Luz em movimento, da película ao digital

26/11/2025

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Desde o início do cinema na virada do século XVIII para o XIX, cada
fabricante (Edison, Lumière, Pathé, Gaumont, entre outros) usava larguras de
película diferentes, entre 17,5mm a 68mm. Isso acabava dificultando a circulação
dos filmes entre países e empresas. O Congresso Internacional de Fabricantes de
Filmes, realizado em Paris em 1909, definiu o 35mm como o padrão universal,
com quatro perfurações por quadro, justamente para criar interoperabilidade
entre câmeras, projetores e fabricantes. O 35mm oferecia uma resolução de
imagem suficiente para projeções em grandes salas, mas sem o alto custo do
68mm e sem a baixa qualidade do 17,5mm ou 28mm, que eram frágeis e menos
ní[dos. O formato se mostrou um meio-termo ideal entre qualidade visual e
viabilidade econômica. A partir de então, a bitola de 35mm foi
internacionalmente aceita e a padronização da bitola garantiu a conexão entre
laboratórios, distribuidoras e salas, em escala global.


Quanto ao enquadramento de filmagem e exibição, o 35mm conheceu
múl[plos formatos de aspecto ao longo de sua história. O chamado Academy
Ra[o (1,37:1) foi o padrão estabelecido a partir dos anos 1930. Nas décadas
seguintes, com a concorrência da televisão, os estúdios buscaram expandir a
experiência visual e adotou sistemas de tela larga, como 1,66:1, 1,75:1 e 1,85:1,
sendo este último dominante em Hollywood. Já as lentes anamórficas
(widescreen), como CinemaScope e Panavision, expandiram a tela para 2,35:1 e,
posteriormente, 2,39:1. Ao comprimir a imagem horizontalmente na película
35mm com lentes especiais e, em seguida, descomprimi-la durante a projeção, o
processo resultava em uma imagem mais ampla e imersiva.


A evolução do som acompanhou as transformações da imagem.
Inicialmente restrito à trilha óptica monofônica, foi a partir dos anos 1970 que o
35mm recebeu sistemas de codificação que possibilitaram o estéreo e o
surround. Já nos anos 1990, a era digital levou às cópias em 35mm soluções
híbridas com a presença de múltiplos sistemas sonoros coexistindo em uma
mesma película, ao lado do som óptico analógico de segurança. Essa
sobreposição de tecnologias tornou o 35mm um meio substancialmente versátil,
capaz de dialogar tanto com salas equipadas de ponta quanto com cinemas mais
simples.


Esses aspectos técnicos não são apenas dados históricos: eles impactam
diretamente a experiência do espectador. A luz e o brilho das lâmpadas, a
granulação orgânica e até mesmo as pequenas imperfeições do suporte ksico
criam uma textura singular e inconfundível. Assistir a uma sessão em 35mm não
é apenas consumir o filme, mas participar de uma experiência que moldou a
percepção cole[va do que é cinema.


E a dinâmica da exibição em 35mm envolvia não apenas a imagem, mas
também a materialidade e o okcio. O projecionista operava rolos pesados, fazia
emendas e trocas manuais de projetor a cada 20 minutos, criando uma dimensão
artesanal e única em cada sessão. Cada cópia, ao circular por cidades e países,
sofria desgastes, riscos e variações de cor, tornando-se ao mesmo tempo
documento histórico e testemunho vivo de sua trajetória. A circulação das latas
de filme, embora onerosa e logisticamente complexa, faz parte da aura do cinema
como patrimônio cultural.


Esse modelo começou a se alterar no início dos anos 2000, quando o Digital
Cinema Package (DCP) se consolidou como padrão de exibição. O DCP é um
conjunto de arquivos digitais em formato JPEG 2000, organizados em pacotes
MXF e controlados por chaves eletrônicas (KDMs). O novo sistema trouxe
padronização, redução de custos e facilidade logís[ca, subs[tuindo as latas
pesadas de película por discos rígidos ou transferências digitais. Entre 2010 e
2015, o circuito global concluiu a transição e estúdios como a Paramount, por
exemplo, anunciaram o fim do envio de cópias em 35mm. Hoje, o DCP é o formato
universal, com pouco mais de uma década de hegemonia, contrastando com os
mais de cem anos do 35mm. Sua adoção representou uma virada econômica e
técnica: a distribuição passou a ser mais barata, ágil e segura, com qualidade
uniforme em todas as salas. Ao mesmo tempo, as cópias digitais não se
desgastam fisicamente, como acaba ocorrendo no 35mm, e podem ser replicadas
indefinidamente sem perda de informação na imagem.


A transição entre os dois formatos pode ser vista como um jogo de
tensões: de um lado, a materialidade contra a virtualidade; de outro, a
singularidade contra a uniformidade; de um lado, o custo elevado e a
complexidade da película; de outro, a praticidade, a economia e a difusão em
escala mundial do digital. A coexistência entre ambos, no entanto, é
fundamental. O DCP democratiza e conserva, mas a película 35mm resguarda a
experiência sensorial e histórica do cinema, oferecendo ao público o contato
direto na maneira como os filmes foram concebidos e exibidos ao longo de mais
de um século.


Além da distribuição, o digital tornou-se fundamental para a preservação.
Filmes originalmente em película passaram a ser restaurados e digitalizados em
2K, 4K ou mesmo 8K, o que garante difusão em larga escala e acesso a públicos
que antes não teriam contato com essas obras. O DCP permite exibir um clássico
em qualquer sala digital do mundo com qualidade uniforme. Contudo, o processo
não preserva integralmente a experiência original: a vibração da luz, a
organicidade do grão e a singularidade de cada cópia são traduzidas, mas nunca
plenamente replicadas. O DCP assegura durabilidade, praticidade e alcance
global, mas elimina o caráter singular de uma sessão em 35mm.


Por fim, a película não deve ser encarada como um fe[che nostálgico, mas
como patrimônio cultural vivo. Ele representa a história material do cinema e
guarda uma experiência esté[ca que não pode ser substituída pela padronização
digital. Preservar e exibir filmes em película é assegurar que a memória do cinema
permaneça acessível em sua plenitude original, enquanto o DCP, por sua vez,
garante circulação, preservação e difusão. Juntos, esses dois formatos revelam
que o cinema é tanto arte da permanência quanto da transformação, mas que
sua essência histórica con[nua atravessada pela luz que passa pela película.

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