
Apadrinhado por Luiz Gonzaga, músico Orlando Silveira assinou mais de duas mil orquestrações para astros da música brasileira
POR LUCAS NOBILE
Leia a edição de Dezembro/25 da Revista E na íntegra
Ainda que tenham pautado suas carreiras pelos mais variados estilos musicais, artistas como Luiz Gonzaga (1912-1989), Jacob do Bandolim (1918-1969), Elza Soares (1930-2022), Beth Carvalho (1946-2019), Chico Buarque, Alceu Valença e Ed Motta têm algo em comum: todos, em algum momento, recorreram ao acordeon de Orlando Silveira. “Para mim, não existe música de classe A, classe B, classe C. Existem dois tipos de música: a bem-feita e a mal feita”. A declaração, dada por Silveira no fim da década de 1970, em uma entrevista inédita e preservada pelo acervo do radialista Simon Khoury, joga luz sobre a mentalidade sem preconceitos do músico que atraiu tantas estrelas.
Antes de morrer, aos 68 anos, em 1993, Orlando Silveira, cujo centenário de nascimento foi celebrado em 27 de maio, conquistou reconhecimento no Brasil e no exterior. Em 1980, encantou o papa João Paulo II (1920-‑2005) ao interpretar “Asa branca”, em duo com o autor, Luiz Gonzaga, para mais de 50 mil pessoas no estádio Castelão, em Fortaleza (CE). Nove anos antes, logrou o prêmio de melhor arranjo na 4ª Olimpíada da Canção, em Atenas (Grécia), com “Minha vida virá do sol da América”, composta pelos irmãos Marcos e Paulo Sérgio Valle.
“Orlando extraía muito bem a essência da composição na hora de fazer as orquestrações. Trabalhamos juntos em alguns discos meus na Odeon, e eu o convidei para trabalharmos naquela música para o festival na Grécia. Foi um strike. Eu ganhei pela melhor música. Paulo Sérgio, pela melhor letra, Cláudia, como melhor intérprete, e Orlando, como melhor arranjador. Uma pena ele ter ido embora muito cedo daqui”, relembra Marcos Valle.
Ainda que tenha lançado alguns discos como intérprete de acordeon, Orlando Silveira se destacou muito mais por sua atuação como arranjador e como integrante de conjuntos. Um trabalho que acontecia mais nos bastidores e, portanto, aparecia menos sob os holofotes. Assim, por não seguir uma carreira primordialmente de solista, ainda que tivesse o mesmo talento de seus pares no instrumento – como Luiz Gonzaga, Dominguinhos (1941-2013), Sivuca (1930 2006) e Chiquinho do Acordeon (1928-1993) –, Silveira tornou-se menos conhecido pelo público.
Com os sanfoneiros acima, o maestro teve relações de admiração mútua. Dominguinhos, por exemplo, declarou em inúmeras entrevistas ter aprendido muito com Orlando Silveira. Ao lado de Luiz Gonzaga, a convivência foi ainda mais estreita e longeva.

PRIMEIROS BAILES
Ainda na infância, vivida em Rincão, interior de São Paulo, Silveira frustrou por duas vezes os planos de sua mãe, que sonhava que ele aprendesse a tocar violino. Depois de um breve começo no cavaquinho, ele se encantou com uma sanfona de oito baixos exposta na vitrine de uma loja. O interesse se intensificou após o menino, aos 12 anos, ouvir no rádio uma música do acordeonista Antenógenes Silva (1906-2001). Seu pai era músico amador e havia comprado um acordeon para tocar em bailes – sem permitir que o filho se aproximasse do instrumento. Resistência que em pouco tempo se transformaria em incentivo.
Em entrevista de 1978, Orlando Silveira relembrou aquele período. “Um dia meu pai chegou para o almoço e me pegou em flagrante com o acordeon. Me deu todo o apoio que precisei. Acabei a escola aos trancos e barrancos. Aprendi os princípios de música com o professor do grupo escolar de Descalvado, perto de Porto Ferreira. Quando ele se mudou para Pirassununga, me entregou para uma professora de piano, que me ensinou divisão de música, mas não teoria. Isso aí me bastou. Em seis meses, eu já lia qualquer música à primeira vista.”
Ainda na juventude, Silveira pulou de emprego em emprego. Vendeu jornais, trabalhou como marceneiro, tecelão e cortador de carnes em um frigorífico. Até que seu pai, que era manobrador de trens na Companhia Paulista de Estradas de Ferro, conheceu Luiz Gonzaga em uma das idas do músico à capital de São Paulo. Numa ocasião, disse ao Rei do Baião que ele tocava acordeon, que seu filho também estudava o instrumento e que Gonzaga era seu grande ídolo. O compositor pernambucano deu uma sanfona ao jovem Orlando e logo passou a tê-lo como músico que o acompanhava nos shows em terras paulistanas.
“Em 1950, com o fim do Regional de Benedicto Lacerda e a formação do Regional do Canhoto o grupo convidou Luiz Gonzaga para ser o solista de acordeon. O baião começava a atingir seu auge e, com ele, a sanfona também se tornaria uma coqueluche no eixo Rio-São Paulo. Como Gonzaga começava a fazer grande sucesso como cantor, achou que seria um passo atrás na carreira fixar-se como músico de um conjunto”, conta o pesquisador Armando Andrade, que prepara um livro sobre o Regional do Canhoto.
Luiz Gonzaga indicou, então, Orlando Silveira, que àquela altura se destacava como acordeonista no Regional comandado pelo violonista e guitarrista Antonio Rago, em São Paulo. Gonzaga bancou a ida de Silveira ao Rio para um período de testes no novo conjunto, mas a viagem foi definitiva. “Chegando no Rio, Orlando foi um fiel escudeiro de Gonzaga e arranjador de 80% de sua discografia, mas também trilhou seu caminho aprofundando seus estudos e transitando entre outros músicos, gravadoras e na noite carioca. Mas o vínculo com Gonzaga seria para sempre. Ele também passaria a assinar 90% dos arranjos do Regional do Canhoto”, complementa Andrade.
Na frieza dos números, a quantidade já seria relevante. Mas ela ganha outro peso por se tratar do Regional do Canhoto, o conjunto de acompanhamento mais importante da história da música brasileira. Formado por Canhoto (1908-1987), cavaquinho, Dino (1918-2006), violão 7 cordas, Meira, violão, Gilson de Freitas, ritmo, Altamiro Carrilho (1924-2012), seguido por Arthur Atayde e, posteriormente, Carlos Poyares (1928-2004), todos os três na flauta, o grupo dividiu os microfones de emissoras de rádio e de estúdios com um sem-fim de estrelas: de Cartola (1908-1980) a Elizeth Cardoso (1920-1990) e Pixinguinha (1897 1973), passando por Gilberto Gil, Clementina de Jesus (1901-1987), Luiz Melodia (1951-2017) e mais de uma centena de artistas. Cerca de duas mil gravações, sendo mais de 1,8 mil com arranjos de Orlando Silveira. Alguns deles, aliás, feitos para Orlando Silva (1915-1978), de quem o músico tinha o mesmo nome e o mesmo sobrenome. Ao seguir carreira artística, o acordeonista trocou Silva por Silveira para não ser confundido com o “Cantor das multidões”.
“O grande diferencial de Orlando Silveira é a leveza, a simplicidade e a genialidade em saber tocar num regional e acompanhar solistas e cantores. A maneira como ele escrevia suas composições e seus arranjos é uma extensão da sua forma de tocar. Quando Dominguinhos ouviu Orlando, ele disse: ‘Opa, é ali que eu vou amarrar meu burro’”, ressalta o acordeonista Rafael Meninão.

TEMPO DE VESTIR MÚSICAS
Após o fim da Rádio Mayrink Veiga, emissora em que o acordeonista atuou com o Regional do Canhoto entre 1951 e 1965, Orlando Silveira foi contratado pela Odeon, onde trabalhou por oito anos. Em tempos de efervescência do mercado fonográfico, a gravadora contava com outros seis arranjadores contratados e exclusivos: Lyrio Panicalli (1906-1984), Edmundo Peruzzi (1918-1975), Carlos Monteiro de Souza (1916-1975), JT Meirelles (1940-2008), Nelsinho e Lindolpho Gaya (1921-1987). Assim como Silveira, cada qual tinha um estilo próprio de vestir uma música, uma assinatura sonora única na distribuição das instrumentações. “Abandonei o acordeon quando estive na Odeon porque não havia tempo para o instrumento, sem sábados e domingos livres, que eram os dias para escrever os arranjos que seriam gravados. Eu tinha 90% do casting na minha mão, todo mundo queria trabalhar comigo, ganhei dinheiro, mas foi cansativo. E eu não admitia que me vissem tocando em má forma”, relembra o maestro.
“As divisões e os contrapontos que Orlando Silveira fazia em combinação com a flauta no Regional do Canhoto já não eram uma coisa simples. Ele tinha cabeça de arranjador e estava muito conectado com a vanguarda. Tinha arranjos modernos para a época. Ele deve ter absorvido muita coisa simplesmente de ouvir outros arranjadores. Da discografia dele, destaco dois álbuns: Choros – Ontem, hoje e sempre (1978) – com uma formação pouquíssimo usual no Brasil, com guitarra, vibrafone, baixo, bateria, acordeon e três violões – e o primeiro disco dele, de 1956, com composições do Zequinha de Abreu em interpretações muito bonitas”, elenca o acordeonista Cleber Silveira.
Com especial devoção pelo choro, Orlando Silveira também deixou um legado como compositor. Entre suas obras mais conhecidas estão “Perigoso”, “Tudo azul” e “Dedilhando”, em parceria com outro grande chorão de São Paulo, Esmeraldino Sales (1916-1979). Além de “Acácia amarela”, feita com Luiz Gonzaga, e “Tema de Telck”, composta por Orlando e dedicada à sua esposa, com quem teve seu único filho, Orlando Ricardo.

“Na nossa casa no Rio de Janeiro, primeiro no Méier, depois em Copacabana, meu pai recebeu muita gente grande. O (violonista) Raphael Rabello (1962-1995) ia muito lá. Me lembro também de ir com o velho num churrasco na casa do Pixinguinha (1897-1973). Meu pai gostava de choro, mas ouvia muito as orquestras e big bands norte-americanas, gostava muito do (acordeonista) Art Van Damme (1920-2010), do Frank Sinatra (1915-1998) e escutava muito Bach (1685-1750)”, relembra o primogênito.
MAESTRO NO HYPE
Ainda que pouco conhecido pelas novas gerações de ouvintes, Orlando Silveira segue com prestígio no meio musical. Em maio passado, foi homenageado na edição 2025 do Choraço, festival realizado pelo Sesc 24 de Maio, em show protagonizado por Toninho Ferragutti. Nos últimos anos, a “mentalidade aberta” do maestro fez com que um de seus álbuns surfasse uma onda hype entre DJs e colecionadores de discos espalhados pelo mundo. Com sonoridade funky – misturando elementos de funk, soul, jazz e R&B –, um exemplar da primeira prensagem de LP S.O.S. – Band it, de 1974, chega a valer hoje mais de R$ 3 mil.
“Ele não tinha preconceitos nem limites para atuar nesse ofício. Choro, rock, forró, disco music, easy listening, samba, funk, orquestras de baile ou eruditas, ele atuava pela música em função do artista. E destacaria também a influência dele no forró, pois Orlando trouxe mais melodia para arranjos que se baseavam na questão rítmica e no jogo de fole”, comenta Armando Andrade. O pesquisador relembra ainda a importância de viagens ao exterior na ampliação do repertório de Orlando Silveira como arranjador.
“Entre as turnês mais representativas, ressalto a ida para a Europa e para o Oriente Médio, em 1962, como membro da 5ª Caravana da Música Popular Brasileira, ao lado de músicos como Waldir Azevedo (1923-1980), Poly (1920-1985), Dalton Vogeler (1926-2008) e do cantor Francisco Carlos (1928-2003). Essa viagem abriu ainda mais os horizontes do maestro, que passou a ter contato com músicos e públicos de diferentes nacionalidades. Essa excursão também fez Orlando Silveira trazer na sua mala muitos discos de música clássica e jazz, que influenciariam bastante seu modo de tocar e de arranjar”. Músico que tanto influenciou artistas renomados, Orlando Silveira também se tornaria, com sua trajetória, uma estrela a ser contemplada.
para ver no Sesc
Centenário celebrado
Orlando Silveira foi artista homenageado na edição Choraço deste ano, realizado no Sesc 24 de Maio

O acordeon que tanto marcou o trabalho do artista Orlando Silveira segue presente em diferentes gêneros musicais em apresentações regulares nos palcos do Sesc São Paulo. Celebrando o centenário de seu nascimento, em 2025, a unidade do Sesc 24 de Maio homenageou o músico, arranjador e maestro no projeto Choraço, realizado entre 23 de abril (Dia Nacional do Choro) e 11 de maio.
Entre as atividades que integraram essa programação, o especial 100 Anos de Orlando Silveira trouxe Toninho Ferragutti e Regional celebrando a obra do sanfoneiro que transitou com maestria entre Chopin e Luiz Gonzaga – seu padrinho na música e no casamento. O show reuniu composições inéditas e clássicos do artista, com destaque para o álbum Choros – ontem, hoje e sempre (1978).
Confira a programação de música das unidades neste mês em sescsp.org.br
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