Corpografias do presente

01/09/2025

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Ancestralidade, infâncias, diversidade de corpos e estado de presença pautam a dança na contemporaneidade 

Por Maria Júlia Lledó 

Leia a edição de SETEMBRO/25 da Revista E na íntegra

O corpo é “a esfinge a ser interrogada”, segundo provocação feita pela filósofa italiana Silvia Federici. Afinal, é por meio dele que cada indivíduo expressa sua identidade, sua cultura, suas relações e interações com o ambiente onde está inserido. Para os povos originários, o corpo não se limita à existência humana pois estende-se para rios, montanhas, céus e florestas – ou seja, o corpo está em contínua expansão. No cenário das artes, particularmente na criação em dança, o corpo, em toda sua pluralidade, abarca as principais questões presentes na atualidade. No palco ou nas ruas, coreografias convocam o público não somente à fruição artística, mas também a um estado de presença, a reflexões sobre gênero, comunidade, ancestralidade e, sobretudo, a um resgate da imaginação.   

“A gente não pode falar do que está acontecendo nas danças no mundo hoje sem entender que tipo de corpo produz, assiste e inventa essas danças. E isso tem a ver com a tecnologia”, pontua Helena Katz, professora no curso Comunicação das Artes do Corpo e no Programa em Comunicação e Semiótica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Para a pesquisadora, crítica de dança há quatro décadas, as transformações da tecnologia sobre o corpo é um dos eixos que norteiam a expressão artística hoje, interferindo não só no encontro com o público, como também na curiosidade por diferentes propostas.  

“Toda linguagem artística necessita de pluralidade e de divergência. Necessita disso que o uso abusivo das telas nos impede. Quem quer dissenso nas redes? Quem quer pluralidade? Só quero encontrar meus ecos. Então, isso escorre das telas para a vida. Mas a gente precisa se encontrar com essa arte plural”, defende a professora. Em resposta, temporadas, circuitos e festivais, como a Bienal Sesc de Dança [leia mais em Todos os passos], descortinam possibilidades desse contato entre públicos de diferentes gerações e repertórios e criadores, que fazem de seus corpos uma força criativa e catalisadora de diálogos.    

Dedicado ao público da primeira infância, familiares e cuidadores, o espetáculo de dança Pinhé… E Outras Formas de Abraço?, do Núcleo Nascedouro (Campinas-SP), é resultado de uma pesquisa sobre a cultura popular e a cultura da infância. Foto: Leo Lin 

ESTADO DE PRESENÇA 

Nascida e criada na cidade de Sabará (MG), a artista multidisciplinar e arte-educadora Malu Avelar teve sua formação artística na capital, Belo Horizonte, no Centro de Formação Artística do Palácio das Artes (CEFAR) e no Grupo Jovem Compasso. Na cidade de São Paulo, onde reside, observa que, durante muito tempo, o lugar de contemporaneidade não esteve disponível para os corpos negros. “Sou uma pessoa preta e meu olhar está dentro de um circuito de corpos dissidentes, de pessoas LGBTQIAPN+. É muito comum ouvir que artistas negros não fazem dança contemporânea. Então, acho que esse é um dos maiores desafios do meu trabalho hoje, porque dentro do que enxergo como coreografia, há uma abstração, e isso não é dado como uma arte negra”, analisa.  

Em seu trabalho, dança e artes visuais conversam com um pensamento estético que, para a artista, “talvez fuja do que o próprio público está acostumado”. E é a partir dessa perspectiva e vivência que Malu Avelar desenvolveu três trabalhos: a pesquisa e performance 1300° (Qual é a saúde de um vulcão?), a obra relacional e instalativa Sauna lésbica, apresentada na 35ª Bienal de São Paulo, e o mais recente, Cordão. Este último será apresentado na 14ª edição da Bienal Sesc de Dança, neste mês, no Sesc Campinas, e dialoga com o legado do cantor e compositor Geraldo Filme (1927-1995). 

“Eu tenho uma preocupação política, ancestral, espiritual e artística com a minha comunidade. Acho que Cordão é um pedido de bênção e de licença para o meu ancestral, mas com uma criticidade pertinente para a contemporaneidade e para essa cena da dança contemporânea paulistana que não enxerga o samba como contemporaneidade”, ressalta Malu Avelar. Foto: Sergio Fernandes

A artista também observa em sua pesquisa um manifesto ao estado de presença. “Uma das coisas que eu mais pontuo é que não vou ser um quadro para você levar para casa; não sou um livro que você vai comprar na livraria e nem uma música que você vai dar play no Spotify. Não vou trazer uma dramaturgia em palavras. Então, eu entrego a presença. Esse é um lugar que, atualmente, é muito problemático. A gente tem uma influência grande da tecnologia nos nossos fazeres, o que pode ser bom, mas depende de como a gente dialoga com isso”, reflete.  

Nós desejamos uma dança que mobilize oportunidades. Uma dança que nos provoque nesse lugar do afeto, do lúdico, da invenção, da transformação e dessa reconexão do nosso corpo com o nosso íntimo, com a nossa comunidade, cultura, família e com a natureza.  

Wanessa Di Guimarães, bailarina, professora e pesquisadora 

PONTOS DE CONTATO 

A fricção entre diferentes pensamentos e linguagens acompanha a história da dança. “Sempre houve uma conversa entre a dança do palácio e a dança fora do palácio. Ao longo dos séculos, vai acontecendo esse trânsito entre diferentes formas de pensamento em dança que começam a se encostar. Se você olhar para a história do Theatro Municipal do Rio de Janeiro, atrelada à história do balé clássico, vai ver coreógrafos se interessando pelas danças que eram chamadas de ‘locais’, como se o teatro não estivesse na mesma localidade, ou seja, havia essa distinção social”, explica a professora Helena Katz.  

A partir do século 20, ganha força a fusão entre diferentes pensamentos da dança, a exemplo de grupos que passaram a incorporar linguagens diversas, como o balé clássico, a dança contemporânea e as danças populares. Nos últimos anos, também vem sendo construído um espaço para que novas propostas dialoguem e subam ao palco. Fundadora do Núcleo Nascedouro (Campinas-SP), Letícia Michelani é formada em dança, pesquisadora das infâncias e da cultura popular. Seu trabalho combina esses conhecimentos para a criação de espetáculos voltados ao público infantil. “Trabalho com educação infantil e toco com as Caixeiras das Nascentes, um grupo popular de percussão formado por mulheres que tocam Caixa do Divino, em Campinas (SP), e por muito tempo, eu me dediquei a pesquisar a relação entre dança, cultura popular e dos povos tradicionais”, conta.  

Criado por Patrick Ziza, artista e coreógrafo nascido em Ruanda e radicado no Reino Unido, o espetáculo Dandyism (Dandismo), que conta no Brasil com a participação do coreógrafo Ricardo Januário, faz da soma entre dança e moda uma reflexão sobre resistência, identidade e gênero. Foto: Adam Goodwin 

Também formada em dança, a arte-educadora  Wanessa Di Guimarães integra o Núcleo Nascedouro. “Pesquisei cultura popular, mas no meu caso, eu me dediquei, durante um tempo, ao Jongo, que é uma manifestação de origem Bantu, bastante presente na região sudeste do Brasil”. Juntas, Letícia Michelani, Wanessa Di Guimarães e a artista da dança Bibiana Marques, criaram a obra Pinhé… e Outras Formas de Abraço, que estreou em 2023, dedicado à primeira infância (crianças de zero a três anos). A ideia surgiu de vivências e observações, somada a uma pesquisa da gestualidade infantil, das movimentações do universo sonoro e corporal da cultura popular, da cultura da infância e de resgates da memória familiar das criadoras. 

“Nossa grande preocupação veio dessa atuação dentro das escolas, observando como se dava a construção dos vínculos entre os pequenos e os adultos, e como ela é dificultada pelo excessivo tempo despendido em frente às telas. Também, pela distância física desses corpos atravessados pela virtualidade e pela escassez de tempo livre para uma vivência afetiva e significativa”, explica Di Guimarães. O resultado é um espetáculo – que também será apresentado na 14ª edição da Bienal Sesc de Dança – que se torna uma “celebração ao brincar em coletivo, à proximidade, à presença, ao pegar no colo e dançar junto”, complementa a artista.  

Em cena, brincadeiras da cultura popular, desafios rítmicos, brincadeiras de mão e de colo são experimentadas pelas crianças e também pelos adultos que as acompanham. “Nesse cotidiano atual, tão cheio de estímulos, mas tão pobre de experiências, principalmente para os pequenininhos, nós desejamos uma dança que mobilize oportunidades. Uma dança que nos provoque nesse lugar do afeto, do lúdico, da invenção, da transformação e dessa reconexão do nosso corpo com o nosso íntimo, com a nossa comunidade, cultura, família e com a natureza”, defende Wanessa Di Guimarães. 

ZONAS DE ENCONTRO 

“Um lugar de recomposição de imaginários”, assim é a dança na contemporaneidade, para o artista, pesquisador e curador Tiyê Macau. Seu trabalho busca com a ancestralidade semear outras cosmologias e desenhos de futuro diante de um esgotamento de narrativas da cultura ocidental. “A ancestralidade para mim não é um tema, é um modo de vida. É repensar, também, como se faz dança, já que se abre a discussão para esses corpos que, de alguma maneira, pelo capitalismo, não são corpos que produzem e, por isso, são esquecidos”, constata.  

A dança também é um espaço de criação onde o artista coloca em questão a binariedade e a exclusão de corpos. “Que corpo é esse que dança para além dos corpos cis? Há um tempo, eu tenho pensado muito nessa dissociação do meu corpo, enquanto humanidade, não só por ser um corpo trans e preto e nordestino – e isso já é um lugar de desumanidade dentro da lógica ocidental –, mas também pensando nas cosmologias que me formam. Eu sou uma pessoa de comunidade. Sou uma pessoa formada por povos da terra, por saberes dos mais velhos”, reflete o artista. 

Macau ainda coreografa novas possibilidades de relação entre seres humanos e outras espécies, como propõe no espetáculo Brinquedo: Onde surgem os sonhos?, que integra a programação da Bienal Sesc de Dança deste ano. Criada em parceria com o artista Ruan Francisco, a obra é dividida em três atos e mistura encantaria, fauna, palavra, dança e memória. “A gente entra e escuta os passarinhos, as cigarras, mas não as enxerga. Então, o Brinquedo vem desde uma instância de a gente estudar o som, como uma dinâmica de comunicação com o invisível, a entender essa comunicação interespécie também, de pensar como é que o som vira um dispositivo de incorporação de memórias, como a memória de um território. E como é que isso se reorganiza no corpo a partir da dinâmica do brincar e do brinquedo”, propõe. 

Em comum, coreógrafos, dançarinos e outros fazedores e pensadores da dança lançam um exercício coletivo, diante de um contexto de transformações digitais e revoluções culturais: voltar ao corpo e recuperar a capacidade de sonhar. “Eu tenho pensado que a arte da cena promove encontros. Seja para pensar em proximidade e em alteridade, ou para propor confluência. Tenho pensado que são as danças que têm se colocado na insistência do encontro. E isso expande o palco, isso expande um festival, porque vai para uma intenção de diálogo. Acho que a dança cênica, nesse momento, é sobre ser uma zona de encontro”, resume Macau.  

Artista, pesquisador e curador, Tiyê Macau acredita na dança como um espaço de discussão sobre binariedade e ancestralidade, para criação de outros imaginários. Foto: Amandyra 

Todos os passos 

Espetáculos de 17 países e ações formativas compõem a programação da 14ª edição da Bienal Sesc de Dança

Uma profusão de diálogos e temas conecta a criação em dança ao redor do mundo. Tendo em vista este cenário, a 14ª edição da Bienal Sesc de Dança, no Sesc Campinas, aproxima diversos público das propostas de criadores de diferentes estados brasileiros e de outros 16 países, que refletem sobre o contexto contemporâneo das linguagens da dança. Sob o olhar curatorial da equipe de programação do Sesc São Paulo e do artista Flip Couto, o festival reúne criadores e grupos renomados e emergentes numa programação composta por espetáculos e ações formativas.  

Para esta edição, foi desenhado um panorama das danças cênicas, populares, experimentais, comunitárias e urbanas, além da cultura de ballroom – movimento cultural originado na comunidade LGBTQIAPN+ negra e latina da cidade de Nova York (Estados Unidos), nos anos 1970, e que também influenciou a cena artística brasileira. Entre os temas em destaque na Bienal, estão: memória, ancestralidade, resistência colonial – a exemplo do Brasil, Chile e Guadalupe –, e a relação com o vestuário e o alimento, que também aparece nas obras como lugar de potência e desconstrução de padrões. Na programação, realizada entre os dias 25/9 e 5/10, uma série de atividades ainda propõe experiências que colocam o público em movimento. 

“A edição da Bienal Sesc de Dança deste ano reafirma a dança como elemento fundante na criação de comunidades e na valorização social, envolvendo públicos de diferentes contextos e apresentando modos plurais de fazer e pensar a criação em dança”, afirma Maitê Lacerda, que integra a equipe de dança da Gerência de Ação Cultural do Sesc e compõe a curadoria da 14ª edição da Bienal Sesc de Dança.  

Confira alguns destaques da programação: 

CAMPINAS

Minas de Ouro – Brasil (Rio de Janeiro-RJ)

Com Carmen Luz

A performance busca compartilhar histórias, resgatar memórias e quebrar paradigmas quanto ao corpo da mulher negra sambista. Dia 29 e 30/9, segunda e terça, às 11h. Praça Bento Quirino. 

DARKMATTER (Matériaescura) – Holanda/Bélgica

Com Cherish Menzo 

A partir do conceito astronômico de “matéria escura”, substância hipotética que formaria grande parte do Universo, o espetáculo explora mecanismos de distorção para questionar imagens preconcebidas sobre os corpos. Dias 30/9 e 1º/10, terça e quarta, às 21h30. Foto: Bas de Brouwer 

Exótica – On the brown History of European Dance (Exótica – sobre a história racializada da dança europeia) – Áustria, México, Chile 

Com Amanda Piña  

O espetáculo propõe um trabalho de re-historiografia: resgata o legado desses criadores europeus do início do século 20, tidos como exóticos por não serem brancos, e do que seria a história racializada da dança europeia. Dia 4/10, sábado, às 19h; 5/10, domingo, às 15h. Teatro Castro Mendes. 

A Belíssima Casa de Odara apresenta: O GRANDE BAILE! – Brasil (São Paulo – SP) 

Com Casa de Odara 

Referência na cena ballroom e na construção de espaços culturais para corpos dissidentes, o espetáculo propõe uma viagem pelas camadas culturais que formam o imaginário social e histórico da ballroom. Dia 4/10, sábado, às 17h. Foto: Nic Filmes 

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