Sinal de fax

30/09/2025

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POR JÚLIA MEDEIROS
ILUSTRAÇÃO BRUNO DE SOUZA

Leia a edição de OUTUBRO/25 da Revista E na íntegra

A balança enorme, na sessão de ensacados do mercado. Milho, arroz, canjiquinha, feijão e a gente. O vô tira e coloca os contrapesos no equipamento: 23 quilos uma e 25 a outra, praticamente iguais. Falta um bocado pra completar dois sacos de milho — ele diz. Vovô, você vai vender nós duas de verdade? — a gente quer saber, mas só uma que pergunta. Vamos ver se alguém quer comprar. Mas antes tem que nos engordar na padaria, esqueceu, vô? Ele leva uma de cada lado, de mãos dadas. Arruma dois pães de queijo pra essas gêmeas — o vô pede no balcão. E iorgute também. Um pra cada — as duas falam.  

A gente come e bebe até pingar a última gota e lambe a garrafinha por dentro e apaga o bigode cor-de-rosa passando o beiço de baixo lá em cima. Estão vendo como elas estão magrinhas? Ainda falta um bocado bom pra dar dois sacos de milho — vovô explica a comilança pras meninas da padaria, elas riem, e ele resolve ir lá na frente da loja, quase na caixa registradora, pra levar o amaciante que o cliente tinha procurado e não achou.  

Daí pra frente, ele não engorda mais a gente. Sobe as escadas de dois em dois degraus, até chegar na administração pra contar dinheiro, molhando os dedos numa espuminha de contar dinheiro e amarra cada maço de nota com elástico amarelo, fazendo uma cruz, com a cara séria. A gente então pede à Marcinha secretária uns papéis partidos e uns elásticos e treina fazer a cruz e finge molhar os dedos na espuminha e escreve qualquer coisa muito importante na máquina de escrever e bate carimbo fazendo, sobretudo, barulho e gira na cadeira giratória pra pegar mais elástico, muito sérias, e volta a fingir os dedos na espuminha, que não está na nossa mesa, mas lá na outra sala, que é só dele, com uma mesa também dele, e cadeira de couro acolchoado que, numa girada só, te deixa perfeitamente de frente pro fax. Ele não vai usá-lo agora. Agora, ele bate nas teclas da calculadora fazendo, sobretudo, barulho, que a gente combina com o dos nossos carimbos, enquanto espera a hora, está chegando, ele vai sair pro banco com um pacote de pão cheio de dinheiro, debaixo do braço. Estou indo levar o “saco de milho”, ele diz pra Marcinha, preocupado e apressado, sem reparar se a gente está mais gorda ou não, e tudo bem, a gente nunca viraria saco de milho comendo pão de queijo, que é de polvilho.  

As gêmeas, sempre de olho no avô, esperam que ele desça os degraus, um de cada vez, e dizem à Marcinha secretária que ela pode ir tomar café, sim, que elas vão ficar ali só batendo carimbo. A Marcinha faz soar a escada e as meninas correm pra sala do avô, com mesa enorme de madeira e vidro por cima. 

 

Prensados entre o tampo e o vidro estão São Cosme e Damião de papel e uma foto do mercado no dia da inauguração. As gêmeas dividem a mesma cadeira disputando o couro que gruda e desgruda das pernas na medida em que se ajeitam: duas cotoveladas e elas cabem. Enquanto uma faz conta com qualquer número na calculadora, a outra desenha no risque e rabisque uma balança que ficou parecendo quebrada. As netas tinham assistido ao tio ensinar o avô como se passa fax, no dia em que o aparelho chegou, e naquela manhã traçaram um plano para usá-lo. 

Tio, avô, mãe, Marcinha, mais uns três funcionários e as gêmeas querendo aprender o milagre, todo mundo amontoado entre a mesa e o aparador encostado na parede, que agora seria o Móvel do Fax. O tio liga pra Belo Horizonte e pede pra darem o sinal. Sinal de fax – ele diz. Todos esperam e, ninguém sabe como, do outro lado da linha, o fornecedor era capaz de dizer tim-tim por tim-tim  o que havia viajado no papel. Nem mesmo o tio sabia explicar. Ele só repetia que era assim que funcionava: você podia colocar texto, desenho, número — qualquer coisa rabiscada ou escrita à máquina — que o aparelho da outra pessoa, não importava que ela estivesse no Japão, imprimia o que o fax tinha engolido ali, em São João del-Rei, Minas Gerais.  Óbvio que era mágica — as gêmeas concluíram. 

Com o desenho da balança arrancado do risque e rabisque, elas decidem procurar na agenda telefônica alguém de Belo Horizonte, Minas Gerais, e, embora até que se chegasse à letra R todos os nomes viessem acompanhados apenas de sobrenomes, ali, quase no final, havia um “Roberto — Belo Horizonte”. Talvez por ter sido aflitivo não encontrar nada até o R, talvez porque Belo Horizonte fosse um lugar de alto prestígio e telefonar pra lá, mesmo que fosse pra dizer “sinal de fax”, exigisse certa imponência, o fato é que ao se lembrarem do momento em que encontraram o dito cujo, as gêmeas até hoje fazem uma pausa e repetem “Roberto — Belo Horizonte”. O nome inscrito no ar, como uma cidade no mapa. 

Será que é ele mesmo que compra o milho? E se não for?  

É só dizer que foi engano, que era pra outro Roberto.  

De Belo Horizonte. Isto, de Belo Horizonte. Então tá.  

Tá – uma diz à outra. Elas dão pulinhos e risinhos e quem ditou o número foi a gêmea, quem ligou foi a outra gêmea, elas sempre fazem questão de frisar. O aparelho chama três vezes e uma voz muito redonda diz “Alô”. Pálida e com o desenho já engatilhado na boca do aparelho, a gêmea diz “Sinal de fax” com uma voz tão grossa, tão entalada com um sabugo de milho na garganta, que a outra cospe uma risada que deve ter chegado no Japão sem precisar de fax nem nada. A gêmea arregala os olhos com toda a força, esperando que deles saiam raios exterminadores, e segue repetindo “Sinal de fax, sinal de fax”, sem mudar nadinha a voz de sabugo, enquanto a outra ri. Então a gêmea solta o papel e tapa a mão na boca da outra gêmea, que ri, ri, ri até o Roberto, lá de Belo Horizonte, desistir da voz redonda e mandar as duas caçarem mais o que fazer, Suas diaba! — ele completou, antes de bater o telefone. 

Claro que a gente saiu na porrada. A que continuou rindo muito mais do que batendo foi salva pelo trim do telefone da Marcinha secretária. Pausa. A gente se olha com a cumplicidade de quem não tentava matar a outra e escuta, lá de longe, degrau por degrau, os tamancos de madeira e couro, com tachas douradas, que a gente sempre quis ter, mas eram da Marcinha. Esconde, esconde! Esconde! Esconde rápido! Esconde, vai, esconde! Aquele barulhão de tamanco, a gente ofegante debaixo da mesa do vô, o telefone, o telefone, o tamanco, o telefone, o tamanco, o tamanco, tamanco, É do banco? — a Marcinha atende. Minha Nossa Senhora, mas como ele está? No hospital? Sei. Hum-hum. Tá bem, vou avisar pros filhos dele agora, pode deixar que já chegam lá. Tamanco, tamanco, tamanco, tamanco, Marcinha, sem pensar em degrau, escada abaixo. 

A gente também desce e Seu Nilso, dos frios, diz que diz que não precisamos nos preocupar, que nossa mãe precisou sair, mas já vai voltar. A Marcinha também saiu – ele diz. Que não estava sabendo nada de hospital não, que deve ter sido engano e que era pra gente ajudar lá nos ensacados, pois quem mais vai vender o milho?  

Já fazia uma semana que o avô estava no hospital quando as gêmeas chegam pra visitá-lo. A mãe tinha avisado que ele andava muito fraquinho, que precisava ter delicadeza pra estar com ele e as duas entram no quarto quase andando pra trás, de tanto receio. A mãe ri — não é pra tanto – mas vai ajudar as filhas a completarem o trajeto até a cama. O avô deitado, olhando fixo pela janela. Olha só quem veio te visitar, papai! — a mãe fala alto, animada, como quando chegava um amiguinho no aniversário das gêmeas e ela queria enaltecer o convidado. 

Ninguém nunca tinha precisado avisar ao avô que as netas estavam por perto — ele sempre soube de longe. 

O avô olha. Viu só como a gente engordou, vô? — uma diz. Ele olha. A gente trouxe milho pra você ver se está com bicho ou se pode vender. Foi Seu Nilso que mandou – a outra completa. A cabeça enrolada numa faixa, nenhum cabelo liso e preto e tão brilhante de creme Trim. O gato deve ter comido a língua dele — a gêmea arrisca uma gracinha e a mãe concorda – Comeu mesmo! — e ri enxugando umas lágrimas que ela nem tinha rido o suficiente pra que caíssem.  

O vovô ficou mudo, mãe? Não, meu amor, a gente ainda não sabe. Mas o que ele teve? Chama isquemia. Faltou combustível no cérebro e agora ele não está querendo funcionar direito, entende? Mas então por que não abastece de novo? Não funciona bem assim, meu amor.  

Ele olha a gente por um bom tempo, mas não vê dois sacos de milho, nem inventa que vai nos vender só pra gente comer e ficar forte. Sequer está sério, com cara de quem conta dinheiro sabendo que o saco só anda esvaziando. Nem morder o grão com o dente canino, pra ver se estava oco, ele soube! Nosso avô na nossa frente, lá no Japão. Vontade de desenhar a balança, o pão de queijo, Seu Nilso e a Marcinha, de escrever iorgute e passar tudo pelo fax pro cérebro dele.  

São Cosme e Damião esmagados no vidro, sem poderem fazer nada. 

Júlia Medeiros é de São João del-Rei (MG). Escritora, atriz, dramaturga, roteirista, compositora e gestora cultural há mais de 20 anos. Seu primeiro livro, A avó amarela, foi vencedor dos prêmios Jabuti 2019; FNLIJ – Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil; catálogo “White Ravens” – Biblioteca Internacional da Juventude, Munique; Catálogo Emília e “30 Melhores Livros do Ano”,  da revista Crescer. Seus dois últimos livros, Temporina e Zalém e Calunga (ÔZé/Ponto de Partida; 2022/2023) são adaptações de obras dramatúrgicas de sua autoria. Em 2025, compôs o Conselho Curatorial da Flipinha, na 23ª Festa Literária Internacional de Paraty (Flip).  

Bruno de Souza é artista plástico e arquiteto urbanista, nascido em 2001, no bairro Tejuco, de São João del-Rei (MG). Em sua pesquisa atual, Território: entre o corpo e a paisagem, investiga relações entre ancestralidade, memória e pertencimento. Recentemente, participou de exposições coletivas e individuais nos estados de MG, RJ e SP. 

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