Perfil: Eliana de Lima

12/11/2025

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Ricardo Terto nasceu em São Paulo e é escritor, roteirista e editor de áudio. Trabalhou em diversos postos de atendimento e varejo, entre eles atendente de telemarketing, vendedor de roupas, livreiro, entregador e ajudante geral, até começar a publicar textos na internet e ganhar destaque com sua escrita.

Ilustração de Nazura. Artista visual e mestra em História Social, nascida em São Paulo. Sua pesquisa e prática orbitam o “Tempo-Afrofuturista”, investigando o corpo como território de memória, ancestralidade e resistência. Atua no muralismo, ilustração, moda e estéticas digitais, explorando subjetividades por meio de retratos simbólicos, cores vibrantes e narrativas afetivas.

Poucas pessoas podem bater no peito e dizer que são realmente pioneiras em algo. É até estranho pensar num mundo com tantas histórias ter algumas ainda sendo contadas pela primeira vez. Imagine ser uma voz que surge para contar e ser essa história. Imagine ser uma mulher que enche o peito para puxar o samba de uma grande escola de samba. Não uma mulher, aquela que abriu os caminhos na avenida. Imagine ser Eliana de Lima. 

Você não consegue imaginar Eliana de Lima sem antes ver a criança que veio antes. Antes de soltar o canto como aquela que um dia seria conhecida A Rainha do Pagode, a recém-nascida Eliana Maria de Lima soltava o choro como toda criança que tem como único reino o peito da mãe. Era 19 de setembro de 1961, mesmo ano em que outro pioneiro, o russo Yuri Gagarin, tornava-se o primeiro ser humano a viajar para o espaço. Já no Brasil, menos de um mês antes Jânio Quadros renunciava à presidência, começando as agitações que culminariam logo menos no Golpe Militar, que aí sim não teria nada de inédito e espontâneo. 

Eliana cresceu na Zona Leste de São Paulo, a região periférica que hoje é mais populosa da cidade que com 4 milhões de habitantes é maior que a população do Uruguai. Foi ali, nos anos 70, que uma série de políticas urbanas ampliaram o adensamento da região apelidada na época de “cidade-dormitório”, por conta da alta concentração de trabalhadores, muitos imigrantes, com empregos em outros locais.  Se você olhasse ao redor encontraria ladeiras, casas e cortiços, comércios locais nas praças e quase nenhum prédio tarifando o horizonte. A molecagem se fazia molecagem onde fosse possível, era um regime militar, mas o futuro sempre dá seu jeito. Fuscas e kombis contornavam os bairros vendendo aves, temperos e doces. Alguns bairros tinham até cinema de rua, com pipoqueiro na porta e tudo. Eu nasci em 1985 e nos anos 90, cinema de rua já era passado e algumas granjas podem ter virado fliperamas, o céu mais enfeitado de pipas, mais igrejas e botecos, mais gente nas ruas e, espiando pela janela, mais rádios na calçada e, nestes rádios, pagode.  Os mais velhos, no entanto, sabem que qualquer algazarra e folia que está por aí como coisa normal, percorreu uma história de luta. Durante a repressão, de cidade-dormitório a Zona Leste não tinha nada, havia sempre batuques para quem tivesse prestes a dormir no ponto. 

O samba que antes da Ditadura já era marginalizado passou a ser ainda mais perseguido em suas escolas e barracões, especialmente porque o samba sabe que, em época de repressão, pandeiro vira o escudo, e batuque, a resistência. 

Entre as escolas mais perseguidas estaria a Unidos do Peruche, que em 1972 decidiu desfilar com o enredo Chamada Aos Heróis da Independência, uma homenagem às revoltas como a Inconfidência Mineira e a Revolta dos Alfaiates na Bahia. Ih, esse papo aí de Heróis e Independência deixou os milicos de zanga e Carlos Alberto Caetano, o Seu Carlão do Peruche, junto do compositor Geraldo Filme chegaram a ser levados ao DOPS (Departamento de Ordem Política e Social) onde tiveram que “prestar esclarecimentos” sobre o enredo subversivo da escola, visto pelos militares como uma ameaça. 

E não é que eles estavam certos? 

Não foi sem querer 

Antes da internet e das redes sociais a única tela possível era a da televisão ou a janela que dava pra rua. 

É bem provável que Eliana de Lima não tenha visto o histórico desfile da Unidos do Peruche em 1972, quando nem tinha ainda completado os 11 anos. Afinal, com pais religiosos e mãe evangélica, o Carnaval não entrava nem pela TV. Ah, mas sempre existe um parente pronto para desalinhar (ou realinhar) o desejo dos pais. E foi a convite de um primo que, em 1979, Eliana foi parar no ensaio da Cabeções da Vila Prudente. O samba já era presente em seu toca-discos, onde escutava Alcione, Beth Carvalho, Martinho da Vila, João Nogueira, entre tantas outras vozes que ecoaram o cavaquinho, o pandeiro e o tamborim. 

A jovem Eliana de Lima já cantava em casa, na rua e até no ônibus (causando repreensão de sua mãe; duvido muito que os outros passageiros se incomodassem) e sonhava em ser Chacrete (como eram chamadas as assistentes de palco do Programa do Chacrinha, o mais popular do Brasil na época). Nisso de brincar de palco, já chamava atenção por sua voz desde cedo.oVltando ao fatídico dia da Vila Prudente, não é de se estranhar que no meio daquele batidão todo, o seu coração fez repique pela intérprete da escola, Silvia, que tinha um vozeirão. Foi naquele dia que ela decidiu o que queria ser e onde queria estar, o seu verdadeiro palco. Foi sem querer que derramou toda a emoção, mas não foi sem querer que passou a conviver com o samba semanalmente. De um ensaio para o outro, a jovem, agora decidida, decorou dez sambas, convencida da ideia de voltar à quadra da Cabeções e pedir pra cantar. 

A ousadia da menina deu certo. Aqui e ali ela foi fazendo sua voz começar a ser escutada. E então, um ano depois, aos 18 anos e já pela tradicional escola Príncipe Negro, do bairro de Tiradentes, na zona leste de São Paulo, Eliana finalmente fez sua estreia como puxadora com o enredo Cultura, divindades e tradições de um povo, dos compositores Rubão e Naor. Um momento histórico naquela época em que as escolas de São Paulo ainda desfilavam na Avenida Tiradentes, no centro da cidade. 

Cabe dizer que a função de puxar o samba enredo de uma escola é um grande privilégio. A voz de quem puxa se torna a voz que marca aquela história, que encarna todo trabalho da agremiação, um espaço tradicional até então ocupado somente por homens. Mas, se antes era incomum e improvável, Eliana de Lima passou a ser inquestionável como puxadora e uma das maiores intérpretes do Carnaval. 

Ilustração: Nazura

Avançando pelos anos 80, Eliana integrou boa parte da nata do samba em São Paulo, passando pela Mocidade Alegre, Rosas de Ouro e Nenê de Vila Matilde, entre outras. Mas sua passagem para Unidos do Peruche foi um capítulo à parte. O primeiro contato com a escola que foi conhecida como “a filial do samba” foi no ano seguinte ao do seu desfile com a Príncipe Negro. Na ocasião, a Peruche havia caído para o grupo 2 e Eliana defendeu o samba Moço de Prata, Vitória-Régia do Carnaval, que ajudou a escola a retornar ao grupo principal. Depois desse feito, refletindo suas grandes inspirações como Alcione, Beth Carvalho e Elza Soares, Eliana sai da escola pensando em gravar um disco solo. 

O disco ia sair só um tempo depois, mas nesse intervalo ela emenda dois carnavais na Mocidade Alegre, como apoio. Apesar de ser cada vez mais respeitada, os desafios de ser uma das mulheres pioneiras não deixaram de existir. Logo depois da passagem pela Mocidade, Eliana gravou o samba vencedor nas eliminatórias O Novo Paraíso, de Toninho de Carvalho, mas nunca chegou a cantar o hino na avenida. Ela contou em entrevistas anos mais tarde que havia sido barrada por ser mulher

Novos caminhos, antigas lutas, mas o samba continua 

Depois da frustração no ano anterior, Eliana de Lima volta para a Unidos do Peruche para uma passagem histórica. 

Era 1985, o ano da redemocratização. Milico nenhum teria a audácia de se intrometer no Carnaval e a passagem do tempo era banhada pelas águas. Águas Cristalinas, o samba enredo defendido por Eliana de Lima, com composição de Ideval Anselmo e Mestre Lagrila, tornou-se um dos marcos da Carnaval paulista. Seus versos “Mulher assume/o direito que é seu” ganhara, um sentido emblemático na própria trajetória da cantora, porque a partir dali foi projetada como um dos principais nomes do samba. 

Indo da água para o fogo, Fogueira De Não Se Acabar, o tão sonhado disco solo viria no ano seguinte, 1986, pela gravadora Continental. E essa estreia foi praticamente um novo desfile, com participações de nomes como Aldir Blanc e Jorge Aragão, entre outros. Eliana agora estava nas rádios, nos toca-discos e na avenida, abrindo alas. 

Em 1988, outro momento histórico, um dueto com nada mais nada menos que Jamelão, lendário cantor e intérprete da Mangueira, mas que neste ano trazia sua voz para a Peruche ao lado de Eliana de Lima, num dos momentos que a cantora guarda com mais carinho, quando puxaram juntos o samba Filhos de Mãe Preta. Jamelão era conhecido como uma figura séria e exigente, com ouvido apuradíssimo e, naquela altura da vida, tinha pouca paciência. Mas com Eliana foi muito generoso e com ela pisou emocionado pela primeira vez na avenida do carnaval de São Paulo. 

Já em 1989, Eliana participou de outro marco na memória do Carnaval, o samba Babalotim – A História dos Afoxés, e foi logo na sua chegada à Leandro de Itaquera, que fundada em 1982, ainda dava seus primeiros passos na avenida. Foi uns raros casos em que o samba fez sucesso mesmo antes do desfile, sendo entoado na avenida como um verdadeiro hino. A Avenida Tiradentes teve um de seus grandes momentos antes de encerrar sua trajetória como palco do samba em São Paulo. 

Mas o Carnaval de 1989 não foi marcado tão somente pelo samba-enredo inesquecível. Foi neste ano que Eliana de Lima, mais uma vez pioneira, trouxe para a luz a questão da profissionalização do samba, combinando com a Leandro de Itaquera um cachê, algo que não era praticado no samba de São Paulo até aquele momento. Ser intérprete de samba é um trabalho que envolve meses de ensaio, gravação de disco, produção e até participação em vídeo. Ao reivindicar um pagamento, Eliana de Lima se torna, além de puxadora de samba, uma das puxadoras da história da profissionalização do samba. 

Um ciclo se encerra e outro começa 

Nos anos 90 eu já estava batendo perna de criança pelas ruas de Guaianases. O mapa de São Paulo parece bem um machado, a Vila Prudente ficaria bem no começo da parte de baixo da lâmina, mais perto do centro, e os bairros onde cresci, Itaim Paulista, Guaianases eram bem no fio de corte, no extremo. Parece perto, mas é longe, parece igual, mas é diferente. Mas algumas coisas conectam esses lugares além de zonas distritais, uma certa experiência de viver periférica, a identificação estética e cultural, como os costumes de rua e, claro, a música. 

Como marco do novo momento do samba, em 1991 surgia o Sambódromo do Anhembi, onde até hoje ocorrem os desfiles das escolas de samba de São Paulo. Grávida, Eliana estava pronta para puxar o samba Quem não arrisca não petisca, mais uma vez pela Unidos do Peruche. Quem também estava com pressa para estrear era a filha Mônica, que resolveu nascer um dia antes do desfile. Nesse ano, Eliana passou o bastão para a cantora Bernardete, antiga puxadora da Império Lapeano e que na época foi contrata pela Peruche para ser apoio no carro de som. A partir dali, Bernadete também se tornaria um grande nome do Carnaval. Nascia o Sambódromo, a filha de Eliana de Lima e mais um grande nome feminino do samba tudo de uma vez só. Axé! 

A cantora estreou no Sambódromo só em 1992 e até 1995 puxou os sambas da Leandro de Itaquera. Então Eliana precisou dar uma pausa porque a recém-maternidade, aliada à carreira musical em ascensão, precisava de mais atenção. No período de 3 anos, Eliana gravou novos discos, entre eles um ao vivo. Mas em 1999 ela fez seu retorno ao carnaval pela Leandro de Itaquera, num samba que homenageava o educador Paulo Freire. 

Eliana encerrou sua carreira como puxadora em 2002 e 2003 num retorno à Unidos do Peruche, mas nunca deixou de comentar o Carnaval, celebrando e criticando onde precisa ser criticado, valorizando a cultura e apontando o machismo, defendendo a maior presença de mulheres como intérpretes oficiais do samba e indicando o caminho que ainda precisa ser caminhado. E, por outro lado, o Carnaval nunca deixou de comentar e celebrar Eliana de Lima.  

A rainha do pagode 

No final dos anos 80 as rádios estavam tomadas pelo sucesso dos artistas sertanejos, mas no começo da década seguinte uma nova febre começou a marcar época: o pagode. Esse movimento foi marcado pelo estrondoso sucesso de grupos como Raça Negra, Negritude Jr., Katinguelê, Soweto e tantos outros. Mas, em 1991, aquele mesmo ano em Eliana de Lima teve sua primeira filha e não pôde desfilar no Sambódromo, a cantora lançava um dos grandes sucessos dessa reviravolta na música popular brasileira: o disco Fala de Amor, o seu segundo LP, lançado por uma gravadora pequena, a JWC Discos. Pois bem: esse álbum trouxe um sucesso que arrebatou o país, vendendo mais de um milhão e meio de cópias. 

Em qualquer esquina, boteco, quintal e, com certeza, cantarolada até dentro do busão, escutava-se o hit “Desejo de Amar”, composta por Gabú e Marinheiro. Quando passou a ser contratada para shows, sem saber seu nome, as casas pediam para contratar “a cantora do Undererê”, graças aos versos que abrem toda a memória musical de uma época. O disco também contou a participação do seu padrinho na carreira musical, o cantor Zeca Pagodinho na faixa De barro, de vidro ou de cera, composta por Marquinhos Paiva e Franco.

Coroada como a Rainha do Pagode, a carreira de Eliana de Lima é marcada por participações especiais em seus discos e nos discos de outros artistas, como Jorge Aragão, com quem gravou a faixa Corpo e coração, Jair Rodrigues, com quem gravou Depois do Prazer de Chico Roque e Sergio Caetano no CD De todas as bossas, e Neguinho da Beija-Flor, com a deliciosa música Partilha do disco Sou Seu Fã. Um destaque especial precisa ser dado para a parceria com Alexandre Pires, ex-vocalista do grupo Só Pra Contrariar e de quem Eliana se tornou muito próxima. Mas foi com Luiz Carlos, do Raça Negra, que Eliana viu explodir outro grande sucesso nacional, a música Volta Pra Ela, composta pelo próprio Luiz Carlos com Antônio Carlos de Carvalho e Waldir Luz. 

Em algum momento de suas aparições na TV, emendando sucesso atrás de sucesso já embalados pela onda do Pagode anos 90, passou a ser chamada de Rainha do Pagode. A coroa lhe serviu bem, pioneira no samba de tantas formas, a primeira mulher a puxar um samba-enredo por uma grande escola, a primeira mulher a cantar ao lado de Jamelão, a primeira intérprete a abandonar o carro de som e puxar o samba da avenida, a primeira a reivindicar cachê para puxadores, a primeira mulher a estourar com o pagode e fazer parte da memória coletiva de toda uma geração.  

Eliana de Lima ao todo lançou 14 álbuns, tendo passagens pelas gravadoras Continental, Paradox e RGE Discos, participou de inúmeros programas de TV e teve música A Xepa como tema de novela. Ao todo vendeu mais de 2 milhões de discos, ganhando 3 discos de ouro e 2 de platina. Provavelmente em uma de suas participações na TV, puxando o Carnaval ou cantando seus muitos sucessos, alguma criança como ela um dia foi assistindo aos programas do Chacrinha, viu em sua voz o que ela viu na voz de Silvia, Elza Soares, Alcione e tantas outras. Um caminho para trilhar, um palco para subir e uma vida para cantar.

Esse caminho tem as pegadas das que vieram antes, mas também o chão de onde estas vozes e canções surgiram. Sincopado entre cortiços e pracinhas, apoiado nas janelas apontadas pra rua, batucando entre a molecagem, afinando entre campinhos e botecos, harmonizando com fofocas e histórias de amor e se espalhando pelo tempo, hoje com outras telas e brincadeiras, novas e velhas histórias da vida. Eliana de Lima carregou em sua voz estas texturas e ruas, estes rostos e sonhos onde a arte do samba traz pertencimento e alegria e faz do Brasil um grande barracão. 

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