
Há cem anos, nascia o multifacetado ator e diretor que assinou importantes capítulos da história do teatro e da televisão
POR MANUELA FERREIRA
Leia a edição de OUTUBRO/25 da Revista E na íntegra
Em agosto de 1972, a telenovela O primeiro amor prendia o Brasil em frente à televisão. Muito desse sucesso era motivado pela interpretação do ator e diretor Sérgio Cardoso (1925-1972), no papel do professor Luciano, o protagonista. A trama estava a apenas 28 capítulos do fim quando o intérprete faleceu prematuramente, aos 47 anos, vítima de um ataque cardíaco, no auge da carreira e da popularidade. Seu enterro levou 15 mil pessoas ao Cemitério São João Batista, em Botafogo, zona Sul do Rio de Janeiro, e espelhou um país em choque. Confirmava-se ali o artista como uma figura central na consolidação das telenovelas, uma das expressões marcantes da cultura nacional. Para além da tela, em sua breve vida, Cardoso foi referência para outros colegas de profissão e grandes nomes das artes cênicas, tido como um dos maiores e mais profícuos atores e empresários teatrais do seu tempo.
Recuperar a memória e o legado do criador é o cerne do livro Sérgio Cardoso: ser e não ser (2024), das Edições Sesc São Paulo, escrito pelo professor, pesquisador e diretor teatral Jamil Dias [leia mais em Luz e sombra]. A obra desvenda não apenas um artista de abordagem única, com uma predileção pela grandiosidade lírica do teatro clássico, o que o diferenciava da vertente realista que caracterizava a maioria de seus contemporâneos, mas, também, os matizes que faziam dele um indivíduo ímpar, cuja autenticidade se refletia tanto nos palcos, quanto em sua própria existência. “Sérgio Cardoso foi um homem fascinante e, também, muito contraditório. Conviver com essas contradições e mais um lado sombrio, abissal, de sua personalidade não era certamente algo simples para ele e para os que o acompanhavam mais de perto. Mas, para estes últimos – assim como para o público em geral – havia o seu lado brilhante, carismático, que compensava tudo. Para mim, a imagem que fica é a de um artista cuja trajetória não pode ser esquecida”, explica o biógrafo.

Ventos do Norte
Foi em Belém do Pará, sua cidade natal, que Sérgio Cardoso deu seus primeiros sinais artísticos. Mesmo em uma família católica e tradicional liderada pelo pai Francisco, gerente de banco, o menino, por vezes introvertido, encontrava a liberdade para suas imitações, fosse nas brincadeiras com os irmãos ou nos colégios jesuítas por onde passou. Essa inclinação inata o levou ao seu primeiro papel, aos 20 anos, já estudante de direito na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Era a montagem de Romeu e Julieta, de William Shakespeare (1564-1616), encenada pelo Teatro Universitário (TU). Na peça conduzida pela atriz Esther Leão (1892-1971), interpretou Teobaldo, explosivo e orgulhoso sobrinho de Lady Capuleto e primo de Julieta. Para o trabalho, mergulhou no rigor do texto clássico de tal forma que isso se tornou uma etapa fundamental em seu desenvolvimento como ator.
“Quando jovem, ele foi um frequentador assíduo da vida cultural do Rio de Janeiro: espetáculos, conferências, exposições – o seu círculo de amigos era todo formado por pessoas muito interessadas por essas atividades. Mas, os cursos de teatro não tinham a presença que têm atualmente, mesmo em grandes centros como Rio de Janeiro e São Paulo. O aprendizado teatral se dava mais pela apreciação do trabalho de atores consagrados, tanto nacionais (observando-os atentamente em peças teatrais) quanto internacionais (por meio do cinema ou das visitas ao Brasil de importantes companhias estrangeiras – que aconteciam com razoável frequência)”, analisa Jamil Dias. Ao conhecer o Teatro do Estudante do Brasil (TEB), contudo, Cardoso selou sua decisão de abraçar de vez a veia artística, abandonando o sonho de ingressar na carreira de diplomata no Itamaraty.
Chamado interior
A seleção para o protagonista de Hamlet, montada pelo TEB, em 1948, consolidou a mudança de rumos: o rigoroso concurso para a segunda montagem brasileira da peça reuniu 82 candidatos, avaliados por um júri notável que incluía a poeta Cecília Meireles (1901-1964) e a escritora Dinah Silveira de Queiroz (1911-1982). Nos bastidores, comentava-se que o ator Luís Linhares (1926-1995) era o favorito, mas Sérgio Cardoso, preparado com afinco, e incentivado pelo ator e amigo Sérgio Britto (1923-2011), surpreendeu. A cena do teste é descrita em Sérgio Cardoso: ser e não ser: “Um certo desânimo aparecia no humor de alguns jurados quando chegou a vez de aquele jovem magro, de aspecto tímido e formal, usando pesados óculos de grau, mostrar a sua versão do mais célebre monólogo do teatro ocidental. Ele levantou-se de sua cadeira, em mangas de camisa, tirou os óculos de lentes grossas, deixando que a plateia percebesse seu olhar perturbador. Sua voz envolveu os presentes e fez-se o milagre: durante alguns minutos, todos o acompanharam num silêncio total, com surpresa e admiração. Quando ele terminou, a multidão concentrada no pequeno auditório explodiu em entusiástico aplauso”.
Com o sucesso do espetáculo, a atenção da imprensa provocou, também, uma certa má vontade em relação ao comportamento de Sérgio Cardoso, “que contribuiu para disseminar, em pouco tempo, um vasto anedotário a seu respeito, ou pelo menos uma ampliação dos fatos reais: que ele desmaiava muitas vezes nos agradecimentos finais, procurando absorver todas as atenções; que era dado aos mais diversos achaques antes de entrar em cena; e outras idiossincrasias resultantes do êxito súbito e precoce”, escreveu Jamil Dias. Em 1949, Cardoso daria outro importante passo ao fundar o Teatro dos Doze, onde levou aos palcos Arlequim, servidor de dois amos, de Carlo Goldoni (1707-1793); Tragédia em New York, de Maxwell Anderson (1888-1959), e o infantil Simbita e o Dragão, de Lúcia Benedetti (1914-1998), sob direção artística de Ruggero Jacobbi (1920-1981), ampliando seu repertório artístico.
Com a companhia, adquiriu tanto prestígio quanto dívidas, que o forçaram a encerrar as atividades do grupo e aceitar a proposta para integrar o recém-criado Teatro Brasileiro de Comédia (TBC), projeto fincado em São Paulo, e que incluía uma estrutura profissional inédita no país. Na nova companhia, Sérgio Cardoso atuou em vinte espetáculos, entre os quais A importância de ser prudente, de Oscar Wilde (1854-1900); Seis personagens à procura de um autor, de Luigi Pirandello (1867-1936) e Anjo de pedra, de Tennessee Williams (1911-1983), em que brilhou ao lado da atriz Cacilda Becker (1921-1969).

Tempo de mudança
Segundo a atriz, diretora e pesquisadora Lígia Cortez, a investigação que Cardoso empreendeu para desenvolver sua atuação em Hamlet, na qual predomina a leitura do personagem como um homem ferido, justamente por ser bom e generoso, também mostra o quanto ele não se acomodava com saídas fáceis. “A paixão que ele nutria pelo ato interpretativo, composição de personagens, domínio e profundidade do texto, é algo que veio a se tornar não só um traço do seu trabalho, mas um valor que ele compartilhou com uma multidão de colegas de cena”, reflete. Para Cortez, de forma inédita, Sérgio Cardoso se reinventava a cada novo papel, como se o novo personagem demandasse uma construção sempre original de gestos, de atitudes, de intenções e de expressão vocal.
“Nesse ponto, a pesquisadora Maria Thereza Vargas destaca a habilidade do ator em fazer, mesmo dos textos mais complexos, uma lição de interpretação, pela particularidade com que ele se apropriava de cada fala, ‘uma aula do bem-dizer’. Essa apropriação íntima e autoral dos textos em que Sérgio Cardoso atuava é ainda mais notável quando se tem em conta que o repertório dele incluiu personagens célebres de autores de culturas e épocas bastante distintas, a exemplo de Molière (1622-1673) e Nelson Rodrigues (1912-1980) e que, ao se experimentar como ator nessas construções, Cardoso contribuiu para esboçar uma assinatura brasileira para a interpretação de obras clássicas – e fez isso tanto individualmente, como ator, quanto no trabalho coletivo de formação estabelecido junto aos grupos teatrais onde esteve inserido”, define Lígia Cortez.
A paixão que ele nutria pelo ato interpretativo, composição de personagens, domínio e profundidade do texto, é algo que veio a se tornar não só um traço do trabalho dele próprio, mas um valor que ele compartilhou
com uma multidão de colegas de cena
Fios do destino
Casado com a atriz Nydia Licia (1926-2015) e pai da pequena Sylvia, buscou novos desafios e aceitou ser o principal ator da Companhia Dramática Nacional (CDN) no Rio de Janeiro. Lá, brilhou em peças como A falecida, de Nelson Rodrigues (1912-1980), e A raposa e as uvas, sob a direção de Bibi Ferreira (1922-2019). Em 1954, fundou a Companhia Nydia Licia-Sérgio Cardoso, focada em repertório nacional. Dois anos depois, o Teatro Bela Vista, na capital paulista, foi aberto como sede do grupo, apresentando uma aclamada nova versão de Hamlet – o local foi rebatizado, em 1980, como Teatro Sérgio Cardoso. Com a separação do casal, em 1960, a companhia se desfez, período de grande sofrimento pessoal para o artista e no qual também iniciaria uma transição do teatro para a televisão, vivenciando um bem-sucedido deslocamento entre linguagens, para o qual a personalidade do artista contribuiu essencialmente.

“Vários aspectos me impressionaram [nesta virada]. Primeiramente a capacidade de vencer as barricadas dos preconceitos de ambos os lados, que eram muito fortes na época – tanto o desprezo da gente do teatro pela televisão, por considerá-la superficial e indigna de um verdadeiro artista, quanto da gente da televisão, por considerar os artistas de teatro muito formais, pretensiosos e técnicos para o veículo, incapazes de atingir a espontaneidade buscada por esse veículo”, comenta Jamil Dias. No caso de Sérgio Cardoso, segundo o escritor, não havia a intenção de fazer televisão, e ele se dispôs a experimentar o veículo (a telenovela) num momento muito difícil da sua carreira e, inicialmente, apenas por razões econômicas.
“Mas, para surpresa geral, o talento e o carisma do ator o transformaram logo em um fenômeno de popularidade, levando as emissoras de televisão a abrirem espaço para Sérgio, e para ele trazendo de volta a glorificação do público que experimentara no início de sua carreira teatral. (…) Em seu trabalho, era dotado de um grande cuidado técnico, mas também de uma entrega emocional que não raro atingia o território da irracionalidade. Vejo-o como um ator romântico, capaz de encantar com a beleza de sua voz, a potência de suas caracterizações e a força de suas emoções – ainda que isso lhe custasse um preço bem alto em termos pessoais”, enumera o autor.
Atos finais
Tais doses de sentimento e doação fazem parte das recordações da médica, pesquisadora e professora Sylvia Leão, filha do artista e guardiã do acervo dos pais Nydia Lícia e Sérgio Cardoso. “Eu era criança ainda e fui levada para vê-lo ao final do espetáculo A raposa e as uvas, no Teatro Bela Vista. Ele fazia o papel de Esopo, um escravo maltrapilho, com uma maquiagem pesada que o envelhecia, deformado às custas de uma corcunda falsa e com as pernas retorcidas com ataduras, fazendo-o ficar em uma posição forçada. Ele estava visivelmente cansado, e o suor no rosto fazia a maquiagem escorrer. Mas o olhar dele era brilhante, orgulhoso com o resultado daquele dia. Nunca esqueci aquele olhar. Quando ele me abraçou, me fez entender o que aquilo tudo significava para ele”, rememora.
A proximidade da família e de amigos é outra lembrança que a filha traz consigo. “Nos últimos anos, fazia almoços na casa dele no Rio de Janeiro, convidava os colegas da emissora, e sempre contava com a presença da minha avó. Contava casos, fazia piadas, centralizando a atenção de todos. Gostava de cozinhar e de receber pessoas. Ele até fazia um jantar de Natal para os colegas que não podiam voltar para suas cidades porque tinham gravação no Rio”, recorda Sylvia. No final de sua vida, o ator se dedicava aos preparativos do recital Sérgio Cardoso em prosa e verso, que pretendia estrear após o fim da telenovela O primeiro amor. Também visitou amigos, participou do Programa Silvio Santos, e confidenciou, feliz, a uma jornalista do Diário de São Paulo, que deixaria a televisão por um tempo para voltar aos palcos.
para ver no sesc / bio
Luz e sombra
Biografia lançada pelas Edições Sesc São Paulo apresenta meticulosa pesquisa sobre triunfos, fracassos e reinvenções do lendário ator

Sérgio Cardoso transcendeu cenários: sua notável versatilidade o impulsionou para uma trajetória marcante no cinema e na televisão, aspectos detalhados pela obra biográfica Sérgio Cardoso: ser e não ser (2024), de Jamil Dias. No cinema, teve atuação destacada em A madona de cedro (1968), de Carlos Coimbra (1927-2007) e foi protagonista em Os herdeiros (1970), de Cacá Diegues (1940-2025).
Na TV Tupi de São Paulo, construiu uma sólida carreira em teledramaturgia, sendo figura central em sucessos como O sorriso de Helena (1964) e Antônio Maria (1968). A partir de 1969, sua carreira se expandiu para a TV Globo, onde se destacou em produções populares como Pigmalião 70 (1970).
Publicada pelas Edições Sesc São Paulo, a obra mostra como as qualidades do ator despertaram, paradoxalmente, admiração e inveja, e geraram boicotes. Além disso, a publicação analisa o polêmico blackface na telenovela A cabana do Pai Tomás, de 1969, na qual Cardoso interpretou um homem negro, em uma escalação que provocou protestos contundentes à época, especialmente do dramaturgo Plínio Marcos (1935-1999).
A biografia também aborda a “lenda urbana” de que o artista teria sido sepultado vivo, vítima de catalepsia. Tal boato infundado, embora veementemente negado por familiares e médicos, alimentou o vasto imaginário em torno de sua figura ao longo das décadas.
Edições Sesc São Paulo
Sérgio Cardoso: ser e não ser
Autor: Jamil Dias
2024. 368 páginas.
Mais informações em sescsp.org.br/edicoes
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