
Desgosto dos críticos e de parte da sociedade no século 20, o violão se tornou o instrumento protagonista da música brasileira (foto: Nilton Fukuda)
Leia a edição de Dezembro/25 da Revista E na íntegra
POR JULIO MARIA
Não seria um susto se fosse a sanfona. Trazida por imigrantes italianos e alemães a partir de 1836, ela entrou pelo Sul e se espraiou pelo país, de baixo para cima. Entre muitas histórias, uma delas conta que no final de 1870, soldados nordestinos que lutaram na Guerra do Paraguai contra as tropas de Francisco Solano López (1827-1870) voltaram para suas casas aos farrapos, mas levaram foles de oito baixos na mochila. A novidade no país era festeira, logo pegava o sotaque das terras em que pisava, não demorou para se encaixar, sob medida, no peito do músico pernambucano Luiz Gonzaga (1912-1989).
Se não fosse a sanfona, seria o piano. Palaciano por origem, era altivo em porte, status e sonoridade. Tudo o que as elites priorizavam. Nos Estados Unidos, desde o pianista Duke Ellington (1899-1974), fizeram dele o grande protagonista no jazz e, por extensão, na música pop. Um piano em cada casa: era o sonho dos críticos, das plateias e das famílias de “boa índole”. Por alguns instantes, quando Chiquinha Gonzaga (1847-1935) passou a usá-lo para criar choros no início do século 20, ou quando Tom Jobim (1927-1994) fez “Desafinado”, em 1958, era como se pudesse sair do piano a alma de um povo.
Poderia ser qualquer outro instrumento, menos aquele que os jornais do século 19 chamavam acusatoriamente de “pinho dos vadios”. Aliás, ninguém que lia jornais entre 1870 e 1930 poderia imaginar que aquela peça de seis cordas e corpo acinturado, descrita como “esconderijo de larápios”, instrumento de “perturbadores da ordem pública” e passatempo de “vagabundos” e “seresteiros desajustados” se tornaria o catalisador de tantas revoluções musicais do Brasil.
PÁGINAS POLICIAIS
O violão tinha tudo para dar errado, e sua divulgação, por anos, se deu nas páginas policiais. “À noite, os vadios arranjam tocatas de violão e serenatas, com algazarras e motins, perturbando o sossego público. Não seria mau que o delegado os chamasse à fala”, incitou o Jornal do Brasil em 20 de junho de 1900. Seis dias depois, o senhor Manuel Pinheiro tocava violão em um botequim quando um policial entrou, olhou para o seresteiro e ordenou que parasse. Manuel disse que não iria incomodar. Segundo o Jornal do Brasil, o homem, a partir daquele momento, foi “agredido a sabre e multado.”
No jornal O Commércio de São Paulo, de 1909, um leitor faz seu desabafo: “É intolerável estar às tantas antes de meia-‑noite, no gabinete de leitura, estudando ou meditando, e sentir uma voz roufenha zurrando, acompanhada por um ou mais violões desafinados. Pois isto dá-se quase que todas as noites, ali para as bandas da rua Conselheiro Furtado, bem pertinho do centro, e probabilissimamente também noutros pontos se dera sem que se possa protestar contra os espedaçadores dos nossos tímpanos (…)”.
Segundo a pesquisadora e violonista Flávia Prando, a intolerância ao violão urbano aumenta a partir de 1906, quando os códigos de segurança pública são estabelecidos nas metrópoles em crescimento. Autora da tese O mundo do violão em São Paulo: processos de consolidação do circuito do instrumento na cidade (1890-1932) e doutora em música, Prando observa que uma ideia de ímpeto civilizador da época fez com que o estado passasse a ordenar as ruas e os barulhos. “O silêncio tornou-se signo de progresso enquanto a sonoridade popular era tratada como resquício arcaico”, afirma. A pesquisadora acrescenta: “o som tornava-se, assim, um marcador de presença indesejada – e o violão, nesse contexto, uma ferramenta de mobilização estética e social dos grupos subalternos”.
CORDAS SOLTAS
A história começa a mudar quando concertistas europeus, sobretudo espanhóis, passam a vir ao Brasil e levam o instrumento aos teatros. Das páginas policiais, o violão entra nas colunas de arte. Josefina Robledo era uma jovem violonista de Valência, Espanha, e discípula do reformador do violão, o também espanhol Francisco Tárrega. Ela chega ao Brasil em 1917 para fazer uma série de concertos, depois de passar por alguns países da América Latina, e dá um susto. “Era chocante vê-la tocar com essa autoridade de escola europeia. O instrumento de malandro estava nas mãos de uma mulher”, ressalta Prando.
Em 1902, chega ao Rio de Janeiro João Pernambuco (1883-1947), com a proposta de mistura de sons do populoso Brasil rural com as complexidades de um iniciante Brasil urbano. Sua composição “Sons de Carrilhões”, de 1912, torna-se a obra de violão brasileira mais regravada no mundo.
Depois que se rompe com os preconceitos na virada do século – pelo movimento de músicos como Heitor Villa-Lobos (1887-1959), em 1920, e Garoto (1915-1955), em 1930 –, Dorival Caymmi (1914-2008) torna-se, em 1940, o primeiro homem a colocar uma nação inteira no violão.

BOSSA NOVA
Em 1957, depois de encontrar o que chamaria de “batida perfeita”, o violonista baiano João Gilberto (1931-2019) vai para o Rio de Janeiro. Dois anos depois, grava o disco Chega de Saudade, e consagra nome e sobrenome do violão brasileiro.
O violão pós-1959 ocupa seu espaço na indústria fonográfica e provoca uma mudança de comportamento nos arranjos. Saem as orquestras de sopros e cordas, entra o minimalismo moderno orientado pela dupla: voz e violão. A bossa nova – apesar dos pianos de Johnny Alf (1929-2010), na vanguarda definitiva, e de Tom Jobim (1927-1994), pianista e, também, um violonista singular – será o reino do violão. “Todos nós estávamos procurando o violão perfeito, mas não estávamos satisfeitos. Quando João Gilberto chegou ao Rio, foi lá em casa e tocou. Estava ali o violão que procurávamos”, recorda Roberto Menescal.
A partir de 1960, um ano depois de sair Chega de Saudade, muitos jovens chegam para colocar uma camada pessoal sobre o chamado “violão de João”. O fato é que esses jovens se tornarão novas matrizes e alimentarão um fenômeno multiplicador de referências, algo parecido com o que a guitarra fazia nos Estados Unidos e na Inglaterra pós-Chuck Berry (1926-2017).
Será esse o violão marcante do pós-1959 que iria inspirar nomes como Carlos Lyra, Roberto Menescal, Baden Powell, Moraes Moreira, Paulinho Nogueira, Paulo Bellinati, Gilberto Gil, Chico Buarque, Jorge Benjor, João Bosco, Luiz Bonfá, Rosinha de Valença, Caetano Veloso, Eduardo Gudin, Bola Sete, Raphael Rabello, Djavan, Filó Machado, Paulinho da Viola, Chico César, Lenine. Mesmo quando acompanham, seus instrumentos têm vida própria.
Quem estava longe dos grupos criativos dominantes no início dos anos 1960 – concentrados no eixo Rio-São Paulo – enviava sinais de fumaça. “Meu violão nasceu da minha solidão em Ouro Preto”, diz João Bosco, criador de uma das identidades violonísticas mais complexas da música popular. Ele vivia na cidade histórica mineira, observando o que os artistas faziam à distância. “Eu estava solitário e resolvi compor para ser percebido, como quem manda mensagens em uma garrafa.”
Também em terras mineiras, a 102 quilômetros de Ouro Preto, em Belo Horizonte, Milton Nascimento compunha, ao violão, canções libertas do sistema harmônico dos bossa novistas e das proezas afro-rítmicas de Jorge Ben, Djavan e Gilberto Gil. Seus acordes eram montados de outra forma, seu ritmo chegava diluído na atmosfera e as melodias eram concebidas pelas frestas.
Anos depois, o violonista e compositor paulista Eduardo Gudin perguntou a Nascimento, quais seriam seus ídolos do violão. “Sabe o que ele me disse? ‘Ninguém’.” Gudin tocou com os dois violonistas polarizados por alguns teóricos como donos das duas escolas extremas do violão moderno do século 20: Baden Powell (1937-2000) e Paulinho Nogueira (1927-2003). Powell seria o arroubo, a explosão. Nogueira, a delicadeza, o refinamento. Biógrafo do segundo violonista, o jornalista Vitor Nuzzi, coautor do livro Paulinho Nogueira, simplesmente (Acorde, 2025), ao lado de Marcos Martins, pondera: “a polarização, como vemos na política, vem da falta de nomes. Ou da escassez. Não é o caso de nosso violão”.
Para Gudin: “Baden chega e ofusca a todos. Ele muda o violão no ritmo, na divisão. Ninguém jamais conseguiu fazer aquilo”. Quanto a Nogueira, complementa: “seu som é grande. Eu o ouvia e pensava: como pode sair tanta vida desse instrumento?”. E sintetiza com uma metáfora: “alguns músicos, mas muito poucos, são como Gepeto, o avô de Pinóquio: eles tocam na madeira e ela ganha a vida”.

ACORDES NOTÍVAGOS
Há ainda um violão esquecido dos estudos oficiais, e o carioca Nelson Cavaquinho (1911-1986) é seu maior expoente. Autor, com Guilherme de Brito, de sambas como “A flor e o espinho” e “Folhas secas”, ele tocava um violão com cordas de aço, trazendo a imperfeição de notas espremidas, desafinações e digitações de uma mão de articulação lenta, dura. “Eu ainda choro quando ouço esse violão”, diz João Bosco. “É um instrumento do sujeito que perambula pelas madrugadas, calibrado pelo álcool e pelas noites. O violão entorpecido.”
Quem faz a mediação do violão dos sambistas cariocas – um violão batuqueiro dos anos 1950 e 1960, tocado no tempo de um tamborim – com o “violão limpo” dos bossa novistas é Paulinho da Viola. “Minha formação vem das baixarias do choro, e isso foi claramente negado pela bossa nova. Contracanto de violão não existia lá. Eram agora sequências de acordes com harmonias mais sofisticadas. Creio que comecei a mudar depois de ouvir o violão que acompanhava Nara [Leão] cantando com Zé Keti. Acabei perdendo parte dessa escola do choro, mas sem abandonar o universo do samba”, conta Paulinho da Viola.
DEDILHAR MUDANÇAS
Quem manteve a cultura das “baixarias” do violão de sete cordas viu a tradição sobreviver. Hoje, um dos maiores nomes no instrumento é Carlinhos Sete Cordas, que se preocupa com um comportamento mais recente: “Os jovens chegam querendo tocar o sete [cordas], mas, antes, é preciso passar pelo violão de seis”. Quem concorda é Melvin Santhana, violonista, guitarrista e cantor, um dos nomes mais celebrados das gerações contemporâneas, com trabalhos solo e integrante da formação atual do Trio Mocotó, que por muitos anos acompanhou Jorge Benjor. “O jovem vive hoje a síndrome do protagonismo. Ele quer solar, aprender logo a tocar para fazer um vídeo mostrando como sabe fazer uma ‘baixaria’.”
Enquanto isso, nas salas de concerto, um novo recorte de representantes se consolida na cena do violão brasileiro contemporâneo. Trata-se de uma inspiradora geração de homens e mulheres negros e negras lecionando, assumindo postos de liderança e se apresentando por teatros da Europa, Estados Unidos e América Latina.
João Luiz Rezende, recém-nomeado professor da Yale School of Music, nos Estados Unidos, estudioso da obra do violonista cubano Leo Brouwer, diz que ainda é cedo para falarmos em um “violão de concerto negro brasileiro”, mas sente a tendência. “A referência principal do violão clássico sempre se deu por homens brancos. Agora, as referências negras, nesse contexto, começam a surgir. Em cinco ou dez anos, talvez possamos dizer que exista esse violão negro brasileiro na música clássica.”
Rezende está junto a outros violonistas, como Plínio Fernandes, Henrique Carvalho, Franciel Monteiro e Gabriele Leite. Essa última, que lançou em 2023 o álbum Territórios, já fez uma turnê pela Europa, apresenta-se nos teatros municipais de Rio e São Paulo e é mestre formada pela Manhattan School of Music, além de doutora pela Stony Brook University. “Sinto que, nesse cenário, existem individualidades em termos de performance e tenho a sensação de que cada um surfa a própria onda, porém todos dividem a mesma praia”, descreve o professor.
SOLOS DE GUITARRA
O violão brasileiro não termina nas cercanias do choro, da bossa nova, do samba, da MPB ou da música de concerto. O rock brasileiro adotou as características dos timbres do aço quando as primeiras grandes canções começaram a ser feitas dentro desse segmento, nos anos 1970. “O primeiro roqueiro brasileiro que vi com um violão nas mãos foi Rita Lee (1947-2023), na época da música ‘Ovelha Negra’”, diz o músico Frejat.
Ele explica: “A função do violão de aço no rock é interessante. Em músicas com muitas guitarras, ele traz um ‘ar’”. Frejat ainda faz uma ressalva: foram das cordas de nylon que saiu a maioria das canções gravadas por Cazuza (1958-1990), ainda no Barão Vermelho, como: “Pro dia nascer feliz” e “Maior abandonado”. “Fiz tudo no nylon. Aliás, Erasmo Carlos (1941-2022) também. A Jovem Guarda nasceu dos violões de nylon.”
Filó Machado, paulista de Ribeirão Preto, de 74 anos, conta a história de seu violão como se falasse de um filho. Ou de um pai. Depois de iniciar a carreira como cantor aos 10 anos, aprendeu violão aos 14. Chegou a São Paulo em 1970 e, em 1972, já tocava em quatro casas. Cresceu gravando apenas aquilo que acreditava. Casou-se, descasou-se, teve filhos, sustentou a família, superou preconceitos e descrenças alheias e se tornou um dos mais respeitados violonistas do país, dono de uma capacidade criativa desconcertante. “Tudo foi o violão que me deu”, diz. “Até hoje durmo abraçado a ele e, às vezes, falo baixinho: ‘Você não pode imaginar como eu te amo’”.
para ver no Sesc
RESSONÂNCIAS PLURAIS
Série exibida pelo SescTV destaca o protagonismo do instrumento em concertos de música erudita e popular

A versatilidade do violão e a presença diversa de um dos mais populares instrumentos tocados no Brasil é o foco do projeto Movimento Violão, idealizado pelo violonista Paulo Martelli em 2003. Desde 2010, a iniciativa também está presente nas telas, por meio da série homônima, exibida pelo SescTV, que apresenta concertos de violonistas renomados e de novos talentos. Entre alguns, Edson Lopes, Maria Haro e João Camarero.
O projeto celebra a pluralidade sonora do violão, promovendo concertos que vão da música erudita à popular, reunindo grandes nomes nacionais e internacionais. “O Movimento Violão promove o diálogo entre diferentes estilos e gerações e se destaca como uma iniciativa fundamental para a difusão cultural, com apresentações ao vivo em várias unidades do Sesc São Paulo, além da criação de um importante acervo de obras audiovisuais”, explica Fernando Tuacek, gerente do SescTV. Segundo o idealizador do projeto, o violonista Paulo Martelli, “a intenção é mesclar um pouco de repertório popular com a música erudita, tradicional de violão, para aproximar os públicos e assim ter uma linguagem que cative não só o músico, mas que traga novos ouvintes”.
Cada episódio apresenta uma rica diversidade de repertórios, com releituras de músicas populares e interpretações inéditas de peças eruditas. A direção musical é do idealizador do projeto, Paulo Martelli, já a direção para TV é de Flávio Rodrigues.
SescTV
Série Movimento ViolãoApresenta a virtuose de violonistas em concertos de música erudita e popular que destacam a versatilidade desse instrumento. Assista em sesctv.org.br/movimentoviolao
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