Sebastião Salgado ​por trás das lentes

30/10/2025

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Das montanhas mineiras, fotógrafo cruzou tempos e espaços registrando a crueza do ser humano e do planeta 

Leia a edição de NOVEMBRO/25 da Revista E na íntegra

POR LÍGIA SCALISE

Ao longo das últimas décadas, o mundo enxergou, pelas lentes de Sebastião Salgado (1944–2025), um retrato profundo da condição humana. O fotógrafo brasileiro documentou, com sensibilidade e rigor, algumas das realidades mais marcantes do nosso tempo: o êxodo de refugiados de guerra, o corpo exausto dos trabalhadores das minas, os povos originários da Amazônia e as paisagens ainda intocadas em diferentes continentes. Suas imagens mesclam a crueza da vida com a beleza natural do que resiste. Cada clique carrega um testemunho do sofrimento, mas também da dignidade, da fé e da esperança. 

Há, contudo, outro Sebastião Salgado, menos conhecido: aquele das conversas nos bastidores das montagens, das risadas cúmplices entre amigos e parceiros de uma vida inteira. Esse era o Tião, o amigo de muitos, o pai do cineasta Juliano e do pintor Rodrigo, e o grande amor da arquiteta, curadora e ambientalista Lélia Wanick Salgado, sua companheira de todas as jornadas. Em diferentes momentos e territórios, retratos revelam a imagem do homem por trás da câmera, consagrando-o em suas diferentes nuances. 

GÊNESE EM AIMORÉS 
Tudo começou na pequena cidade de Aimorés, interior de Minas Gerais. Lá estava a fazenda de gado do pai, o céu aberto sobre a Mata Atlântica, o rio ainda navegável e o trem carregado de minério que partia mundo afora. Foi nesse cenário que Sebastião Salgado nasceu e cresceu, cercado por sete irmãs, num vilarejo sem luz elétrica, entre banhos no Rio Doce e a escuta atenta àqueles que o cercavam. Afonso Borges, jornalista, escritor e amigo, conta que Tião adorava lembrar e contar a história dos caminhoneiros que ligavam os rádios nas baterias dos carros, aos domingos, e transformavam a praça em palco. Foi ali que ele aprendeu suas primeiras cantigas. 

“O Tião nunca deixou as ‘mineirices’ para trás”, recorda Borges. “Já com mais de 80 anos, ainda cantava músicas da infância. Tinha uma memória incrível para letras. Cantava com aquela voz grave e levava essas canções para onde fosse. Imagine esse homem, camuflado por 30 dias numa montanha em Ruanda ou viajando pela Amazônia, clicando e cantarolando músicas de menino. Tião viveu em Paris, rodou boa parte do mundo, mas sempre dizia com orgulho: ‘nunca saí de Aimorés’”. 

Lélia e Sebastião Salgado no Sesc Avenida Paulista (foto: Alexandre Nunis)

O TIÃO DA LELINHA 
Sebastião Salgado tinha 15 anos quando deixou Aimorés para estudar em Vitória (ES). Foi lá que conheceu Lélia, estudante de piano e, segundo depoimentos do fotógrafo, a menina mais linda que já tinha visto. Foi amor à primeira vista. E foi também o começo de uma parceria que atravessaria seis décadas. “Todo sábado, a gente ia comer pizza depois do cinema. Comprávamos uma garrafa de cerveja daquelas grandes e fazíamos nossos projetos de vida. Do dia que nos conhecemos até a partida dele, foram 61 anos juntos. Juntos mesmo, em todas as decisões, nos momentos difíceis e nos felizes”, conta Lélia Wanick Salgado. 

A vida a dois ganhou novos contornos quando Salgado conquistou uma bolsa de mestrado em economia e o casal se casou e se mudou para São Paulo (SP). Pouco depois, em 1969, tomaram uma decisão ainda mais ousada: buscar segurança na França, em tempos de ditadura no Brasil. “Hoje, eu vejo que o mais sério da nossa relação foi a aposta que fizemos de acreditar na vida. Fizemos isso quando nos casamos, quando saímos do país, quando ele largou tudo para viver de fotografia. Apostamos nas escolhas que vinham do nosso coração”, reflete. 

Na época, Sebastião Salgado trabalhava na Organização Internacional do Café, em Londres, e tinha uma carreira sólida como economista. Estava prestes a assumir um cargo no Banco Central e se preparar para o doutorado. Mas algo tinha mudado desde o dia em que pegou a câmera fotográfica que Lélia havia comprado para seus estudos em arquitetura. Sua primeira foto foi um retrato dela, sentada de perfil à janela. Depois disso, não largou mais a câmera. “Ele estava angustiado, dividido entre a estabilidade e o desejo crescente de fotografar. Fazia isso como hobby, mas queria mais. Até que um dia saímos para conversar, e eu disse: ‘a gente tem que viver a vida que gosta de viver, Tião’. Foi quando ele tomou coragem e pediu demissão. Voltamos para Paris sem dinheiro, mas com o desejo de recomeçar a nossa vida do zero.” 

Juliano, primogênito do casal, destaca o papel essencial da mãe na trajetória do pai. “O Sebastião sempre foi um homem inteligente e visionário, mas tudo que construiu foi ao lado da Lélia. Ela cuidava da curadoria, dos livros, das exposições, da agenda, dos contratos, da casa e dos filhos. Eles encontraram felicidade ao colocarem a vida a serviço da transformação social”, ressalta. Lélia Salgado conta que precisou aprender a lidar com as longas ausências do marido. “Nas primeiras viagens dele, eu mal dormia de tanta angústia. Uma vez, após deixá-lo no aeroporto rumo à África, parei o carro na estrada e chorei até cansar. Foi quando disse a mim mesma: ‘você só vai chorar se algo ruim acontecer com ele’. Isso me sustentou por toda nossa vida e serviu de exemplo para os nossos filhos.” 

Cineasta, escritor e produtor de cinema, Juliano conta que sentiu muito a ausência do pai, mas essa relação ganhou novos contornos na vida adulta. “Durante as filmagens do documentário O Sal da Terra (2014), que dirigi com Wim Wenders, é que nos aproximamos de verdade. Quando Sebastião se viu pelo meu olhar, ele se emocionou. Eu também. Ali nos reconectamos como pai e filho e como dois homens adultos”, relembra. Nos momentos de descanso, o cineasta conta que o futebol era uma paixão compartilhada em casa. “Assistir aos jogos do Paris Saint-Germain com o Sebastião era uma diversão. Ele reunia os amigos, sofria e se divertia para valer.” 

O amor do fotógrafo pela família não passava despercebido. Beto Marubo, liderança indígena com quem Sebastião Salgado dividiu longas expedições na floresta amazônica, testemunhou seu afeto incontáveis vezes. “Nunca vi um amor tão marcante. Ele falava de sua família, dos filhos, e principalmente da Lélia, todos os dias. Era um sentimento de paixão mesmo. Um amor grande, presente, vivo, e que me inspirou profundamente.” 

Sensibilidade e rigor foram duas importantes diretrizes no trabalho do fotógrafo Sebastião Salgado (foto: Alexanre Nunis). 

RIGOR E ESPONTANEIDADE
Metódico e pragmático, Salgado era movido pelo rigor em seu trabalho. “Falava sozinho enquanto montava as fotos. Reclamava da luz, elogiava uma sombra, murmurava com as nuvens sobre a previsão do tempo. Era um perfeccionista, cheio de planilhas e esquemas, que tentava prever cada detalhe da viagem. A gente ria ao vê-lo discutindo com a foto, como quem conversa com uma velha amiga. Tião também cantava o tempo todo”, relembra Beto Marubo. 

Em uma de suas expedições pela Amazônia, o jornalista Leão Serva, que também o acompanhava, se surpreendeu com outro hábito curioso: “Ele levava sacos e mais sacos de laranja para a floresta. Dizia que chupar uma laranja logo pela manhã era um hábito sagrado para a saúde. O interessante é que ele calculava o número exato de laranjas para que não faltasse nem para ele, nem para quem estivesse por perto”, conta.  

Serva também se recorda das habilidades do amigo com a marcenaria – inclusive para improvisar um vaso sanitário de madeira que pudesse levar nas viagens, devido às dores no joelho. “Ele tinha várias queixas e sequelas no corpo por conta das viagens que fez ao longo da vida. Mas, mesmo depois dos 70, mantinha uma energia invejável. Caminhava horas e horas sem cansar. Era difícil acompanhar o Sebastião, ele sempre foi um homem forte e ágil”, descreve o jornalista e amigo. 

Outro traço que fazia do fotógrafo o Tião que todos conheciam – e que não arrefeceu com o tempo – era sua curiosidade genuína pelas pessoas. “Ele queria saber o nome, a história, a comida favorita, o jeito de pensar de cada um que conhecia. E não fotografava ninguém antes de escutar e conquistar a confiança delas”, destaca Beto Marubo. 

Tião era aquele que aprendia com as pessoas e com suas vivências, e tinha uma capacidade ímpar para observar o ser humano. Marubo relembra um dos momentos mais marcantes de sua vida ao lado do amigo: “Na cultura do meu povo, a gente não consola alguém em luto com abraços. Então, quando meu pai morreu, eu não esperava esse tipo de gesto. Mas o Sebastião me chamou para o lado de fora da aldeia e disse: ‘eu sei que vocês não se abraçam, mas eu quero que você sinta esse abraço, Beto’. E me abraçou. Foi como sentir o abraço do meu próprio pai”, compartilha. 

Juliana Braga, gerente na Gerência de Artes Visuais e Tecnologia do Sesc (GEAVT), que trabalhou com Sebastião Salgado em diversas exposições nas unidades do Sesc São Paulo, relembra o quanto o fotógrafo era assertivo. “Sebastião tinha convicção. Quando ele e Lélia tomavam uma decisão, era difícil mudar. Mas ele sempre era muito justo.” Ela ainda se emociona ao recordar um momento especial: “Estávamos visitando o Sesc 24 de Maio, no Centro de São Paulo, e um grupo de estudantes se aproximou. Foi um alvoroço. Ele, que não gostava de selfie, foi de uma delicadeza absurda com os garotos. Atendeu a todos com carinho e se divertiu. Com o tempo, aprendi que ele era um homem muito racional e prático, mas também sensível”, conta. 

Para Álvaro Razuk, arquiteto que acompanhou mais de 25 montagens de exposições, o mais fascinante eram as histórias do fotógrafo por trás das imagens. “Jamais vou me esquecer dele contando como conseguiu registrar o atentado ao presidente americano Ronald Reagan, ou como enfrentou um elefante correndo em sua direção durante uma de suas viagens. Sebastião era um excelente contador de histórias e, ao mesmo tempo em que falava com naturalidade e orgulho de suas expedições pelos lugares mais extremos do mundo, gostava de reforçar que era um homem simples, vindo da roça”, relembra. 

DE VOLTA ÀS ORIGENS 
Foi na década de 1990, ao retornar à fazenda da família, em Aimorés (MG), que Sebastião e Lélia Salgado realizaram seu maior sonho: o Instituto Terra. “Eles fizeram dali não só um projeto de reflorestamento. É mais do que isso: é um símbolo para o planeta, uma lição de esperança”, explica o jornalista Afonso Borges. A região havia sido desmatada por pastos e o solo estava árido e exposto, mas voltou a verdejar. Desde 1998, já foram plantadas três milhões de árvores e o reflorestamento de mais de mil hectares recuperou mais de duas mil nascentes da bacia do Rio Doce. 

“A ideia do instituto foi minha. Sempre amei plantas, inspirada pelo jardim da minha mãe. Esta atividade ajudou o Tião a sair da depressão, porque ele não aguentava mais ver tanta desumanização mundo afora”, conta Lélia. Hoje, é Juliano quem assume a presidência do instituto – há 27 anos, uma organização não governamental voltada para a restauração ecossistêmica, educação ambiental e desenvolvimento rural sustentável da região –, dando continuidade ao legado dos pais.  

Leonardo Merçon, fotógrafo que trabalhou por uma década no Instituto Terra, recorda a generosidade e esmero do mestre na fotografia. “Ele cobrava, sim, porque amava aquilo. Cada detalhe importava. Mas também ensinava com paciência, compartilhava conhecimento. A floresta era como uma extensão da família, para ele. Era ali que ele via o futuro da humanidade e nos fazia acreditar nisso também.” 

SINFONIA FOTOGRÁFICA 
Leão Serva conta que, semanas antes de morrer, Sebastião Salgado estava animado com o projeto de um novo livro – uma coletânea de retratos de indígenas feita ao longo de décadas. “Não era só o livro de retratos. Ele estava envolvido em vários projetos simultaneamente. Estava finalizando uma espécie de sinfonia fotográfica concebida para uma orquestra francesa e articulando uma exposição inédita, programada para a primavera de 2026, em Los Angeles (Estados Unidos), com fotografias feitas em países da antiga União Soviética, da época em que produziu a exposição Trabalhadores”, revela o amigo.  

O fotógrafo vinha revisitando seu extenso acervo, garimpando imagens com o olhar maduro de quem carregava meio século de fotografia, mas sua saúde já estava fragilizada. Em uma ligação, reclamou de dores profundas, atribuídas a um novo remédio que havia melhorado suas plaquetas, mas não os glóbulos brancos. Disse que faria novos exames. “Sebastião não era de se queixar, mas disse que estava muito cansado. A energia não era mais a mesma. E me pediu algo que levo como um compromisso de vida: cuidar de um projeto que sonhamos juntos para a minha aldeia, de implementar um sistema de energia solar”, conta Beto Marubo. 

Uma leucemia grave, provocada por complicações da malária, que contraiu em 2010, na Indonésia, quando realizava o projeto Gênesis, estava cada vez mais resistente aos tratamentos. Mesmo assim, ele acompanhou de perto a preparação da exposição artística do filho caçula, Rodrigo, que nasceu com síndrome de Down. “Era um momento muito importante para nossa família”, conta Lélia. “As pinturas do Digo foram transformadas em mosaicos, colocadas nas janelas de uma antiga igreja dessacralizada, como se fossem vitrais. Trabalhamos por dois anos nesse projeto. Tião queria muito estar presente na montagem e até pediu que eu levasse uma cama para ele. Mas não dava. Ele ficou em casa, aos cuidados da nossa assistente, e, de lá da montagem, mandei fotos para ele acompanhar. Quando voltei, Tião estava tão fraquinho que mal conseguia falar, mas me disse: ‘As fotos estão lindas. Tudo está lindo’.”  

Sebastião Salgado faleceu no dia 23 de maio, aos 81 anos, em Paris, um dia antes da abertura da exposição do filho. Lélia conta que a família pensou em adiar o evento, mas sabia que a decisão teria desagradado o fotógrafo. “Pelo Rodrigo, ele faria qualquer coisa. Por isso, a exposição aconteceu, e Rodrigo encontrou conforto e alegria ao lado do irmão mais velho, Juliano”, lembra. “Tião partiu com a certeza de que tudo estava pronto”, finaliza Lélia. Cumprindo a vontade de Tião, suas cinzas foram depositadas no Instituto Terra e agora adubam a muda de uma peroba. “Vai virar uma árvore maravilhosa, um símbolo de vida”, completa Lélia. 

Presença eterna 
Fotógrafo Sebastião Salgado foi figura constante na programação do Sesc São Paulo

Produções audiovisuais revelam o pensamento, a estética e a ética do fotógrafo Sebastião Salgado (foto: Alexandre Nunis)

Nas últimas décadas, o Sesc São Paulo foi palco de inúmeras programações com o fotógrafo Sebastião Salgado. Entre os destaques, estiveram as mostras Êxodos (Sesc Pompeia), Gênesis (Sesc Belenzinho e Sesc Araraquara), Gold – Mina de Ouro Serra Pelada (Sesc Avenida Paulista, Sesc Guarulhos e Sesc Birigui) e Amazônia (Sesc Pompeia), a última, uma imersão visual e sonora na floresta e nas culturas indígenas, realizada em parceria com Lélia Wanick Salgado. 

Em duas edições, obras do artista foram apresentadas na capa da Revista E. A primeira foi em setembro de 2013, com o registro de um grupo de indígenas waurá pescando na lagoa Piyulaga, próximo à aldeia, em Mato Grosso, em 2005. Em julho de 2019, na celebração de 25 anos da publicação, a capa trazia uma fotografia realizada em 1986, na Serra Pelada, interior do Pará.  

Além disso, o fotógrafo também teve um depoimento publicado em maio de 2022. Leia um trecho a seguir, em que ele fala sobre o ato de fotografar: “Você vê a construção da imagem até o ponto em que a imagem alcança aquela parábola em frente a você, você evolui dentro dela até o ponto onde tem consciência de que realizou a imagem”. O depoimento completo pode ser lido aqui.

SESC DIGITAL  
Sebastião Salgado, Cidadão do Mundo  
Neste documentário, Sebastião Salgado conta como a fotografia foi seu passaporte para se aproximar das pessoas e destaca a importância do colega Cristiano Mascaro como um incentivador para ingressar na profissão. Direção de Aline Sasahara e produção da Documenta Vídeo Brasil. 
Assista sob demanda em sescsp.org.br/sebastiaosalgado 

Lélia e Sebastião Salgado  
Neste episódio da websérie Conexão, gravado em 2020, o casal reflete sobre os desafios da curadoria e comentam o processo de realização da exposição Gold – Mina de Ouro Serra Pelada, que passou pelas unidades do Sesc Avenida Paulista, Guarulhos e Birigui. 
Assista em bit.ly/leliaesebastiaosalgado

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