Lídia Jorge: ode à vida 

30/09/2025

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Premiada escritora portuguesa reflete sobre como o luto mudou sua forma de pensar e fazer literatura

POR MATHEUS LOPES QUIRINO
FOTOS NILTON FUKUDA

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No início de 2020, a escritora portuguesa Lídia Jorge, na época com 74 anos, via as ruas se esvaziando pelas janelas de sua casa, em Algarve, no sul de Portugal. Naquele momento, o mundo era contaminado pelo coronavírus. A vida entrou em suspensão. Em pouco tempo, as fronteiras se fecharam, a pandemia da Covid-19 foi decretada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e o governo português anunciou um rígido toque de recolher. Lídia Jorge, que tinha o costume de visitar a mãe, Maria dos Remédios, de 92 anos, no Lar da Santa Casa da Misericórdia de Boliqueime, encontrou as portas do local fechadas no domingo de 8 de março daquele ano. 

A escritora portuguesa não viu mais a mãe com vida; ela faleceria em 19 de abril daquele ano, vítima de complicações da Covid-19. Lídia Jorge precisou de um tempo para voltar a escrever. E a superação veio com o romance Misericórdia (Autêntica Contemporânea, 2024), inspirado nos últimos anos da matriarca, num lar para idosos. No livro, o leitor acompanha dona Alberti, junto a coadjuvantes que refletem sobre a existência, mas que também fofocam, choram, riem, brigam e amam.  

A complexidade das relações humanas e a crítica social são pilares da obra dessa premiada autora. Ainda que muitas vezes surjam temas complicados de tratar, sua escrita transforma pensamentos, ações banais e conflitos pela teia do lirismo e da sensibilidade. A autora confessa que desejou escrever um enredo diferente de tudo o que já havia feito. “[Misericórdia] é um livro de paixão, que tem uma meditação sobre a existência”, conta. 

Considerada uma das grandes damas da literatura portuguesa, Lídia Jorge nasceu na pequena cidade de Loulé, no Algarve, em 18 de junho de 1946, em uma família de camponeses. Foi uma das primeiras crianças de seu vilarejo a estudar. Quando saiu de casa para frequentar o Liceu, levou consigo um ditado materno: “Fica sozinha, governa-te”. Depois dos anos escolares, entre os livros e o ativismo político, a escritora chegou à capital portuguesa em 1965 para cursar a faculdade de filologia românica na Universidade de Lisboa.  

No início da década de 1970, como professora, viajou ao continente africano para lecionar em países lusófonos, testemunhando os últimos momentos da Guerra Colonial em Moçambique, findada com a Revolução dos Cravos, em Portugal (1974). Seu primeiro livro, O dia dos prodígios (1980), foi motivado por essas e outras tensões sociais. Ao longo de quarenta anos, ela conquistou dezenas de prêmios pelos mais de 20 títulos publicados, como O vale da paixão (1998), revisto pela autora e relançado neste ano com o nome Diante da manta do soldado.  

Misericórdia foi agraciado com o prêmio Médicis de livro estrangeiro em 2023, juntamente com o romance I do not bid farewell, da sul-coreana Han Kang, que recebeu o Nobel de Literatura em 2024. Anualmente, Lídia Jorge é um dos nomes lembrados para receber a honraria da Academia Sueca. 

Em 2021, a escritora foi escolhida pelo presidente de Portugal, Marcelo Rebelo de Sousa, para ser conselheira de Estado do país para assuntos relacionados à cultura. Em seus livros, o empoderamento feminino e a crítica à desigualdade se tornaram suas marcas. Também aborda as conquistas e mudanças da sociedade portuguesa em meio século, além de compartilhar sua trajetória, da infância aos primeiros passos na literatura, lugar em que traz à tona temas contemporâneos, como a crise migratória e o fechamento de fronteiras. Nesta Entrevista, realizada em julho, durante A Feira do Livro, na capital paulista, a escritora fala sobre a relação entre Brasil e Portugal, reflete sobre a história de seu país e os caminhos da escrita literária. 

Em 10 de junho, a senhora presidiu as comemorações do Dia de Portugal e de Camões na cidade de Lagos, quando discursou sobre várias questões delicadas que têm afetado o continente europeu, como o preconceito contra imigrantes. A exemplo do número de deportações de brasileiros, que cresceu mais de 700% no último ano. Dada a relação histórica entre Brasil e Portugal, como vê essa situação hoje?  
Portugal foi o colonizador do Brasil e foi uma relação traumática. Essa relação ainda não está completamente ultrapassada. Contudo, a sociedade brasileira tem as suas camadas controversas – que precisamos compreender. Porque nenhuma sociedade é homogênea. Fala-se muito que continua existindo um substrato escravocrata muito forte [no Brasil]. Vê-se isso muito [presente na sociedade], [o que gera] uma espécie de impossibilidade para o desenvolvimento do país. A desigualdade também existe em Portugal. Há uma espécie de desentendimento entre as pessoas, nos dois países, por não acreditar em uma unidade, uma causa comum a todos. Porque, a partir do momento que nós entendermos que somos uma soma, não vale a pena pensar que o passado nos desune. O passado é para ser conhecido para que o presente o ultrapasse. Para recomeçar um novo mundo sem escravos e senhores. Hoje, as sociedades que têm em sua matriz o imigrante e a miscigenação quer expulsá-los, como tem acontecido nos Estados Unidos. Alguns países não têm capacidade para ver quem vem para servir a nação e quem não vem. E é um modelo [de intolerância] que está em curso.

É possível mudar esse modelo?  
Penso eu que, para além de todas estas divisões que nos passam, é preciso olhar nos olhos e perceber que o futuro é um futuro de superar as diferenças que nos separam. Os direitos humanos, que são absolutamente horizontais, deveriam fazer parte de nossa cartilha cotidiana. É chocante ver que os portugueses, que andaram por toda parte para ganhar a vida, estejam esquecidos desse passado e queiram expulsar [imigrantes] de uma forma cruel, sem ter a noção daquilo que é o acolhimento. É preciso proteger os que chegam e os que estão. É preciso [que haja] leis justas. Eu não advogo uma porta aberta escancarada, mas defendo que, entrando, temos que nos entender uns com os outros. O migrante que vem é um ser pleno de direitos. Precisa ser ouvido, respeitado.

Portugal é notoriamente conhecido por ser a terra de um “povo pessimista”, haja vista o fado, que é lindo, mas muito triste e nostálgico. A que se deve essa melancolia?  
Quando se diz que os portugueses são tristes e melancólicos, é verdade. Mas quando sentimos uma espécie de autosatisfação é ao contrário. Sonhamos muito. Somos ambivalentes. Passamos de um estado de pessimismo, imediatamente, a um estado eufórico. Então, acho muito difícil caracterizar os portugueses. É muito fácil passar do sentimento de que não valemos nada para o sentimento de que somos os maiores. Nós somos gente carente de reconhecimento. Andamos sempre à procura daquilo em que somos bons, para ficar novamente eufóricos e superar esse fundo pessimista, essa falta.  

A questão da falta impactou as sociedades em diversas frentes. Como lidar com o sentimento que está no cerne da sociedade?  
Temos dificuldade de ilustrar aquilo que pensamos com medo de sermos punidos, com medo de não sermos aceitos, com medo de perder o emprego, com medo de que o patrão nos olhe de lado, com medo de perder dinheiro. Existe a nós [portugueses] esse medo atávico da perda. E por isso esse sentimento [da pobreza] é permanente e faz, a meu entender, com que a democracia falhe pela falta de um diálogo aberto. Nesse momento, a falta de diálogo aberto é extraordinária porque está a ser substituída por uma espécie de agressão aberta. Isto é, em vez de haver diálogo, passou-se a outro nível. A cultura digital veio substituir aquilo que seria um diálogo como uma espécie de confronto. Não com opiniões, mas com afirmações irredutíveis que criam uma espécie de estado latente de crueldade entre as pessoas. 

A literatura pode combater essa crueldade?  
A literatura é um antídoto poderoso, ainda que seja uma espécie de softpower. Porque é muito difícil escrever um livro que consiga, em um momento, travar uma guerra. Me lembro de uma escritora que morreu na guerra da Ucrânia [refere-se à Victoria Amelina (1986-2023)], que, de certa forma, descreveu e previu a situação. Seus livros não conseguiram salvá-la. A literatura tem o poder de deixar exemplos póstumos. Quem a ler no futuro vai formar uma consciência e negar aquilo que é a violência. A ação não é imediata. É um processo de reflexão para a criação de valores melhores. É uma formação preventiva, mas que não tem o poder da votação, que pode se ter na ONU (Organização das Nações Unidas). É um poder diferente.  

A senhora acompanha movimentos sociais, políticos e conflitos desde a década de 1970. Quais mudanças e eventos foram mais significativos para a sociedade portuguesa?  
Dá-se a Revolução dos Cravos e, dois anos depois, cria-se um novo Código Civil, porque o Código Civil de antes [da Revolução] era medieval. Essa é uma mudança extraordinária, muito por conta da liberdade de imprensa e de expressão, que foi fundamental para as mulheres,  além da influência do movimento feminista, que começa antes, com o livro Novas cartas portuguesas [obra de referência escrita por Maria Isabel Barreno (1939-2016), Maria Teresa Horta (1937-2025) e Maria Velho da Costa (1938-2020), entre 1971 e 1972]. As mulheres não eram donas de si em nada. Hoje, em Portugal, há uma questão fundamental: as mulheres são donas de seu próprio corpo. São elas que determinam quando podem ser mães. E isso é uma coisa que distingue a sociedade.  

Essas conquistas estão consolidadas ou ainda sob ameaça de sofrer retrocessos?  
Hoje, eu olho para o passado e vejo que ainda há resquícios da sociedade de antigamente. Porque uma sociedade não muda tão rapidamente. No mundo do trabalho, as mulheres ainda não assumem posições como a dos homens, mas seu valor é reconhecido e elas competem por toda parte. Por mais que haja movimentos retrógrados e violência, esse pensamento de liberdade faz parte de uma cultura superior que alcançamos com muita luta.

Como transpor os dramas reais para a ficção, como fez em Misericórdia 
O escritor é sempre um observador do mundo. Estou sempre querendo ver, querendo saber, querendo espiar, querendo espreitar. No caso do livro, é uma situação muito particular. Não fui uma colaboradora fria, mas alguém envolvido. Tive a capacidade de perceber as relações humanas, quando se há uma espécie de fragilidade do corpo em contraponto com os sonhos da alma. Essa situação, eu vi durante três anos, de forma muito presente.

Então, o livro começou a ser elaborado antes da morte de sua mãe?  
Quando a minha mãe faleceu, por diversas razões, eu percebi que era impeditivo escrever esse livro de imediato. Sobretudo porque ela me pediu para que eu escrevesse um livro chamado Misericórdia. Eu não quis escrever um livro sobre ela, mas um livro a partir dela e, portanto, essas tantas figuras que aparecem na história são uma personagem coletiva, mas surgem como personagens individuais que expressam seus sentimentos. No livro, há um choro, mas há também um riso. Tem o dia fervilhante, mas tem a noite pesarosa que nunca mais acaba.  

Como foi lidar com a morte à espreita em lares para idosos? Em determinado momento do livro, a senhora escreve: “Vence-me noite, se és capaz”.  
E [a noite] não a vence. Ela [a personagem] fica até o fim. É ela quem tem a última palavra [no livro]. Porque o livro tem várias batalhas, é um livro de resistência. Para se superar [a morte], para que fique o belo, para que se fique jovem, para que se continue a amar, para ter todas as funções devidas até o fim. Dignidade. Por isso, é isso mesmo [um desafio]: “Vence-me noite se és capaz”. E ela não é capaz de vencer. Ali [no Lar da Santa Casa da Misericórdia de Boliqueime, onde minha mãe residia], não estavam só os mais velhos. Estavam também os jovens que cuidavam. Isso é curioso, porque há uma mistura das idades, de todas as idades. Foi isso que me deu ânimo para escrever esse livro. Essa mistura de experiências que passei a transfigurar.  

Transformar a realidade em ficção nos remete aos livros do início da sua carreira, no começo da década de 1980. Os temas sociais, ainda que tratados com lirismo em Misericórdia, são pilares de sua literatura?  
Exatamente. Em geral, meus livros costumam reproduzir os movimentos da história atual. São mais sociais. O período em que morei na África foi muito forte. Foi o fim de um império de quinhentos anos.  

Como foi presenciar a revolução histórica desencadeada pela Guerra Colonial Portuguesa?  
Eu era muito jovem, tinha acabado o curso universitário, e percebi que estava vivendo o momento último de dominação não só do império português, mas o momento último de uma dominação da Europa sobre a África. Foi uma luta intensa e injusta. Injusta para jovens portugueses que morriam, que ficaram despedaçados, feridos, avariados da cabeça, traumatizados de toda maneira. E era injusta para os outros que morreram [no campo de batalha]. Quase um milhão de portugueses morreram no período, e, do outro lado, não sabemos a quantidade exata de pessoas, não há quantificação. Foi um período de muito sofrimento. Eu comecei a escrever literatura a partir daí. 

A senhora vem de uma família camponesa, e a literatura, historicamente, sempre esteve associada à elite. Como a literatura começou a fazer parte da sua vida?  
O método que foi usado [comigo] foi selvagem. Havia uma biblioteca em casa com os autores românticos do século 19 e comecei a ler em voz alta as histórias de autores populares do campo, como Camilo Castelo Branco (1825-1890) – que não eram para a minha idade. Foi uma experiência traumática, porque a literatura romântica é muito dramática. E nesse universo, a morte aparecia frequentemente. Os abandonos, as tragédias, os amores súbitos que levavam as pessoas a morrerem e a matarem. Eu fazia uma mistura. Ia das histórias infantis às dramáticas. Eu fui uma criança dividida entre dois mundos [ficção e realidade]. Curiosamente, foi isso que acabou por me fazer escrever sobre a vida. Escrevia para me sentir em paz. Sentir que havia harmonia no mundo. Foi uma espécie de antídoto que encontrei com a escrita.  

Assista a trechos dessa Entrevista com a escritora Lídia Jorge, realizada n’A Feira do Livro, em julho de 2025.

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