
por Maurício de Almeida
ilustração Pedro Gonçalves
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1. Neste quarto, a insônia sabe a cigarro. E o cão dorme na cama. Não encontro jeito na cadeira, os joelhos doem e os olhos ardem – e as coisas espalhadas sobre a mesa não propõem invenção, mas desordem. Na folha em branco que tenho à frente, penso em improvisar traços e, ao acaso da repetição, forjar um corpo prestes a um passo improvável. Não há lastro e o propósito, mesmo sugerido, é irrelevante. Nesse processo, desviar o traço, rasurá-lo se necessário, para tencionar, no espaço ao mesmo tempo restrito e ilimitado do papel, um corpo que almeja antes o salto que a queda, confundindo com linha tênue a divisão entre causa e consequência. A intenção, sempre posta, jamais é suficiente.
2. O cão levanta a cabeça, os olhos baços e úmidos pervagam ao acaso, o bocejo explicita os dentes (poucos) e é seguido por um gemido lamurioso. Penso que se levantará, mas, como fez algumas vezes já, espreguiça-se antes de procurar jeito aos ossos, sem dúvida incômodos. A madrugada volta ao silêncio e, ao enrolar-se sobre si, o cão fecha os olhos. Próxima à janela, a mesa em que me encontro é suficiente para uma porção de lápis, um maço de folhas e apetrechos diversos cuja utilidade é menos interessante que a forma. Avesso ao sono, observo, entre os traços quase retilíneos dos prédios, a lua posta e cheia e o decalque de suas crateras.
3. Situada na província de Medina, Khaybar é um centro populacional a noroeste da Arábia Saudita conhecido por seus campos vulcânicos, chamados harrats. Ao longo de séculos, as composições e os estilos de erupção conformaram inúmeras crateras: Harrat Khaybar parece a planície luar. Essa extensa região também acumula evidências pré-históricas da atividade humana: ao sul, estruturas habitacionais, funerárias e ritualísticas construídas a partir de rochas basálticas; ao norte, nos vales de Shuwaymis, por onde correm leitos de rios sazonais, encontram-se, nas vertentes escarpadas, diversos petróglifos neolíticos. Camelos, antílopes, íbex, leões e leopardos, cenas de caça: consta que os primeiros registros humanos de cães domesticados estão nesses petróglifos de Shuwaymis.
4. Nesta folha em branco, poderia criar primeiro um contexto turvo ou noturno à hesitação desse corpo ainda informe, porque, embora inevitável, esse passo que intento talvez não aconteça: desbastar o grafite com o estilete sobre a folha e espalhar com o dedo o granulado fino e cinza, esfumaçando o paradeiro que, por ser desconhecido, convoca. Ou traçar antes os pés em disposição imprópria como se estranhassem o próprio peso, como se experimentassem desde já o vazio da queda, ou, ainda, iniciar pelos braços, esticados e agudos, como se perfurassem o ar.

5. Ou abandonar o papel e os lápis todos, esquecer em uma gaveta a parafernália que me acompanha nessa tarefa inglória de criar (o quê?, para quê, afinal?) e me deitar junto ao cão, recolhermo-nos a esse espaço compartilhado e comungarmos juntos esta madrugada pontuada pela lua, encontrarmos nessa convivência o suficiente, porque, neste momento, tudo é mera iminência: o cão está morrendo. E, no entanto, insisto no desenho do qual me foge o primeiro traço. A quem importa, senão a mim, a aflição do cachorro?, a quem importa, senão a mim, a lua pregada no céu?, se inúmeras aflições e insônias essa mesma lua já testemunhou sobre a face da Terra.
6. Por isso, ainda que seja quase insuportável o exercício de rabiscar uma folha e explicitar o sentido de um gesto, pondero ser melhor início esquadrinhar o papel para conter o espaço (supor contê-lo) com perpendiculares e transversais, e, aos poucos, encurvar os traços verticais e assim direcionar o olhar à imprecisão da queda ainda só imaginada, conquanto não permita a geometria tal intuito, como se bastassem linhas para cercar o inapreensível.
7. Em minha mão, um lápis carcomido no qual o grafite, afiado, reluz estático.
8. Feitos com paus, pedras ou ossos, os petróglifos são incisões talhadas nas rochas. Nos painéis de Shuwaymis, os cães são profusos e acompanham os homens em ação. Vislumbra-se o adestramento desses animais tanto pelas funções que assumem quanto por linhas estendidas entre os pescoços dos cães e a cintura das figuras humanas, espécie de coleiras. Originário de Israel, a principal característica do Cão de Canaã é ser uma raça feral, isto é, após a domesticação, ter voltado ao estado selvagem. Nesse caso específico, estima-se que o processo ocorreu há mais de dez mil anos: os hebreus eram acompanhados por cães dessa raça no pastorear de rebanhos. O cerco romano à Jerusalém, em 63 a.C., devolveu esses animais ao deserto de Israel e à vida selvagem. Quinze anos perfazem sua expectativa de vida. No que tange a compleição, a altura e o peso são médios, a pelagem lisa, orelhas eretas, sendo a característica mais distintiva a cauda espessa com ponta curvada sobre as costas. Essa qualidade específica permite inferir serem cães de Canaã aqueles talhados nos petróglifos de Shuwaymis.
9. Em pouco a madrugada esmaecerá e um traço de sol repousará sobre essa folha provavelmente ainda em branco, e, somente então, alcançará o cão, cujos passos arrastados carregaram a madrugada nas inúmeras vezes em que se levantou descomposto, a coluna encurvada em parábola, os ossos do tórax em traços paralelos, as patas quase não aguentando o corpo. Desconheço sua origem, nosso encontro ocorreu ao acaso, e, por isso, em uma contagem imprecisa, infiro que o cão ultrapasse dezesseis anos. O porte pequeno e frágil, a pelagem ocre, irregular e desgrenhada, o prognatismo que desloca a mandíbula à frente da maxila, é inútil investigar as raças das quais decorre – galgo? terrier? – e nada posso para confortá-lo. Apenas ouço reverberarem seus ganidos no silêncio que antecede a manhã.
10. Talvez iniciar pelo rosto, lapidar com a paciência a pedra de um sorriso incerto, alinhar os olhos em diagonal projetando o corpo, ou, ao contrário, esboçar o queixo acentuado para cima, porque não convém penitência, ainda que seja um corpo grave por saber-se já em queda. Por isso, quem sabe, distorcer a anatomia para sugerir nervosismo aos braços estendidos e às pernas afastadas, extrapolar a proporção das mãos espalmadas e dos pés pontiagudos (eis o impulso), tangenciar o grotesco porque, apesar do equilíbrio, o arrebatamento deve reger o movimento. Deve?
11. Não se sabe o que motivava o homem neolítico a talhar rochas e compor petróglifos nem os usos desses desenhos. Tampouco compreendo a razão do que faço. A técnica e a estética pouco interessam, pois nada servem a questões sem respostas: o que de mim ficará nesse registro? Que pretensão mobiliza meu ato, como se meu lastro (a aflições e essas luas todas) figurassem parte ou exemplo da humanidade? Que homem sou entre os homens?
12. Por que razão me preocupo tanto com a permanência? Pois é disso que tratam, afinal, essas questões obviamente sem respostas, a hesitação que me paralisa.
13. Abandonar o corpo (o projeto, o intento) à tranquilidade de um esquecimento. Com traços breves e circulares, desenho o cão enrolado sobre si mesmo.
Maurício de Almeida é antropólogo e autor de Beijando dentes (Record, 2008), livro de contos vencedor do Prêmio Sesc de Literatura 2007, A instrução da noite (Rocco, 2016), romance vencedor do Prêmio São Paulo de Literatura 2017 na categoria melhor livro do ano estreante com até 40 anos, e do livro de contos Equatoriais (Maralto Edições, 2023).
Pedro Gonçalves é ilustrador, quadrinista e mineiro de Belo Horizonte. Seu trabalho explora distorções anatômicas e cores vibrantes. Publicou de forma independente as HQs Desejo de licantropia (2023) e Sonhos intranquilos de um pós-apocalipse (2024).
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