
Das plantas alimentícias não convencionais às hortas urbanas, o gestor ambiental Guilherme Ranieri enxerga na comida de verdade um caminho para fortalecer laços com a terra, resgatar saberes tradicionais e garantir soberania alimentar.
GUILHERME REIS RANIERI é gestor ambiental (EACH/ USP), mestre em gestão ambiental (IEE/USP) e doutorando em patologia (FMUSP). É especialista em identificação, produção e uso das Pancs na alimentação, e já atuou em projetos de introdução de Pancs na alimentação hospitalar e escolar.
Alimentos frescos têm mais sabor e nutrientes preservados. Mas essas não são as únicas razões para consumir alimentos produzidos localmente. Saber onde e como é cultivada a nossa comida possibilita escolhas conscientes. E ao valorizar e apoiar produtores locais, é possível contribuir com a construção de sistemas alimentares mais sustentáveis, do ponto de vista social e ambiental.
A agricultura urbana e periurbana envolve a produção de alimentos dentro das cidades e em suas zonas de transição. A proximidade entre produtor e consumidor estreita relações, além de ampliar o acesso a alimentos in natura. É plantar na cidade para comer na cidade.
Para o gestor ambiental Guilherme Ranieri, especialista na identificação, produção e uso das plantas alimentícias não convencionais (Pancs) na alimentação, essa proximidade é fundamental para a saúde dos ecossistemas e para a soberania alimentar. O que também inclui hortas urbanas, caseiras e em canteiros públicos.
Confira na entrevista a seguir:

Que conexões a comida tem com a biodiversidade?
Tem grande relação. Hoje, observamos um fenômeno chamado “erosão cultural”, que consiste no declínio da identidade, das práticas e das tradições culturais, devido a influências externas ou internas, somado a uma monotonia alimentar cada vez maior. Cerca de 350 espécies são consumidas como alimento no mundo, compondo a maior parte das culturas alimentares, das quais 150 delas são realmente relevantes e compõem aquilo que a gente encontra nos mercados, nas feiras, na produção comercial. Então, 150 plantas são a nossa base alimentar.
Somente no Brasil, há por volta de 2 a 5 mil espécies com potencial alimentício. É muita coisa, temos um potencial absurdo. E há estudos que fazem o levantamento do último século e mostram o quanto a nossa alimentação está sofrendo erosão cultural. Tivemos, por exemplo, uma perda de cerca de 90% da variedade de maçãs e quase 95% das variedades de alface.
Se não temos acesso a esses vegetais, é uma cultura que se perde, porque a gente não transmite isso para nossos filhos, paramos de consumir e de reforçar o vínculo com aquele alimento. Aqui no Brasil, são tantas as variedades que sumiram, de milho, de mandioca, de abóbora, de frutas, de hortaliças, de tudo que se possa imaginar. Estamos ficando cada vez mais urbanos, dependendo cada vez mais de comprar no supermercado, e perdendo o contato com a terra, o que vai afetar a nossa alimentação. Quem sabe dizer cinco variedades de manga hoje?
Como surgiu seu interesse por plantas comestíveis não convencionais?
Eu comecei com esse interesse muito novo, porque eu sempre fui meio nerd das plantas. E eu queria identificar uma planta, queria saber o nome dela. Tinha uma planta que nasceu na casa da minha mãe e eu queria saber o nome. Era um matinho muito fofo. Fui atrás, e naquela época não tinha inteligência artificial e aplicativos para isso. Então, eu tive que ir “assuntando” e descobri que um dos nomes populares era major-gomes. Quando eu fui procurar por ela na internet, eu caí na página de um menino, de quem eu fiquei amigo depois, que falava: “Ah, a gente mora aqui na Serra da Cantareira e essa é uma das principais verduras do mato que a gente come”. Eu fiquei perplexo: “mas isso aqui pode comer?”.
A minha família tem um pé na cultura caipira pela minha avó, que morou na roça quando criança. E ela falava do broto do chuchu, da flor da abóbora, da folha da batata–doce, mas era só isso. Então, eu não tinha noção a quantas opções nós não tínhamos acesso.
Ainda na faculdade, eu comecei a ficar muito encantado por essas plantas. Ficava no computador da faculdade, que tinha acesso a todas as revistas internacionais, pesquisando. E como tenho facilidade com nome científico e com biologia, fui assi[1]milando. Em 2014, comecei uma página totalmente descom[1]promissada, como um hobby. Foi o blog Matos de Comer.
E você tem uma Panc favorita?
Depende da semana, depende do meu humor. Mas eu tenho umas favoritas, para as quais vou levar os critérios de sabor, beleza, cultivo fácil e abundância. Gosto muito da vinagreira-roxa, da ora-pro-nóbis, da chaya, também chamada de espinafre mexicano. E das espontâneas, que nascem sozinhas, tem cariru, major-gomes, serralha, picão. E folha de nabo ou mostarda silvestre. Acho que são essas, se eu tivesse que escolher. Mas não sei escolher entre elas.
Como podemos nos aproximar mais dessa diversidade e trazê-la para o prato?
Eu vejo três caminhos. E, aqui, muita gente tem que dar as mãos para trabalhar junto. Primeiro, vem a área da nutrição. Porque quem está elaborando o cardápio das escolas, dos hospitais, das unidades prisionais, determina a compra pública. Então, o nutricionista está aparelhado dessa possibilidade.
Só que tem que ter uma parceria junto ao agrônomo, para que haja agricultores atendendo àquela demanda e sendo valorizados. Quem está no campo conhece essas plantas. E muitas vezes conhece o uso medicinal ou lembra que comeu quando era criança. E é muito importante que os locais que fornecem alimentação também tragam isso como diferencial.
Em segundo, precisa ter trabalho de pesquisa nas universidades para mostrar que isso é seguro. Muita gente fica receosa, com medo do mato. Mas confiam muito na indústria. Se lançam um refrigerante azul, sabor surpresa, muita gente vai tomar e ninguém pergunta se faz mal. Mas se é uma planta nova, a ciência precisa validar que é comestível.
O outro caminho que eu vejo é o turismo. A ora-pro–nóbis ficou muito famosa porque há mais de dez anos tem lá no município de Sabará, em Minas Gerais, um festi[1]val de ora-pro-nóbis, que eles fazem todo ano. Tem tudo de ora-pro-nóbis. Eles criam uma cultura de festival que fomenta o turismo na cidade. Não é sobre resgatar, mas sobre valorizar. Porque é algo que tem valor, a gente só não dá.
E como podemos valorizar saberes tradicionais quando falamos em Pancs?
A primeira coisa é criar o hábito alimentar. Quando adulto, eu entendo que é mais difícil. Então, começaria com as crianças, que inclusive é o meu trabalho. Vamos acostumando a criança com esse paladar que às vezes é diferente.
Os alimentos têm um gosto único, a taioba não tem gosto igual a outra coisa, tem o gostinho dela.
Eu trabalhei em um projeto em Jundiaí (SP) que envolvia incluir três plantas – azedinha, capuchinha e vinagreira – em 103 escolas. E fizeram muito sucesso. Foram mais de 35 mil crianças atendidas ao longo de cinco anos. E a gente vê que as crianças gostavam, inclusive elas gostavam mais do que as verduras convencionais. Não é que a criança não gosta de verdura. Uma verdura com um sabor diferente, uma textura e uma cor diferentes, pode agradar.
Então, as crianças comiam, gostavam e pediam às mães para comer em casa. Mas onde que a mãe compra? Ao mesmo tempo, precisa ter um projeto de capacitação do agricultor para que isso chegue a pelo menos uma feira, e que a pessoa saiba onde comprar. E outra atividade legal pode ser um concurso culinário, porque você coloca as pessoas para pensarem e pesquisarem modos de uso daquelas plantas.
E é importante que tenha a compra pública. E, às vezes, comunicar sobre o cardápio no dia anterior. Por exemplo, no prato do dia do hospital ter feijão com picão e explicar: “Pessoal, amanhã vamos ter uma comida preparada com uma planta que, além de muito nutritiva e muito gostosa, tem essa história por trás”. São formas de ir trabalhando essa aceitação aos poucos.
Como se iniciar no universo das Pancs? Tem alguma dica para aprender a identificá-las?
Geralmente, o preconceito é quebrado depois que a pessoa toma coragem de provar. Eu brinco que a primeira coisa é começar a comer aquilo que você não conhece, mas a que você já tem acesso. Às vezes, a pessoa quer comer uma coisa muito distante. Mas nunca comeu um maxixe, não sabe preparar um quiabo.
Então, vá à feira e pegue tudo o que você não conhece. Tanto de ingredientes que estão à venda, quanto a parte integral do alimento. Porque todo mundo ouve falar que a folha da cenoura ou a rama da beterraba são comestíveis. Mas quem está comendo isso de fato, se no fim da feira está tudo no chão, indo para o aterro ou para a compostagem? Comece pegando o que você já encontra na feira, as partes não convencionais e aquilo que você não conhece ou que não tem o hábito de comer.
O segundo passo é falar com seu feirante de confiança, que às vezes também é agricultor, e perguntar se ele consegue trazer algo que você tem vontade de provar ou que ouviu falar. Pode ser flor de abóbora, broto de abóbora, taioba… enfim, é algo muito simples, que você não tem trabalho nenhum, pois não precisa aprender a identificar a planta. É só combinar com seu feirante e procurar uma receita na internet.
A terceira possibilidade, que não é para todos, entra na esfera do hobby. É tentar treinar um pouco o olhar botâ[1]nico. Começar a entender as plantas mais comuns que pode encontrar na sua região, conversar com as pessoas que já moram na vizinhança. Com certeza, você vai encontrar picão, serralha, taioba, capiçoba em qualquer lugar do Brasil. Você vai treinando o olhar para identificar.
A horta caseira também é um caminho para a diversidade alimentar?
Claro! A horta caseira e a horta urbana como um todo, porque às vezes a pessoa mora em um apartamento que não tem sol, mas trabalha no posto de saúde que tem sol durante boa parte do dia. Vamos fazer uma horta juntos? Reúna mais duas colegas, alternem-se para regar, e já dá para ter uma horta em condomínio, em escola… temos muitos espaços que poderiam ser aproveitados para a criação de hortas urbanas.
O grande problema do urbano é a falta das condições ideais mínimas de cultivo. Ou não tem sol, ou não tem terra, ou não tem espaço. Mas tendo esse espaço, esse sol, essa terra, é um ótimo caminho. Porque essas plantas todas nunca estiveram no mercado. Essas plantas sempre fizeram parte dos nossos quintais, e é lá que elas podem voltar a ter seu lugar.
As hortas comunitárias e os jardins comestíveis podem auxiliar na soberania alimentar?
A grande conexão das Pancs, na verdade, é com a agricultura urbana. Elas podem ser produzidas em larga escala, mas algumas não tem um pós-colheita tão bom. Na agricultura urbana, você vai lá, colhe, come um ou dois dias depois. E grande parte dessas plantas é perene. Planta perene é aquela que você planta uma vez e ela produz para sempre. Você só rega e ela permanece produzindo comida.
Vinagreira, chaya, amora, ora-pro-nóbis, azedinha, capuchinha, folha de batata-doce, tem umas oito ou nove plantas que você pode ter, e ela vai alimentar por uns meses ou anos. Temperos também, dá para pensar em alguns.
São plantas que aguentam e toleram condições marginais, que não são as apropriadas. Porque quando falamos de plantar hortaliça de feira, como alface, tomate e rúcula, é preciso de 8 a 12 horas de sol por dia, terra superfértil, irrigação sempre, análise de solo. E as Pancs toleram outros ambientes, mais sombreados ou mais secos, solos mais pobres. Elas vão performar bem onde as hortaliças não performam. São plantas que oferecem vantagens importantes para fortalecer a soberania alimentar.
Veja também: Diversidade no prato: sabores da natureza

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