O que há de concreto na canção?

26/09/2015

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A canção popular acabou.

José Ramos Tinhorão, crítico, historiador e debatedor ferrenho da música popular brasileira, vaticinou, de forma lapidar, em entrevista a Pedro Alexandre Sanches (2004):

“Acabou, é inconcebível. Charles Aznavour está velhinho, é o último representante de um tipo de coisa. Ele senta num banquinho e toca e canta. Isso acabou. Hoje é tudo coletivo, com recursos eletro-eletrônicos. Acabou essa canção que nasce contemporânea do individualismo burguês, feita para você cantar e outras pessoas ouvirem se sentindo representadas na letra.”

Se o individualismo burguês não dá vistas de esmorecimento, mas sim de complexificação – vivemos tempos individualmente conectados -, a canção obedece uma lógica diferente, ainda que despida de sua capacidade de penetração como quando reinava absoluta na música popular brasileira, sobrevive carente de grandes compositores, capazes de representar quem ouve. Letra e melodia encontram-se razoavelmente apartadas em sua gênese: não parece haver unidade quando do encontro de ambas.

A unidade da canção: Letra e melodia

Mas, há unidade na canção? O que vem primeiro, a letra ou a melodia?

Gil Assis e Ana Fridman partem dessa ideia divisa e recorrente para criar algo novo que dá pistas sobre outros entendimentos da canção. Quando diz que a ideia era, primeiramente, fazer músicas para as poesias concretas do acervo do pai de Ana, Gil evoca o processo que terminará por se dar ao inverso: a palavra sucitou a melodia, que por sua vez transformou a poesia noutra coisa. A canção renasce fluida de uma intenção estanque.

Essa fluidez dá o tom do disco: desde as participações especiais – Ná Ozzetti, Carlos Careqa, Marcelo Pretto e Zeca Baleiro emprestam suas vozes ao disco – até o time de músicos montado para dar corpo aos arranjos de Ana e Gil para as poesias de Ferreira Gullar, Antonio Risério, Melo e Castro, Amílcar de Castro, Paulo Leminski, Arnaldo Antunes e Décio Pignatari, tudo parece desaguar numa nova leitura-audição dessas canções. É possível ter uma amostra disso no making of do disco que você confere abaixo:

A sonoridade da palavra

“Ao se indagar sobre o que há de concreto na canção, o que se procura é conhecer a sonoridade que existe por trás de cada palavra. De buscar, na palavra escrita, sua força e memória. Trata-se de investigar as possibilidades que a poesia, em especial a concreta, oferece para o universo musical”, nas palavras de Danilo Santos de Miranda.

Essa investigação revela as possibilidades que a poesia concreta oferece ao universo musical. O encarte do disco, que inclui a apresentação da cantora Suzana Salles e as poesias em um belo arranjo gráfico, complementa essa experiência.

Arranjos e intenção musical

Ainda que se diga tudo sobre investigação e novos caminhos para a canção que pode ou não estar moribunda, trata-se de um disco, suporte para música. E o que temos neste exemplar é algo que vale menção, independente do sucesso da empreitada. Os arranjos de Ana Fridman e Gil Assis, executados por músicos como Caíto Marcondes na percussão, Vitor Lopes na harmônica, Mário Checchetto no clarone e Sérgio Reze na bateria, cumprem papel fundamental.

Aparecem suaves em torno da palavra, como nuvem desapercebida, para, quando conveniente, retomar o primeiro plano, deixando a poesia respirar na cabeça de quem ouve, criando manchas musicais que desenham intenção, força e significado à palavra.


Capa do álbum O que há de concreto na canção? de Gil Assis e Ana Friedman.

O álbum O que há de concreto na canção? está disponível nas Lojas Sesc em CD e nas principais plataformas de streaming. Não perca a oportunidade de apreciar mais um belo disco do Selo Sesc!


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