
O show que Inezita Barroso apresentou no Sesc Consolação no dia 4 de agosto de 1978 — e que agora é lançado como o álbum Relicário: Inezita Barroso (Ao Vivo no Sesc 1978), do Selo Sesc — captura a cantora num momento muito peculiar da carreira. Tudo por conta de sua experiência à frente de um restaurante na Avenida Santo Amaro, em São Paulo, por pouco mais de um ano, entre 1975 e 1976.
Para entendermos como isso impactou em seu trabalho e se refletiu no disco que agora temos a oportunidade de ouvir, é importante sabermos mais do restaurante em questão. A Casa de Inezita, como ela o batizou, era fundamentada — como tudo em sua vida — na cultura dos rincões de norte a sul do Brasil. O cardápio, por exemplo, trazia pratos como “camarão à Iemanjá” (servido dentro de um coco verde), “bife à Curupira”, “arroz à Negrinho do Pastoreio”, “baião à Lampião”, “frango à Triângulo Mineiro”, “paçoca à Rachel de Queiroz” — cozinheira de mão cheia, a própria Inezita ia pra cozinha dividir panelas com o chefe baiano titular da casa. O lugar oferecia ainda sucos não tão fáceis de encontrar em São Paulo naquele tempo, como graviola e mangaba, que ela trazia do Pará, assim como o cupuaçu e o bacuri que servia em compotas, como sobremesa.
Para acompanhar esse cardápio, muita música — outro elemento central na vida de Inezita. Ela convidou seu amigo Evandro do Bandolim, que por sua vez trouxe seu Regional. Aos sábados, ela cantava com eles. Nos outros dias, o grupo recebia outras atrações. À frente do microfone, a artista e pesquisadora se lançava num repertório de sambas, sambas-canção, sambas-choro — enfim, uma típica seresta. Entre suas favoritas e as mais pedidas pelo público, passeava por músicas como “Castigo” (Dolores Duran), “Ronda” (Paulo Vanzolini), “Chão de estrelas” (Silvio Caldas e Orestes Barbosa), “João Valentão” (Dorival Caymmi) e “Último desejo” (Noel Rosa).
Todas essas e outras da mesma seara ela viria a gravar no disco Inezita Barroso canta e Evandro no choro, lançado em 1979 e inspirado nas apresentações feitas no restaurante. Foi o primeiro álbum da cantora inteiramente dedicado a um repertório de samba e seus subgêneros. Ou ainda, seu primeiro disco totalmente urbano.
A apresentação no Sesc Consolação registrada no projeto Relicário documenta o momento da carreira exatamente entre os sábados da Casa de Inezita e o lançamento de Inezita Barroso canta e Evandro no choro. Não à toa, quatro das dez faixas do álbum ao vivo têm a participação do Regional de Evandro — nelas, junto com a cantora, eles tocam canções que entrariam no disco de 1979.
Mas o disco testemunha também a vastidão do olhar curioso e profundo de Inezita sobre o Brasil para além da metrópole. Uma vastidão que se espelha nas atividades às quais ela se dedicou ao longo da vida. Além de cantora e instrumentista, ela foi atriz (em filmes como “Mulher de verdade”, de 1953, e “Desejo violento”, de 1978), bibliotecária, folclorista, professora e apresentadora de rádio e TV — comandou o programa da TV Cultura Viola, minha viola, fundamental para a difusão da música caipira, desde a década de 1980 até sua morte, em 2015.
Inezita abre o show no Sesc rasqueando sua viola. Prepara, assim, o terreno para entoar — com uma voz que emana a força dos terreiros de umbanda e candomblé, combinado ao timbre de quem chegou a ser convidada a cantar ópera no início da carreira — uma sequência de pontos de Ogum. Em pouco mais de três minutos, se forma ali uma reflexão sobre a constituição das raízes da música brasileira — objeto do olhar da artista e pesquisadora desde sempre. O cruzamento de sua viola de acento caipira com os cantos de origem afro-religiosa se dá com uma naturalidade que testemunha a riqueza do amálgama no qual o país se funda. Na breve introdução de seu show, portanto, Inezita aponta a abertura de seu entendimento sobre nossa música e nossa nação — marcadas pela mestiçagem que vai além das muitas violências do processo histórico de formação do Brasil.

Inezita havia gravado os “Pontos de Ogum” em 1975, três anos antes, no álbum Inezita em todos os cantos. Os pontos foram recolhidos em pesquisa de Alceu Maynard Araújo, Roberval e da própria cantora. Em entrevista à Tarik de Souza, ela explicou que gravava “os permitidos”. “Tem permitidos e outros não”, explicou.
“Leilão”, de Heckel Tavares e Joracy Camargo, segue cruzando a perspectiva negra na formação do país e a gramática da música caipira. Gravada por Inezita em Em me agarro na viola, disco que ela lançou em 1960, a canção narra, em primeira pessoa, o drama de um homem escravizado que se separou de sua mãe quando ela foi comprada num leilão em que ambos estavam postos à venda.
A letra expõe a revolta do homem (“No memo dia em que levaro minha preta/ Me botaro nas grieta/ Que é pru móde eu não fugi”) e a sua busca (“E desde então o preto véio apercurô/ Ficou véio como eu tô/ Mas como é grande esse Brasil/ E quando veio de Isabé as alforria/ Percurei mais quinze dias/ Mas a vista me fartô”). Por fim, ele deseja morrer pra assim, talvez, encontrar a mãe no Céu. A tristeza da canção é aprofundada pela interpretação sentida de Inezita, se acompanhando ao violão.
“Dois cocos recolhidos no Nordeste”, diz Inezita antes de emendar “Benedito Pretinho” e “Meu barco é veleiro”, exatamente como fez no 78 rotações lançado em 1955. Ali, ela aponta para a alegria da brisa do litoral, logo após a melancolia igualmente brasileira de “Leilão”. A primeira é um animado canto de saudade e louvação à terra natal — numa descrição que pode ser entendida como a própria ideia de interior, de roça, de Brasil essencial que Inezita sempre cultivou: “Na minha terra tudo muda de figura/ Tem farinha, rapadura/ Tem viola pra tocá/ Tem mariquinha, tem/ Chiquinha, tem Tereza/ Tem também cuscuz na mesa/ Angu de mío e fubá/ Tem sabiá cantando/ Solta no terreiro/ Tem o Chico Cambitêro/ Pro meu cavalo arriá”. Em contraposição a esse lugar “autêntico” e festeiro, ela expõe a cidade, “Terra desgraçada/ Onde a gente não faz nada/ Pra comê nem pra gozá”.
Em “Meu barco é veleiro”, a cantora segue descrevendo sua Pasárgada: “Como me lembro da casinha de Olinda/ A lua nas noite linda/ Tomando banho de mar, Iaiá/ Rede maneira/ Pendurada no terraço/ Para nos dias de mormaço/ A gente se balançar”. A referência feita ao paraíso descrito por Manuel Bandeira não é gratuita: Inezita se afinava com a maneira como o poeta olhava para o Brasil. Não à toa, gravou três canções que trazem versos dele: “Nana Nanana”, “Azulão” e “Modinha”.
Outro modernista com quem guardava ainda mais afinidade era Mário de Andrade — pesquisador crucial da música e da cultura do interior do Brasil. Suas pesquisas ficaram documentadas em trabalhos como o livro O turista aprendiz. Coincidência: quando criança, Inezita morava próxima de Mário na Barra Funda. Anos depois, ele se tornou uma referência central para o trabalho da cantora. Hoje, o acervo de ambos está sob a guarda e o cuidado do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB), da USP.
“O acervo do Mário de Andrade conversa com o acervo da Inezita o tempo todo”, conta Flávia Toni, pesquisadora do IEB. Ela explica que o material de Inezita ainda está em fase de classificação, trabalho facilitado pelo fato de ter sido já bem catalogado pela cantora — certamente devido à sua formação de bibliotecária. “O que predomina no acervo é o cuidado com a informação voltada para sua carreira, incluindo também sua atuação como atriz de cinema e a pesquisa. Há fotografias, muitas matérias de jornal e gravações referentes à carreira dela e ao levantamento de repertório. Ela costumava ir a campo, viajando, conhecendo compositores do interior. Temos fitas cassete, fitas de rolo, LPs, não só da carreira dela, mas também de outros artistas e pessoas que provavelmente lhe entregaram material”.



O disco segue com o clássico “Peixe vivo”, que Inezita gravou pela primeira vez no álbum Vamos falar de Brasil, de 1958, em homenagem a Juscelino Kubitschek, na época presidente. Fã da cantora, ele adorava notoriamente a canção do folclore mineiro, frequentemente lembrada em aparições públicas suas. Naquela gravação da década de 1950, Inezita fazia uma menção a ele: “O Nonô é o timoneiro” — menção que repete no palco do Sesc Consolação.
Como fez em 1958, Inezita introduziu “Peixe vivo” com uma citação a “Zum zum no mar”, outro canto popular, registrado pela primeira vez pela dupla sertaneja De Morais e Doquinha em 1951. Interessante notar que tanto “Zum zum no mar” como “Peixe vivo” seguem dentro desse universo de imagens ambientadas no litoral, como “Benedito Pretinho” e “Meu barco é veleiro”.
Em seguida, Inezita se volta para a urbanidade sem mar de São Paulo — mas uma urbanidade de outros tempos. “Lampião de gás” se tornou uma das canções-símbolo de Inezita e do passado da metrópole. O lamento de quem recorda o tempo em que a capital paulista era uma cidade tranquila, com alma interiorana, ecoa a alma da música de Inezita: “Lampião de gás, lampião de gás/ Quanta saudade você me traz/ Do bonde aberto, do carvoeiro/ Do vassoureiro com seu pregão/ Da vovozinha muito branquinha/ Fazendo roscas, sequilhos e pão/ Da garoinha fria, fininha/ Escorregando pela vidraça/ Do sabugueiro grande e cheiroso/ Lá no quintal da rua da graça/ (…) Minha São Paulo calma e serena/ Que era pequena, mas grande demais/ Agora cresceu, mas tudo morreu/ Lampião de gás que saudade me traz”.
A valsa foi composta por Zica Bergami, que testemunhou os últimos anos dos lampiões de gás paulistanos — eles foram substituídos por postes de luz elétrica na década de 1930. A autora foi até Inezita nos estúdios da TV Record apresentar a música, contando que a compôs para ela. A cantora a gravou cerca de um mês depois em “Vamos falar de Brasil”, seu primeiro LP, de 1958 — o mesmo onde registrou “Peixe vivo”.
Na sequência, vem o maior clássico do repertório de Inezita: “Moda da pinga” (também chamada de “Marvada pinga”). A composição é uma criação coletiva, com estrofes de autores diferentes e mesmo de épocas diferentes, mas que costuma ser creditada a Laureano. Trata-se de um processo muito comum na cultura popular, sobretudo no período de surgimento da indústria cultural — tido como um marco na história do samba, “Pelo telefone”, por exemplo, teve um nascimento semelhante.
Inezita conhecia a “Moda da pinga” desde criança, quando a ouvia nas rodas de viola que os peões promoviam na fazenda de sua família. “Os violeiros, quando gostavam muito de uma música, iam criando e pondo versos de improviso a mais”, lembrou ela, em depoimento registrado no livro Inezita Barroso: com a espada e a viola na mão, de Valdemar Jorge. “No outro dia, nem lembravam o que tinham inventado, mas eu anotava tudo. Eu fiz várias gravações para caber todos os versos”.
A canção traça uma divertidíssima descrição, em primeira pessoa, da relação de um pinguço com a pinga: o fascínio pela “branquinha” ou “amarela”; os efeitos da bebida, que faz trupicá, esfria o calor e faz suadô de noite; e, por fim, o inconveniente de vez por outra voltar pra casa de braços dados… com dois soldados.
“Moda da pinga” foi gravada por Inezita em 1953, num de seus primeiros discos de 78 rpm. Do outro lado, ela registrou um samba-canção de um zoólogo amigo seu, que até ali nunca havia sido gravado — ninguém menos que Paulo Vanzolini. A música era aquela que se tornaria seu maior sucesso: “Ronda”. É exatamente ela que Inezita canta no show do Sesc Consolação logo depois da “Moda da pinga”.
A cantora, que até então se acompanhava sozinha ao violão ou à viola, recebe Evandro do Bandolim e seu Regional, formado por Lúcio França (cavaquinho), José Pinheiro (violão de 7 cordas), Zequinha (pandeiro) e Josué (violão). A partir de “Ronda”, os músicos seguem com ela até o fim do show, mostrando parte do repertório que gravariam no ano seguinte no disco Inezita Barroso canta e Evandro no choro.
Curiosidade: a letra que Inezita canta é diferente da que se tornou famosa na década de 1970 (ela teve algumas regravações, mas só estourou em 1977 na voz de Márcia). Em 1953, os versos eram: “No meio de olhares espio/ Nas mesas dos bares você não está/ Volto pra casa abatida/ Desenganada da vida/ No sonho eu vou descansar/ Nele você está”. A letra conhecida traz os versos “Em todos os bares você não está”, “Desencantada da vida” e “O sonho alegria me dá”.



Acompanhada de Evandro e seu Regional, Inezita segue no clima de seresta em “Chão de estrelas”, de Orestes Barbosa e Silvio Caldas. A costura do agudo do bandolim com o grave do violão de 7 cordas cria o ambiente perfeito para o canto de saudade da “mulher pomba rola que voou”. Uma gravação pungente e reverente da cantora para um clássico que já havia ganhado dezenas de gravações, entre elas uma leitura irônica dos Mutantes na década anterior.
Apesar de ser profundamente urbana, “Chão de estrelas” carrega em seus versos imagens que remetem ao ambiente bucólico tão caro à Inezita, e muitas vezes presente no universo sertanejo. Como no trecho de destacado primor poético que encerra a canção: “A porta do barraco era sem trinco/ E a lua furando nosso zinco/ Salpicava de estrelas nosso chão/ E tu pisavas nos astros distraída/ Sem saber que a ventura desta vida/ É a cabrocha, o luar e o violão”.
“Carinhoso”, de Pixinguinha e João de Barro, dá continuidade à sessão que rememora os sábados do restaurante Casa de Inezita. A canção, sempre lembrada em rankings de críticos ou em votações populares como uma das maiores da história da música brasileira, soa ainda mais nostálgica na voz grave de contralto perfeito da cantora.
Ao registrar “Carinhoso”, Inezita reafirma seu papel de guardiã de memórias musicais do país. A cantora sempre reconheceu na música urbana do início do século XX uma extensão da mesma tradição afetiva e artesanal da tradição caipira. Sua interpretação confere nova camada ao percurso histórico da canção, que já atravessara sambistas, cantores de rádio, a geração dos festivais e agora ganhava o timbre carregado de chão da artista paulista — como se o choro carioca visitasse o interior de São Paulo.
Inezita se despede do público com a igualmente urbana e nostálgica “Perfil de São Paulo”, que assim como “Lampião de gás” rememora o passado da metrópole. “Aonde estão teus sobrados/ De longos telhados/ E teus lampiões?/ E os moços da academia/ Na noite tão fria/ Cantando canções?/ E sinhazinha delgada/ Pisando a calçada/ Na tarde vazia”.
Quando a canção parece rumar na direção de um mero lamento saudoso, a conjunção adversativa a converte em declaração de amor à cidade: “O tempo tudo mudou/ Mas não apagou/ A tua poesia/ Não mudou/ Não se apagou/ A tua sedução”. Inezita encerra a canção sustentando longamente a palavra “coração”, como se materializasse ali, em som, seu amor não só por São Paulo, mas pelo Brasil. E, sobretudo, pela beleza pura que se mostra em suas roças mitológicas e que sobrevive, como resistência caipira, na alma das capitais.
Leonardo Lichote é jornalista, crítico musical e curador artístico. Paralelamente, iniciou nos últimos anos um trabalho como letrista de canção.
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