Nutrir raízes com Aline Guedes

30/09/2025

Compartilhe:

Chef defende valorização dos saberes das comunidades quilombolas, da culinária afrodiaspórica e da cultura alimentar brasileira (foto: Wolas Salviano)

POR MARIA JÚLIA LLEDÓ 

Leia a edição de OUTUBRO/25 da Revista E na íntegra

Quando criança, Aline Guedes subia no banquinho do balcão da cozinha para pilar o alho, enquanto observava os movimentos rápidos e precisos da mãe, dona Benedita, no preparo da comida, em casa, na Cidade Tiradentes, zona Leste de São Paulo. Na época, a chef tinha apenas sete anos, mas já começava a nutrir afeto e admiração por aquela mãe que preparava com tanto cuidado, pelas noites, a marmita que a família iria comer no dia seguinte. Essa recordação de cheiros, sabores, ervas e histórias maternas a acompanha até hoje em suas receitas e pesquisas sobre cultura alimentar e culinária afrodiaspórica.  

O encanto pela comida materna, no entanto, logo foi confrontado com a realidade fora de casa. Fosse na faculdade de gastronomia ou nos restaurantes onde trabalhava, a chef notava, repetidas vezes, que pratos e ingredientes estrangeiros ditavam o cardápio tido como apropriado e sofisticado. Mesmo quando participou de programas de televisão de gastronomia – The Taste Brasil (2005), exibido pelo canal GNT, e Mestre do sabor (2021), pela TV Globo – observava a resistência de jurados e participantes ao defender uma cozinha afro-brasileira. Passados 20 anos desde que se formou, Aline Guedes observa que essa herança colonial, presente nas culinárias europeias que aportaram no Brasil, não é mais uma unanimidade. Cada vez mais, profissionais, pesquisadores, escolas e espaços comerciais voltam-se para técnicas, preparos e ingredientes de diferentes regiões do país.  

Mestre em hospitalidade pela Universidade Anhembi Morumbi, especialista em vinhos, pós-graduada em administração e organização de eventos pelo Senac São Paulo e graduada em tecnologia em gastronomia pelo Centro Universitário Senac, a chef ainda se dedica à pesquisa sobre a alimentação de comunidades quilombolas no estado de São Paulo, e escreve uma coluna para o canal Nossa, do portal UOL. Neste Encontros, Aline Guedes compartilha momentos de sua trajetória profissional, sua postura em defesa da valorização da culinária afro-brasileira, bem como dos saberes e fazeres quilombolas.  

Arroz
Meu início na cozinha se dá quando eu tinha sete anos, na minha casa, quando fiz o primeiro arroz. Acho muito difícil descolar a minha trajetória profissional de tudo que vivi antes. A minha mãe é minha grande inspiração na cozinha. Sempre foi funcionária de casas de família, onde também começou, muito nova, a trabalhar – com sete anos, mais ou menos, minha avó a colocou para trabalhar numa dessas casas, onde ela começou a cozinhar. Ela chegava em casa sempre muito tarde e entendi que, se eu fizesse arroz, ela descansaria. Naquela noite, ela sentou-se à mesa com a família e agradeceu, muito feliz. Eu sei que não estava tão bom, senti sal demais e estava duro, mas ela falou que estava perfeito. Então, foi uma forma de perceber o que minha mãe já fazia conosco: tratar o alimento como um cuidado também. A partir daí, passei a cozinhar: pegava os livros de receitas dela e fazia todas para que ela tivesse um respiro. 

Primeira
Comecei na faculdade de gastronomia aos 17 anos. Na verdade, queria fazer jornalismo, porque eu tinha como grande inspiração a [jornalista e apresentadora] Glória Maria (1949-2023). Ela era uma referência enquanto mulher negra. Aí, minha mãe virou para mim e falou: “Não, você vai fazer gastronomia, porque a doutora Adriana e a dona Lúcia combinaram comigo que, se você fizer gastronomia, elas pagam sua faculdade”. Sou a primeira da minha família a fazer um curso de graduação. É sempre meio chocante quando falo que eu não tinha intenção de fazer gastronomia, mas eu sei que, conscientemente, o meu receio era de que eu tivesse que ser uma substituta da minha mãe nesse lugar que ela ocupava nas casas onde trabalhava. Depois de um tempo na faculdade e no meu primeiro estágio, a gastronomia realmente se tornou uma paixão na minha vida, porque eu enxerguei outras possibilidades. Foi um momento, também, em que conheci uma chef de cozinha incrível, a Benê Ricardo (1944-2018), uma mulher negra, a primeira mulher no Brasil a ter uma formação profissional voltada para a gastronomia e a ser chef de cozinha. Então, eu me inspirei muito nas mulheres que eu passei a conhecer. 

Reviravolta
Eu achava que, para ser uma boa chef em qualquer restaurante, eu precisaria dominar as técnicas que me foram ensinadas, sempre muito bem executadas. E que aquela cozinha baseada em técnicas clássicas francesas era a melhor, que eu precisava me desenvolver, enquanto profissional, para que eu fosse reconhecida e valorizada. Demorou muito tempo para entender que o que me faria feliz seria me reconectar com as minhas raízes e para que eu entendesse essa possibilidade de me conectar com essa cultura que é minha, de recuperar essa identidade que foi perdida. 

A chef de cozinha Aline Guedes (foto: Wolas Salviano)

Mestrado
Trabalhei em muitos restaurantes, ingressei na faculdade enquanto professora, mas depois do meu mestrado, que é um marco na minha vida, foi quando comecei a enxergar a gastronomia de uma forma diferente. Começo estudos mais aprofundados e me reconecto com essa ancestralidade. Minha cozinha sempre esteve ligada ao afeto que eu sempre tive pela minha mãe e pelas histórias que ela me contava. Sempre gostei muito de pirão, por exemplo, sem saber que o pirão tem uma raiz africana muito forte. Eu gostava porque minha mãe contava que minha avó, que tinha 12 filhos, ia no final da feira pegar uma cabeça de peixe, que alguém dava para ela, e com aquela cabeça de peixe, ela fazia pirão para a família inteira. Era essa a relação que eu tinha com o alimento: uma relação de histórias que me eram contadas, de entender o que a minha avó fazia, logo, minha mãe fazia também. As minhas memórias mais emblemáticas são aquelas que eu tenho com a minha mãe e aquelas que eu produzo hoje, na minha casa. Na minha cozinha, eu tenho um pilão, colheres de pau, um galho de louro pendurado, a imagem de São Benedito. 

Reconexão
Hoje a minha cozinha tem cara, cheiro e sabor. Me libertei de amarras. Essa cozinha se torna algo que tem relação com a minha pesquisa, tem relação com a terra, porque a primeira vez que eu pisei no quilombo, senti uma energia completamente diferente. Depois de começar a estudar sobre as comunidades quilombolas e comunidades africanas, entendi essa questão da cozinha afro-brasileira, uma cozinha diaspórica. Percebi que tinha relação com quem nós somos, enquanto afro-brasileiros, enquanto esse povo que teve, de alguma maneira, esse elo cortado. Porque, no período de escravidão, a gente perde nossos nomes, nossas famílias, nossos elos com a terra África, a terra mãe. Então, eu acho que, de alguma maneira, nesses estudos, eu percebi que eram possíveis algumas reconexões.  

Quilombola
O Brasil é um país quilombola. Essa é uma frase que eu levo, carrego e defendo. Então, eu acho que as comunidades quilombolas e os quilombolas hoje, as comunidades tradicionais, têm um papel fundamental na preservação da nossa própria história enquanto brasileiros. Além de nós termos uma série de ingredientes que são típicos do nosso país, que são consumidos e utilizados nessas comunidades, que trabalham sempre com a sustentabilidade, respeitando o solo, entendendo que da terra a gente tira o nosso alimento e que é para a terra que a gente vai voltar de alguma forma. Ou seja, existe esse respeito pela terra, que carrega também esse potencial de levar adiante essa cultura e de realmente fazer com que a cultura alimentar no nosso país, as culturas alimentares se mantenham vivas – ainda que a gente siga, muitas vezes, valorizando o que vem de fora. 

Prato feito
Quando a gente pensa em restaurantes de alta gastronomia, pensa numa comida que tem mais valor e que é mais bonita, principalmente. Pensa em restaurantes que têm uma perspectiva europeia, em ingredientes que vêm de fora ou em técnicas que fazem com que aquele prato não se pareça um prato brasileiro, da nossa alimentação cotidiana. Os nossos pratos em casa, normalmente, são pratos em que a gente traz generosidade. Quando se diz que a farofa, o pirão, ou que a farinha de mandioca e a própria mandioca são ingredientes direcionados para pessoas mais pobres, ou para uma cultura de escassez, se fortalece o que chamamos de racismo alimentar. Consequentemente, a gente deixa de ver beleza nos nossos ingredientes, nos nossos fazeres, nas nossas técnicas ancestrais africanas, afro-brasileiras e indígenas, porque outros não os consideram belos o suficiente para serem comercializados em pratos considerados de alta gastronomia. Por isso, uma das vertentes do meu trabalho é entender o potencial dos nossos alimentos. 

Educação
A alimentação tem um papel fundamental na educação de crianças. Quando a gente enxerga uma comunidade onde as crianças consomem ingredientes que já vêm cortados do supermercado, numa bandejinha de isopor, embalados, enlatados, a criança não tem a oportunidade de pegar aquele ingrediente in natura e saber de onde ele vem, saber como ele é, qual o sabor real que ele tem. Quando a gente não dá condições para as pessoas viverem bem dentro das comunidades quilombolas, de viverem dignamente, plantando e colhendo o que é possível para consumirem e que possam, além disso, fazer a comercialização do que acaba sobrando, a gente percebe que essa identidade vai se enfraquecendo. E por consequência, a comunidade vai enfraquecendo também. Eu acho que o alimento é um caminho importante e que é possível fazer com que haja essa relação de conexão, conscientização e de pertencimento. 

A chef e pesquisadora Aline Guedes participou da reunião do Conselho Editorial da Revista E, no dia 28 de agosto de 2025. A mediação do bate-papo foi de Débora Cravo, que integra a equipe da Gerência de Alimentação e Segurança Alimentar do Sesc São Paulo.

 

A EDIÇÃO DE OUTUBRO DE 2025 DA REVISTA E ESTÁ NO AR!

Para ler a versão digital da Revista E e ficar por dentro de outros conteúdos exclusivos, acesse a nossa página no Portal do Sesc ou baixe grátis o app Sesc SP no seu celular! (download disponível para aparelhos Android ou IOS).

Siga a Revista E nas redes sociais:
Instagram / Facebook / Youtube

A seguir, leia a edição de AGOSTO na íntegra. Se preferir, baixe o PDF para levar a Revista E contigo para onde você quiser!

Conteúdo relacionado

Utilizamos cookies essenciais para personalizar e aprimorar sua experiência neste site. Ao continuar navegando você concorda com estas condições, detalhadas na nossa Política de Cookies de acordo com a nossa Política de Privacidade.