E aí é isso, não é? Nasce com você. E é isso, né?
Na sua família tem mais bailarinas ou só você migrou para a dança?
A minha família é superinteressante porque a minha mãe tem 12 irmãos, todas as mulheres queriam dançar balé, mas foram proibidas porque a dança não era bem aceita. Então todas foram pianistas. Todas se formaram em piano, mas elas amavam balé, e toda vez que Monica ia se apresentar e fazer aula, elas acompanharam de perto a minha carreira. Enfim, unificaram e amam a dança. Amavam, né? Porque já se foram. Mas é isso. É nato, gente, porque eu não tenho como explicar isso.
E qual a sua relação com o bairro do Paraisópolis e como surgiu o Ballet Paraisópolis?
Eu sou vizinha de Paraisópolis e aí eu comecei a ter um incômodo em ministrar aulas antes, porque eu queria que o ensino fosse levado a sério e que, de fato, os alunos tivessem informação. Então, primeiro eu fui pro Jardim Cristal, em Interlagos, e lá eu criei uma turma de 70 alunos. Eu comecei o projeto ali, mas não era projeto, era vontade de começar a iniciar com quem realmente necessitava. E aí eu entendi que eu deveria escrever projetos para ter uma equipe, para ter uma montagem, esses figurinos, esses informes, tudo o que contempla o projeto. E aí…eu vim e estabeleci em 2012, nós demos o start aqui na comunidade, com 100 alunos na União dos Moradores, e com o passar do tempo eu consegui mudar para esse prédio, alugar esse prédio, e aqui nós já iniciamos com 200 alunos. E foi isso. Foi essa vontade de querer estar com as pessoas que de fato queriam estudar e precisavam, porque é uma arte muito elitizada. Então, eu encontrei assim, o meu sonho, porque aqui eu encontrei os maiores bailarinos. Vocês estarão com eles no Sesc Santana. Vocês vão ver a potência desses corpos. E das pequenas, né? O amor que elas têm e o quanto elas necessitam desse projeto. Temos 1000–2000 alunos que querem vaga, mas nós não temos espaço físico para isso.

Como funciona o exame de seleção para o balé?
Eu estabeleço dois exames de seleção por ano, um no começo e um depois de julho, logo que as aulas curriculares começam. Ali eles participam para ingressar no balé. Um exame, eu chamo todo o nosso corpo docente, nosso fisioterapeuta, nosso psicólogo, todas as pessoas que pertencem ao balé. É às vezes algum professor meu, algum amigo ou algum bailarino também que quer participar. Pessoas que vêm para ajudar, de fato. E ali nós fazemos a entrega para eles do que se trata, balés, enfim, como coordenação motora, com flexibilidade, com o querer. Porque essa fala também é a mais importante: quem quer estar no balé por 10 anos, que é a formação, ou quem quer estar um mês no balé e não retornará. Então aí também é a grande seleção, né? Entender essa criança.
Qual foi o maior desafio na sua formação artística?
Um dos desafios foi encontrar lugares, porque eu fiz aula com vários professores, mas eu já não encontrava uma escola de formação para dar continuidade. Então eu fui estudando com vários mestres. Desafios no balé em si, primeiro era trazer essa minha vontade, ballet clássico, a primeira formação, balé clássico. Eu sempre entendi que o bailarino deveria iniciar com balé, pilates, contemporâneo, para ter, no mínimo, excelência aos 18 anos. Então esse foi um desafio também, de poder implementar várias técnicas para a formação das crianças. Desafios depois, quando nós iniciamos o projeto para patrocinadores acreditarem que nós estávamos aqui para trazer um trabalho de excelência, de formação. Foram muitos desafios até hoje.
O Ballet Paraisópolis tem mais de 10 anos e se tornou referência de transformação social por meio da dança. Como é viver esse crescimento?
No início eu chamei grandes mestres para pensarem nesses corpos que vinham e voltavam a pé. Como nós íamos trabalhar dentro deste bairro? Que formação, que técnica iríamos inserir para que desse tudo certo e que conseguíssemos de fato formar nesses 10 anos.
Mas nós não imaginávamos que além da formação eles fariam parte da companhia. Foi nascendo naturalmente. Eu tinha 20 bailarinos de Paraisópolis, e a vontade deles era dar continuidade aqui. Eu abri portas para que conhecessem todas as companhias: foram a Nova Iorque, conheceram companhias internacionais. Eu falava: Voa, nós demos a formação.
Mas eles quiseram dar continuidade aqui. Aí construímos o terceiro andar para que a companhia tivesse um espaço só para eles, profissional. Hoje, além de bailarinos, eles criam coreografias, testam outro lugar: como se tornar professor ou coreógrafo. Fomos abrindo esse leque. Em 2022 demos o início formal à companhia. Mas tudo nasceu do querer, do amar, do se dedicar diariamente.

Então a decisão de criar a Cia Ballet Paraisópolis veio também da necessidade dos alunos se manterem aqui?
Exato. Eu entregava experiências: eles faziam aulas em outras companhias, assistiam, conversavam com bailarinos profissionais sobre vida, salários. Entenderam que aqui seria o primeiro momento e que queriam estar conosco. Nós erramos muito, estamos diariamente acertando e errando, mas eles foram ficando.
Alguns estão em companhias internacionais, outros nacionais, mas a maioria ficou. Hoje já abrimos audições para bailarinos de outros estados, que vêm para São Paulo estar conosco. Nunca imaginamos dar oportunidade até para pessoas de fora.
E qual é o diferencial da companhia para atrair outros artistas?
Primeiro, a qualidade: continuamos elevando as técnicas, têm professores, ensaiadores, coreógrafos maravilhosos. Temos fisioterapeuta fixo, psicóloga, professores e ensaiadores excelentes, figurinos com estilistas de ponta. E ainda, à noite, eles têm faculdade totalmente gratuita. É um conjunto da obra.
Qual foi a principal mudança dessa transição do formativo para o profissional?
Se não conseguíssemos que eles se tornassem profissionais remunerados, 90% teria desistido. Sem remuneração você precisa de um plano B. Outra mudança: aqui não é proibido. Nós recebemos diversos corpos. É uma companhia profissional, claro que com condutas, mas a grande maioria é bem-vinda. Isso foi um diferencial, eles foram recebidos e puderam dar continuidade.
Como você vê a diversidade de corpos na dança?
Todas as pessoas dançam. A primeira coisa que uma criança faz é andar, engatinhar, andar, e logo ela já dança. Todas as crianças, a grande maioria. Mas é isso, gente, é a dança. Como qualquer esporte, ele tem as suas necessidades, não é? Então, para os impactos no solo, o que é necessário para manter um bailarino até 60 anos dançando, que é isso que mais ou menos nós estamos prevendo. Então tem as suas regras, mas também podemos, dentro dessas regras, ir ampliando para que outras pessoas também consigam. Inclusive pessoas com deficiência. Pois é. O grande fascínio do balé, por exemplo, eu tive uma aluna surda. E nós, em todas as salas, temos piso flutuante. Ela ficou aqui conosco 8 anos e trabalhava com o som dos pés. Aí, hoje, você viu a pessoa em cadeiras de rodas, você viu a pessoa com autismo, e é a grande alegria deles. É o dia do balé. Você viu como eles chegam e como eles saem.
E qual o impacto da companhia para os jovens, para Paraisópolis e para a dança brasileira?
Esse é o diferencial, formar uma companhia nesse território, com tanta qualidade, e nascer para o mundo.
É transformar famílias também, porque muitos não aceitavam dança como profissão. Fiz muitas reuniões para mostrar que era uma profissão como qualquer outra. É possível transformar o lugar, famílias, mostrar para todos que é possível. E fizemos dentro de uma comunidade de milhares de habitantes.
Hoje temos mais uma companhia brasileira no mercado.
E quais são os próximos planos da Companhia?
Olha, eu tenho agora mais alguns espetáculos para entregar, tenho uma grande estreia desse coreógrafo internacional, o Thiago Bordin.
O meu plano é conseguir primeiro uma sede própria, porque está muito difícil continuar vivendo de aluguel. O espaço já não comporta mais, porque eu gostaria de dobrar de 200 para 400 alunos, no mínimo.
Ter uma sede própria da companhia também, para que ela tivesse vida própria, equipe própria, e que eles pudessem voar. Que ocupassem o Brasil inteiro. Porque agora eu quero levar a companhia para o Brasil inteiro. Tenho levado para alguns estados, mas eles precisam rodar o Brasil e mostrar quem são. Somos filhos do Brasil.
E aí chegamos no internacional. Esse é um grande sonho, inclusive para todos eles. Poucos saíram do Brasil, mas isso, como eu digo, é um degrau por dia. Isso naturalmente vai acontecer com um convite. É um projeto que tem que dar certo.
Mas os planos são esses, que a gente consiga crescer, que eu consiga ter mais bailarinos profissionais, porque o mercado é muito pequeno. Os bailarinos profissionais estão com uma série de dificuldades em entrar em companhias, porque nas audições normalmente entram 2, 3 bailarinos no máximo. E nós temos uma quantidade gigantesca de talentos precisando de trabalho.
E não só bailarinos: iluminadores, sonoplastas, coreógrafos, professores… nós temos uma leva de artistas precisando de emprego e de oportunidade.
Qual é o legado que você quer deixar com o Ballet Paraisópolis?
Legado que o Ballet Paraisópolis é de Paraisópolis, ele fica para eles e eles cuidam dessa casa como a casa deles. Aqui estamos entregando, capacitando todos os bailarinos e professores e, enfim, a nossa operacional. Eu acho que nós fechamos essa raiz que jamais vai ser esquecida. E com certeza isso vai ser levado adiante. Trabalhar com amor, eu acho que essa é a grande história hoje em dia, porque as pessoas querem trabalhar para ganhar dinheiro, mas as pessoas não vão ganhar dinheiro se não trabalharem por amor. O dinheiro vem naturalmente se você fizer um bom trabalho. Acredito. Isso é natural. Se você tiver um bom trabalho, um bom desempenho, você vai ter uma boa remuneração. É isso. Deixo que as pessoas deem continuidade, que a gente possa crescer ainda mais, que possa dar mais empregos, e estabelecer uma companhia profissional do terceiro setor, isso é primordial.
Se você pudesse resumir em uma frase o que significa fazer balé na periferia, qual seria?
Balé na periferia primeiro é a oportunidade. É dar oportunidade para quem está na periferia. A pessoa tem que abraçar essa oportunidade, porque muitas pessoas no meio não têm acesso a isso. É transformar vidas, mostrar que eles podem sonhar grande, ter disciplina, ter dedicação, e que a arte realmente muda o destino de cada um.
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