Comer é cultura

13/10/2025

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Pesquisadora em alimentação, Joana Pellerano reflete sobre como os modos de comer expressam identidades coletivas, revelam heranças culturais e desafiam a pressa da vida contemporânea.


JOANA PELLERANO é doutora em comunicação e práticas de consumo (ESPM-SP), mestre em ciências sociais (PUC-SP) e em comunicação e gastronomia (Universitat de Vic, Barcelona, Espanha), além de bacharel em jornalismo (UFES). É professora e pesquisadora na área de alimentação, além de fundadora do site de divulgação científica Comida na Cabeça (comidanacabeca.com).


Cada povo tem sua língua. E ainda que o idioma possa ser o mesmo, as diferenças culturais se manifestam em expressões, sotaques e gírias de uma região para outra, de um país para outro. Com a comida, isso também acontece. A cultura alimentar ganha forma por meio de diferentes saberes, valores e significados.

Comer tem relação com a formação da identidade, indo muito além da necessidade biológica de ingestão de nutrientes. Comemos na companhia uns dos outros, reforçando laços, um fenômeno conhecido como comensalidade. E a comida também pode ser fonte de satisfação, algo que queremos partilhar com as pessoas que fazem parte das nossas vidas.

 Mas, em um cenário de rotinas aceleradas e comensalidade mediada por telas, como ficam as culturas alimentares?

Para a professora e pesquisadora em alimentação Joana Pellerano, fundadora do site Comida na Cabeça, é preciso entender o que tem valor para nós, do que gostamos e do que não queremos abrir mão nessa “corrida” alimentar. E, então, investir na preservação de técnicas, ingredientes e sabores que valorizamos.

Confira na entrevista a seguir:

Que conexões existem entre comida e cultura?

Comida é cultura porque, como seres humanos, precisamos nos alimentar. Esse ato é vital, e, ainda assim, não consumimos qualquer tipo de alimento. Fazemos escolhas e atribuímos significados a essas escolhas. Isto é o cerne da cultura: é a nossa capacidade, enquanto seres humanos, de atribuir significado às coisas. Coisas presentes, materiais, ausentes – que já estiveram aqui e não estão mais –, simbólicas.

O que não é material, não existe de verdade. Não podemos tocar, mas existem na nossa cabeça e fazem todo o sentido para nos ajudar a definir o que é bom, o que é ruim, definir do que gostamos, do que não gostamos, definir o que nos representa, o que fala sobre mim e o que não fala. Logo, o fato de fazermos escolhas em relação à alimentação e dar significados a essas escolhas é o que faz com que a comida seja cultura.

É por isso que comemos coentro em alguns lugares e não comemos urtiga. Ou que, em algumas situações, a gente talvez prefira camarão a frango, porque atribuímos um significado diferente ao camarão, mais festivo, do que concedemos ao frango, por exemplo. A cultura alimentar depende muito da região, das escolhas que aquela população fez e dos significados dados ali.

Então, precisamos considerar que o Brasil tem culturas alimentares, no plural?

Cada grupo social vai ter um grande conjunto de regras, formas de funcionar, crenças que vão ser compartilhadas e passadas adiante. Vira uma espécie de herança que vai sendo transmitida de geração para geração. E a comida está no meio desses códigos também. A escolha do que vamos comer será feita dentro do nosso grupo, que pode abranger desde uma pequena comunidade até uma população maior.

As escolhas e os significados atribuídos passam a falar sobre nós, e criam fronteiras imaginárias, que não estão deli[1]mitadas pelo mapa, mas que são definidas a partir dessas semelhanças e diferenças. Dentro do Brasil, aliás, dentro da cidade de São Paulo, temos várias barreiras simbólicas que vão dizer quem pertence e quem não pertence, a partir de definições feitas lá no passado, e que continuamos seguindo até hoje.

Claro que, com o tempo, alteramos determinadas normas, adequamos ao que faz sentido no presente. Mas trabalhamos em cima de um conteúdo que foi criado histo[1]ricamente pelos nossos antepassados. Mesmo que tenham ocorrido mudanças, estamos de alguma maneira reafirmando aquilo que foi definido dentro do nosso coletivo. É como determinar o que você vai comer em uma região, preparado de um jeito específico.

Quando falamos em cozinha brasileira, lidamos ao mesmo tempo com uma enorme diversidade e com certa confusão. Muitas vezes, encontramos cozinhas semelhantes que recebem nomes distintos. Há ainda inúmeros modos de comer no Brasil que não têm nome, não aparecem nos cardápios de restaurantes e tampouco seguem uma receita registrada. São práticas culinárias que vivem no cotidiano: estão na mesa das pessoas, sendo consumidas sem depender de um chef, de um registro formal ou de uma versão pronta disponível no mercado.

Como a comida se manifesta na construção da identidade de um povo?

A relação entre comida e identidade deriva da relação entre comida e cultura. Isso porque fazemos nossas escolhas dentro do nosso conjunto social, e essas escolhas nos definem. A identidade é uma história que a gente conta a nosso respeito.

Se o nosso grupo social vivesse completamente isolado de qualquer outro, não haveria uma necessidade de definir quem nós somos, porque estaríamos vivendo apenas entre nós mesmos. Mas, como tem um outro grupo ali do lado e percebemos que ele tem diferenças de comportamento em relação a nós, como comer algo diferente, falar, vestir-se ou cultuar uma divindade diferente da nossa, precisamos nos reafirmar.

Quando estamos tentando atrair outras pessoas para a nossa região e impressioná-las de alguma forma, que é o que acontece com o turismo, também nos adequamos ao que achamos que essas pessoas esperam de nós. A identidade não é uma coisa fixa, estável. Ela pode mudar ao longo do tempo e pode mudar também por essas influências externas.

Qual é o papel da experiência quando falamos em alimentação?

Comer pode ser perigoso, não é? Porque, quando comemos, levamos para nosso corpo algo com o potencial de nos fazer bem ou mal. Os seres humanos não conseguem definir se algo é comestível ou não até comerem e digerirem. Dessa forma, parece perigoso experimentar algo novo. E é por isso que vivemos num estado de alerta relacionado à alimentação, um estágio que vem muito antes dessa ansiedade contemporânea de comer demais ou a comida “certa”.

Só que, ao mesmo tempo, o ser humano é onívoro e não consegue tirar todos os nutrientes de um só tipo de comida. Precisamos de uma dieta variada para poder ter os nutrien[1]tes necessários para nosso corpo funcionar do melhor jeito possível. Por isso, ao mesmo tempo em que temos medo de experimentar, precisamos provar novos alimentos porque eles podem trazer, justamente, o que o nosso corpo precisa.

O ato de comer também sofre muitas influências. Os nossos cinco sentidos, funcionando em harmonia, criam o que é o sabor de alguma refeição, o sabor que associamos a um alimento, mas esses sentidos não estão funcionando só dentro da nossa boca. Se estamos em um lugar muito barulhento, por exemplo, percebemos o sabor diferente. Se a cor ou a temperatura do ambiente for diferente, a percepção do alimento também será. O jeito como algo é servido e a maneira como experimentamos vão impactar a nossa percepção.

Considerando que o ato de comer é cheio de simbolismos e múltiplas dimensões, como a comensalidade tem se apresentado diante das redes sociais?

Como sociedade, historicamente, gostamos de comer juntos. É um momento muito propício para se trocar normas e regras, para aprendermos a viver socialmente. Mas hoje em dia já não vivemos tão juntos quanto antes. Tivemos momentos em que éramos muito dependentes uns dos outros para sobreviver, éramos bastante frágeis enquanto espécie. Agora, estamos em um momento social um tanto quanto individualista. Estamos nos afastando uns dos outros. Assim, o “comer junto” também ganhou outras perspectivas.

Comemos junto estando separados, por meio de uma tela. Eu como daqui, você come daí, comemos ao mesmo tempo compartilhando essa refeição. Algo que fizemos muito durante a pandemia. Comemos juntos de maneira assíncrona. Eu como agora e fotografo ou filmo, coloco na minha rede social, e alguém vai ver daqui a várias horas, dias ou até anos. Essa pessoa pode comentar, interagir, dizer que também quer comer, pegar o nome do restaurante e ir lá, ou pegar a receita que eu fiz e reproduzir na casa dela. São novos jeitos de se comunicar e de comer junto.

Mas isso cria a sensação de que tudo está acontecendo no momento presente. Mesmo que a pessoa tenha comido aquele prato há dois anos, para mim que estou vendo uma foto agora, parece que isso está acontecendo nesse momento. E isso vai criando, mesmo sem perceber, um senso de imediatismo muito grande. Isso impacta a maneira como vivemos no mundo.

E vamos nos acostumando a essa rapidez que as redes sociais provocam, o que impacta o jeito que cozinhamos e, obviamente, o jeito que comemos. Muda a forma como nos relacionamos com os alimentos, que vai ganhando novos contornos. Vai deixando de ser comida para ser só nutriente, ou de ser prazer para ser só saúde. São várias alterações que acontecem ao longo do tempo, mas que são temporárias. A mudança hoje é essa, amanhã pode ser outra.

Corremos o risco de perder muitos “modos de fazer” tradicionais?

Isso é inevitável, porque a gente vem perdendo modos de fazer desde que a humanidade existe. Não tem como manter tudo exatamente o mesmo. Nós nos transformamos ao longo do tempo e algumas coisas vão ficando para trás, e novos elementos vão sendo criados também.

O que precisamos saber é o que estamos dispostos a perder ou trocar. É pensar que, se uma técnica ou um modo de fazer não é relevante para as pessoas hoje em dia, essa técnica eventualmente vai se perder. Se não temos interesse em aprender, em replicar, em fazer na nossa casa ou em pagar alguém que faça – e pagar de maneira justa – para que novas pessoas tenham interesse em continuar fazendo, vamos perder.

Precisamos entender o que valorizamos, do que gostamos e do que não queremos abrir mão. Investir nisso e dizer: “Isso aqui eu estou a fim que permaneça”.

E como podemos nos apropriar das nossas escolhas alimentares?

Estamos sempre pensando um pouquinho em comida. Mas já pensamos com mais urgência, porque era mais difícil de conseguir alimentos e a variedade não era tanta. Em muitos grupos sociais, isso ainda acontece. Vemos sociedades muito grandes ainda com fome, sem acesso à comida, mesmo que a produção de alimentos seja suficiente, se olharmos globalmente. E isso são questões que não são necessariamente individuais. São questões sistêmicas que precisam de investimentos governamentais e não só da sociedade civil.

Ao mesmo tempo, há formas de aprendizado que se desenvolvem nas comunidades pequenas. São essas trocas, essas partilhas de informação sobre aquilo que comemos, aquilo que não comemos e os seus significados.

Temos um conceito que é o letramento alimentar e nutricional, que vem sendo mais falado ultimamente como um sinônimo de educação alimentar e nutricional, mas mais no sentido de um conhecimento que precisa ser acessado a respeito daquilo que se come, para que as pessoas possam tomar melhores decisões individualmente, não só enquanto sociedade. Mas, como todo conhecimento, esse letramento não é acessado da mesma maneira nas diferentes camadas sociais e econômicas. Elementos como renda, gênero, raça, local de moradia, local de origem e o tempo que é gasto com deslocamentos diários vão influenciar a maneira como as pessoas aprendem a respeito da alimentação. E o acesso que elas têm a determinadas comidas. Dependendo da região da cidade em que a pessoa mora, ela tem mais acesso a alimentos frescos ou a ultraprocessados, por exemplo.

O valor simbólico que atribuímos às coisas não é igual para todo mundo. O significado que eu dou a um tomate ou a um pote de ketchup vai ser diferente de acordo com todas essas questões. Temos necessidade de aprender a ler essas informações, que também têm relação com conteúdos publicitários. Não temos mensagens publicitárias de alimentos frescos dizendo: “Veja como esses alimentos são incríveis”. Temos isso nos ultraprocessados. E as pessoas vão acreditar nessas mensagens se forem as únicas que ouvirem, sobretudo se forem informações que se unem às necessidades que elas têm no seu cotidiano.

É importante transformar a informação em conhecimento, para que possamos tomar decisões melhores sobre o que comemos. Mas isso não basta, porque se alimentar bem depende de outras coisas, é uma questão sistêmica, não é só individual. Não sou só eu comigo mesma tomando decisões, sou eu dentro de um contexto, morando em tal bairro, pegando ônibus e metrô, cozinhando ou com dinheiro para ir a um restaurante. O jeito que comemos não se separa do resto da nossa vida.

Veja também a matéria: A saúde está na mesa.


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