Formar aldeias

01/12/2025

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Criar vínculos e fazer parte de comunidades fortalece o sentimento de pertencimento e promove benefícios à saúde da população (foto: Matheus José Maria)

Leia a edição de Dezembro/25 da Revista E na íntegra

POR MARIA JÚLIA LLEDÓ

O verão batia à porta. No campo, o tempo era muito agradável, e numa confortável sombra, uma pata se acomodava, contente, esperando chocar uma nova ninhada. Depois da celebrada chegada dos filhotes, um ovo parecia tímido. Até que um dia, o ovo se rompeu e um pequenino viu o mundo pela primeira vez. Mas “o patinho era muito grande e feio”. Assim começa uma das mais famosas fábulas do autor dinamarquês Hans Christian Andersen (1805-1875), O patinho feio, escrita no século 19. Essa alegoria, que trata do sentimento de inadequação, atravessa o tempo para se encaixar na contemporaneidade. “Deslocadas”, “insuficientes”, “imperfeitas”, milhões de pessoas em todo o mundo não se sentem capazes de criar vínculos, pois se veem inadequadas para pertencer a uma comunidade. O resultado é um quadro mundial crescente e preocupante de solidão.   

Divulgado neste ano, o relatório da Comissão sobre Conexão Social da Organização Mundial da Saúde (OMS) apontou que uma em cada seis pessoas no mundo é afetada pela solidão. Esse cenário traz impactos significativos na saúde e no bem-estar – aumentam as probabilidades de desenvolvimento de depressão, de risco de acidente vascular cerebral (AVC), de doenças cardíacas, de diabetes e declínio cognitivo. Também segundo o documento, iniciativas de conexão social são capazes de diminuir o risco de problemas graves de saúde e promover a saúde mental.

Psicóloga e escritora, Ediane Ribeiro explica que a tecnologia tem tornado as relações virtuais tão ou às vezes mais importantes do que as relações reais. “E aí, com o fenômeno digital, surge uma vida paralela, digamos assim, que é uma identidade virtual que muitas vezes está fragmentada da identidade real. Assim, eu tenho mais um abismo para o vínculo. Porque se a minha identidade virtual começa a se distanciar muito da minha identidade real, vou ficar mais amedrontada com a intimidade – e intimidade exige coragem para estar vulnerável diante do outro”, ressalta.

Sobre uma multidão que se sente inadequada e isolada – ainda que conectada virtualmente –, o psicanalista Christian Dunker, professor titular do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP), e o palhaço, educador e escritor Cláudio Thebas fizeram um curso e irão lançar, em 2026, o livro A revolta dos patinhos feios, que reflete sobre a condição de não pertencimento e suas implicações nas relações sociais. “O que acontece no nosso momento? De repente, a gente passou a sentir que o não pertencer começou a se tornar mais preponderante. Você não precisa pertencer nem ao seu próprio corpo, nem à sua própria profissão, nem à sua própria idade. A gente pode, portanto, se redefinir a qualquer momento”, explica Dunker. “O resultado? Adoentadas, as pessoas não se encontram em nenhum lugar, não conseguem estar. E essa é uma definição possível de saúde mental: não é o mal-estar, nem o bem-estar, mas é a capacidade de estar, de pertencer”, completa. 

Clubes de corrida e outras iniciativas de conexão social são capazes de diminuir o risco de problemas graves de saúde e promover a saúde, segundo relatório da Organização Mundial da Saúde (foto: Evelson de Freitas).

ABRAÇAR AS DIFERENÇAS
Além de buscar criar vínculos, fazer parte de uma comunidade pressupõe acolher as próprias peculiaridades e diferenças para, então, acolher as dos outros. Segundo Ediane Ribeiro, apesar de uma “falsa liberdade” de poder escolher como se vive e o que se quer, “grande parte das pessoas se queixam dos preconceitos e das discriminações que sofrem ao fazerem escolhas pessoais diferentes daquelas dos grupos dos quais fazem parte”. Além disso, ela complementa, “grande parte das pessoas vive conforme uma métrica social que tem muita influência do mercado”.

Por isso, em resposta ao patinho feio de Hans Christian Andersen, o patinho feio de Dunker e Thebas é interpretado de outra forma. Ao contrário do personagem do autor dinamarquês, que depois de sofrer injustiças e violências, prova ser um belo cisne, o patinho feio da dupla de escritores é autorizado a ser ele mesmo: conforme seus princípios. Esse pensamento, segundo Thebas, traduz uma compreensão de que nem sempre adequar-se leva o patinho feio a um final feliz. 

“Como se adequar a lutar contra o outro? A competir com o outro? A achar que vou fazer sucesso se eu passar na frente de alguém? Me adequar à ideia de que eu preciso estar exausto para justificar o merecimento de trabalhar em algum lugar?”, indaga Thebas. “Acho que boa parte do que Christian e eu estamos falando de inadequação é inadequar-se ao que não é adequado. É voltar a entender que a revolta dos inadequados é a revolta das pessoas que consideram que a vida não é só trabalhar, por exemplo, porque se escutou, a vida inteira, que deveria ser desse jeito. Acho que a revolta dos patinhos feios é voltar à nossa essência. Porque quando a gente aceita o nosso desamparo é que a gente se ampara, e ampara os outros também”, defende.

Acolhidas as diferenças, para criar vínculos, Thebas acredita em pequenos e constantes passos, principalmente nos grandes centros urbanos, onde o tempo e o espaço se encarregam de criar distanciamento e obstáculos. “Aceite ou proponha convites para os encontros sem pensar: ‘como eu crio uma comunidade?’ Saia do grande. Sabe quando você olha a pia depois de uma festa e você quer sumir de casa? Não tem outro jeito: você começa por um prato. Outro exercício bem desafiador é: quando for conversar com qualquer pessoa, escute-a pelo menos por um minuto sem falar nada. Escutar também é pertencer. No final, uma comunidade é feita de pequenos encontros”, destaca. 

Ribeiro completa que outro passo importante é sustentar o encontro e as tensões que fazem parte de todo relacionamento. “O relacionamento real não cabe no 0 e 1 dos algoritmos. Os relacionamentos reais implicam em sustentar polos opostos: liberdade e conectividade, autonomia e interdependência, proximidade e afastamento, concordância e discordância. Relacionamentos reais e saudáveis exigem, o tempo todo, um balanço e uma pendulação entre polos opostos que muitas vezes causam fricções e tensões. Saber lidar com isso é um aprendizado social”, defende.

Participar de oficinas e cursos de manualidades, por exemplo, abre portas para encontros com outras pessoas com interesses em comum, e assim, tecer vínculos que se integram ao seu círculo social (foto: Nilton Fukuda)

ALDEIA EMOCIONAL
Às vezes, parecemos esquecer que o ser humano é um ser gregário. No princípio, a falta de atributos físicos naturais levou a espécie a se juntar aos seus pares a fim de sobreviver. Com o passar dos séculos, no entanto, a organização em grupos não necessariamente estaria atrelada à sobrevivência, mas se tornaria uma forma de ser, estar e interagir no mundo. Entre povos de diferentes partes do globo, a noção de comunidade é algo indissociável à vida. Em O espírito da intimidade – Ensinamentos ancestrais africanos sobre maneiras de se relacionar (Odysseus, 2003), a escritora e professora burquinense Sobonfu Somé (falecida em 2017) traz a sabedoria do povo Dagara, na África Ocidental, como outra perspectiva de aldeamento e pertencimento. 

Nesse território físico e afetivo, todos são responsáveis pelos cuidados com as crianças e os anciãos comandam sem soberba. Nele, a vida é diretamente inspirada pela terra, pelas árvores, montanhas e rios. “O objetivo da comunidade é assegurar que cada membro seja ouvido e consiga contribuir com os dons que trouxe ao mundo, da forma apropriada. Sem essa doação, a comunidade morre. E sem comunidade, o indivíduo fica sem um espaço para contribuir”, descreve Somé.

No livro, a escritora ainda conta como foi experimentar outra formação de sociedade, quando morou nos Estados Unidos. “Aqui, no Ocidente, talvez nunca tenhamos o tipo de comunidade que tínhamos na África. No entanto, podemos ao menos ter uma noção dela, permitindo que amigos participem da nossa vida. Quinze minutos de comunicação com os outros podem ajudar de forma profunda a compensar a falta de comunidade. Amigos e família proveem um recipiente, um lugar seguro no qual a pessoa possa buscar apoio (…). Cada um de nós precisa de algo para se segurar. É por isso que existem todas essas pequenas comunidades aqui e acolá – grupos de voluntários em questões sociais, grupos de apoio e todos esses pequenos grupos que perseguem um objetivo comum”, relata.

Dentro e fora das águas, a troca entre gerações permite o exercício de escutar e ser ouvido, o que promove o sentimento de pertencer a uma comunidade (foto: Matheus José Maria)

Num contexto em que 87% da população brasileira vive em centros urbanos, segundo dados do Censo 2022, onde o tempo de deslocamento, o tempo em frente às telas e o tempo de trabalho superam o tempo dedicado ao lazer, de que maneira criar e manter vínculos? Como é possível se sentir pertencente a uma comunidade? Segundo o psicanalista Christian Dunker, os caminhos para a construção de comunidades nos centros urbanos passam por importantes intervenções. “Em relação ao trabalho, temos que reduzir a extensão da produtividade na nossa vida e aumentar a extensão daquilo que a gente chama de cultura. A cultura não é produtiva no mesmo sentido do trabalho. Então, é a leitura, é o acostamento da vida, é a memória, é a biografia, é a dança, é a arte. Tudo aquilo que se diz: ‘Meio inútil, né? Precisa?’. Precisa, senão você não tem comunidade.”  

Para a psicóloga Ediane Ribeiro, grandes instituições e comunidades de bairro devem pensar em espaços que criem oportunidades para esses encontros. “Também tenho defendido a recuperação de pequenas aldeias emocionais. De pessoas começarem a se encontrar na vizinhança, em família, em pequenas comunidades de troca de afeto, de propósitos em comum, de suporte e de redes de celebração. Movimentos de clube do livro e de corrida, por exemplo, aumentaram muito nos últimos tempos. Precisamos recuperar o hábito dos encontros, dos pequenos encontros que estão dissociados do trabalho. Para isso, a gente precisa de muita intencionalidade para buscar esses pequenos aldeamentos emocionais e recuperar nossa saúde individual e coletiva.”  

para ver no Sesc
Fortalecer vínculos
Projetos e ações do Sesc São Paulo promovem conexões entre públicos de todas as idades e valorizam a formação de comunidades

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Nas unidades da capital, interior e litoral (na foto, hidroanimação no Sesc Bertioga), o Sesc São Paulo realiza em sua programação permanente cursos e oficinas, além de atividades físicas e práticas esportivas em grupo, que promovem a cultura do pertencimento, o bem-estar e benefícios à saúde física e mental (foto: Matheus José Maria)

A cultura do pertencimento está presente nas ações permanentes e na programação do Sesc São Paulo em todo o estado. A partir de oficinas, cursos, palestras, práticas físicas e esportivas, entre outras atividades, públicos diversos estreitam laços ao compartilhar afinidades e interesses em comum. Seja numa roda de bordado, num clube de leitura, numa aula de hidroginástica ou de yoga ministradas nas unidades da capital, interior e litoral do estado de São Paulo, o Sesc valoriza a importância da formação de comunidades para o bem-estar, a saúde mental e física de seus frequentadores. Sendo assim, tem como pilar uma visão integral de saúde, que atravessa todos os aspectos do cuidado consigo e com outros a partir da convivência e do bem viver.  

Neste ano, o Sesc São Paulo expande essa atuação com o projeto Empresas Saudáveis, que realizou ações de incentivo a hábitos saudáveis e à prevenção de doenças no ambiente corporativo, para o cuidado e a saúde integral dos trabalhadores e trabalhadoras do comércio. Na programação, que reuniu mais de 250 empresas, iniciativas voltaram-se à troca de experiências e fomento de reflexões sobre: gerenciamento emocional, riscos psicossociais, sustentabilidade, neurodivergência e clima organizacional. 

No encerramento, dia 3/12, no Sesc 14 Bis, será realizado o Fórum de Qualidade de Vida: Empresas Saudáveis, com a presença do psicanalista e professor da Universidade de São Paulo Christian Dunker e do palhaço, escritor e educador Cláudio Thebas com a palestra O não pertencimento – A revolta dos patinhos feios. Também participa o ator, palhaço e palestrante Marcio Ballas com a palestra Improvisação e criatividade – Desafios do cotidiano

Sesc 14 bis 
Fórum de Qualidade de Vida: Empresas Saudáveis
Com Christian Dunker, Cláudio Thebas e Marcio Ballas. Na sequência, cerimônia de entrega do Prêmio Nacional de Qualidade de Vida, em parceria com a Associação Brasileira de Qualidade de Vida (ABQV). Dia 3/12, a partir das 10h15. GRÁTIS. Vagas limitadas.

Confira informações sobre retirada de ingressos em sescsp.org.br/14bis

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