Refúgio e migração

01/12/2025

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Artigos de Paolo Parise e Eda Nagayama expõem desafios vivenciados por migrantes e refugiados e a importância da defesa dos direitos humanos e do exercício da alteridade

Leia a edição de Dezembro/25 da Revista E na íntegra

Atravessamos um período histórico em que múltiplas e simultâneas crises – econômica, social, territorial, cultural, entre outras – provocam efeitos sem precedentes, principalmente, sobre populações mais vulneráveis em todo o mundo. Fatores como guerras, perseguições e violações de direitos humanos forçaram 123,2 milhões de pessoas a deixarem seus lares até o fim de 2024, segundo dados da ACNUR – Agência da Organização das Nações Unidas (ONU) para Refugiados. Quando realocadas em outros territórios – na maior parte das vezes, vulneráveis à crise climática –, essas pessoas se veem novamente ameaçadas, dessa vez, pelas consequências de inundações, secas e ondas de calor. 

De acordo com dados divulgados na última edição do relatório Refúgio em números, do Comitê Nacional para Refugiados (Conare), entre 2015 e 2024, o Brasil recebeu solicitações de reconhecimento da condição de refugiados oriundos de 175 países. Ao todo, 156.612 pessoas foram reconhecidas como refugiadas. No país, apesar de iniciativas de acolhida, refugiados e migrantes ainda encontram preconceito e rejeição. “Em uma abordagem radical e simplista, os ‘remédios’ sociais aplicados são brutais e imponderados: por parte do Estado – perseguição, separação, prisão, expulsão e deportação; pela população civil – violência, em muitos modos e gradações. Seria possível cultivar uma sociedade pautada pela inclusividade, pela diferença como descoberta e conjunção?”, questiona a escritora, doutora e pesquisadora em deslocamentos migratórios Eda Nagayama.

Atual diretor do Centro de Estudos sobre Migrações da Missão Paz, na cidade de São Paulo, e professor do Instituto São Paulo de Estudos Superiores (ITESP), padre Paolo Parise acredita que, mesmo diante de legislações e políticas migratórias restritivas, a Declaração Universal dos Direitos Humanos precisa ser incorporada como um marco fundamental na defesa da dignidade humana, além de base para o direito de migrar e a busca de proteção. “A Declaração Universal dos Direitos Humanos esta­belece, em seu artigo 1°, que ‘todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos’. Essa premissa universal não faz distinção de nacionalida­de, origem étnica, religião ou qualquer outra condi­ção. Portanto, o migrante, independentemente do motivo que o levou a deixar a sua terra natal e das dificuldades que enfrenta em seu novo lar, é um ser humano com os mesmos direitos e a mesma dignida­de que qualquer cidadão do país de acolhimento”, ressalta.

No mês em que o Sesc São Paulo celebra 30 anos do Trabalho Social com Pessoas Refugiadas, que abrange atividades permanentes e programações voltadas à criação de situações de convivência, aprendizagem e expressão cultural de refugiados e migrantes, Parise e Nagayama refletem sobre direitos e o exercício contínuo de alteridade.   

Migração como direito humano 
Por Paolo Parise 

A Declaração Universal dos Direitos Humanos, um marco fundamental na defesa da dignidade humana, estabelece a base para o direito de migrar e a busca de proteção. Em seu artigo 13, afirma: “Todo ser humano tem direito à liberdade de locomoção e residência dentro das fronteiras de cada Estado. Todo ser humano tem o direito de deixar qualquer país, inclusive o próprio e a este regressar”. Em seguida, o artigo 14 acrescenta: “Todo ser humano, vítima de perseguição, tem o direito de procurar e de gozar asilo em outros países”. A Declaração garante, assim, a liberdade de buscar uma vida melhor, fugir da perseguição, da guerra, da pobreza extrema ou das consequências das mudanças climáticas.  

O princípio da liberdade de migrar é um direito humano básico e universalmente reconhecido. Contudo, na prática, esse direito se choca com as legislações e políticas migratórias, normalmente restritivas, dos países de destino. Além disso, colide com situações de marginalização, preconceito, xenofobia ou indiferença por parte da população dos países de destino. 

Existe um conflito fundamental entre os direitos de buscar refúgio e a liberdade de movimento, consagrados internacionalmente, e o direito soberano dos Estados de controlarem suas fronteiras por meio de políticas migratórias. Estas se baseiam na soberania estatal, um princípio de direito internacional, que confere, a cada Estado, o direito de gerir o seu território – incluindo a definição de quem pode entrar, permanecer e residir no país – e a sua segurança, justificando o controle de fronteiras como medida de proteção da ordem pública e da segurança nacional.

As leis migratórias restritivas são a manifestação desse direito soberano e, ao exercê-lo, os Estados limitam a aplicação efetiva da Declaração Universal dos Direitos Humanos a quem não é cidadão. As políticas migratórias restritivas são o conjunto de leis, regras e práticas implementadas pelos Estados para limitar, controlar e dificultar a entrada, a permanência e a integração de imigrantes no seu território. Entre essas medidas: endurecimento dos procedimentos de asilo, critérios mais rigorosos para concessão de visto, criação de campos de detenção nas fronteiras, militarização de fronteiras, construção de muros, criminalização da migração irregular, deportações e uso de acordos internacionais para facilitar a deportação de migrantes irregulares. 

A comunidade internacional tenta conciliar esse conflito por meio de quadros de cooperação, como o Pacto Global para uma Migração Segura, Ordenada e Regular. É reconhecido, por um lado, o direito soberano do Estado e, por outro, a necessidade de proteger os direitos humanos dos migrantes, buscando ordenar os fluxos migratórios, minimizar os fatores adversos que levam à migração e garantir vias regulares de migração. Existe também o Pacto Global sobre Refugiados, com a finalidade de fortalecer a cooperação internacional, lidando com as crises dos refugiados, por meio do apoio a soluções de proteção. No entanto, esses pactos não são vinculativos, de modo que o debate sobre o equilíbrio entre a soberania e os direitos humanos continuam a ser um dos mais complexos da geopolítica atual. 

Reconhecer o migrante como pessoa implica ir além da visão superficial que o associa apenas ao seu status migratório. Significa enxergar a complexidade de sua história, suas experiências, seus sonhos e suas contribuições potenciais para a sociedade.

 O direito de migrar também encontra respostas da população. De fato, as posturas diante da chegada de migrantes oscilam entre a rejeição e a acolhida. Em alguns casos, aflora a percepção de que aquele que vem de fora é uma ameaça, outras vezes, alguém a ser tolerado, ou uma pessoa com “função positiva”. Entretanto, existe a visão de que é um sujeito de direitos com a mesma dignidade de outros cidadãos. Retomamos, sinteticamente, as várias posturas diante da chegada de migrantes.  

A percepção de que o migrante constitui uma ameaça é comum em vários contextos, inclusive no Brasil, e baseia-se majoritariamente em estereótipos, desinformação e medos. O migrante é enxergado como um risco em múltiplas dimensões. É uma ameaça econômica – competição por vagas de trabalho, ameaça social e estrutural – sobrecarga nos serviços públicos (saúde e educação); ameaça à segurança – associação, desmentida por estudos, entre imigração e aumento da criminalidade; ameaça à saúde pública – receio de que sejam vetores de doenças; e uma ameaça cultural e religiosa – em contextos de nacionalismo, um risco à identidade cultural e religiosa. A tendência natural de migrantes se unirem em comunidades é vista, erroneamente, como uma ameaça à coesão social, em decorrência da perspectiva de criação de guetos. 

Existe a postura de ver o migrante como alguém a ser tolerado. A tolerância representa um avanço, mas implica em suportar a presença do outro, em vez de acolhê-lo e valorizá-lo. Essa postura cria uma exclusão sutil, relegando o migrante à marginalidade. A aceitação é muitas vezes relutante e condicional, de forma a ser definida a partir da adaptação do migrante às normas da sociedade anfitriã, reforçando a ideia de que ele é um “outro” aceito sob reserva. Esta postura, embora represente um avanço em relação à rejeição, ainda se mostra insuficiente para o reconhecimento da dignidade plena do migrante. 

Outra postura enxerga o migrante como alguém com uma “função positiva”. Esta visão utilitarista valoriza a pessoa não por seu ser, mas pela função que exerce na sociedade de acolhida. Os migrantes fazem “os trabalhos que ninguém quer fazer” (mal remunerados e de grande esforço físico). Migrantes jovens ajudam a compensar o envelhecimento da pirâmide etária, gerando um equilíbrio demográfico. A naturalização de migrantes, em alguns casos, quando se trata de atletas, fortalece equipes esportivas nacionais. A chegada de migrantes da mesma religião pode aumentar o número de fiéis. Essa perspectiva é criticada por não considerar o migrante como um ser que tem valor em si, mas apenas a partir de um interesse, gerando uma situação existencial desconfortável e a sensação de que o migrante não tem valor como sujeito.  

Após a apresentação dessas percepções, é fundamental resgatar a perspectiva humana do migrante, reconhecendo-o como um indivíduo pleno, dotado da mesma dignidade inerente a qualquer ser humano. A Declaração Universal dos Direitos Humanos estabelece, em seu artigo 1°, que “todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos”. Essa premissa universal não faz distinção de nacionalidade, origem étnica, religião ou qualquer outra condição. Portanto, o migrante, independentemente do motivo que o levou a deixar a sua terra natal e das dificuldades que enfrenta em seu novo lar, é um ser humano com os mesmos direitos e a mesma dignidade que qualquer cidadão do país de acolhimento. 

Enfim, reconhecer o migrante como pessoa implica ir além da visão superficial que o associa apenas ao seu status migratório. Significa enxergar a complexidade de sua história, suas experiências, seus sonhos e suas contribuições potenciais para a sociedade. Numa palavra, trata-se de acolhê-lo como pessoa. Cada migrante traz consigo uma bagagem cultural única, conhecimentos, habilidades e perspectivas originais.  

Paolo Parise é padre, professor de teologia sistemática no Instituto Teológico São Paulo (ITESP) e diretor do Centro de Estudos Migratórios. Foi membro do Conselho de Gestão da Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania da Prefeitura de São Paulo (2017-2018) e do Comitê de Acompanhamento pela Sociedade Civil sobre Ações de Migração e Refúgio (CASC- Migrante) no Departamento de Estrangeiros do Ministério da Justiça (2015-2016).

Sapatos sem dono, pés descalços: o chamado ético da vulnerabilidade 
Por Eda Nagayama

Um par de chinelos de plástico cor-de-rosa. Sobre a larga tira, um Piu-Piu amarelo. Sem Frajola. Vi pela primeira vez nos pés de Maria, uma menina de uns seis anos em um campo de refugiados na minúscula Alexandreia, Grécia, em 2016. Pés e chinelos sujos de poeira e terra, unhas mal aparadas. Ficou a imagem dos pés, não sendo permitido fotografar os rostos.  

Vi os chinelos pela segunda vez, alinhados a outros sapatos por tamanho e cor, na instalação Laundromat (2017), do artista e ativista chinês Ai Weiwei, exposta na Galeria Nacional de Praga, República Tcheca. As muitas roupas e sapatos que compunham a obra haviam sido abandonados no campo de Idomeni, também na Grécia, depois coletados e higienizados, antes de serem selecionados e organizados em diálogo com imagens postadas no então Twitter, hoje X.  

Alguns pares pareciam recém-saídos de lojas, outros traziam marcas de uso, algum dano. Vistos em conjunto, eram os sapatos sem par que, órfãos, causavam apreensão: um pé deixado descalço, o outro lado perdido, afundado no lodaçal do campo abarrotado e inundado pelas chuvas. Agora ordenados, os sapatos evidenciavam seu potencial de afetividade ao remeterem à condição humana de vulnerabilidade e desproteção, bem como à necessidade de alento e conexão para uma existência plena.  

Mais do que as roupas, sapatos são objetos vestigiais, nos quais são impressos rastros do uso, uma pessoalidade orgânica e biológica, o suor e o formato dos pés, o caminhar e a maneira como corpo e pés se equilibram em movimento. Sapatos dizem, também, de sua época, da moda e do gosto, dos recursos usados em sua fabricação, podendo ainda denotar posição social.  

Na obra do artista chinês, os sapatos eram indícios – presentes – de uma massa de individualidades – ausentes –, anônimas e sem voz, aos milhares. Em um mercado de modelos e materiais globalizados, os sapatos não são exclusivos de lugar algum, habitados por sírios ou bengalis, somalis ou ucranianos, ou mesmo por nossos próprios pés. Podem ainda dialogar no tempo e no espaço, com sentidos criados a partir de contextos singulares: a montanha de sapatos de prisioneiros mortos pelo regime nazista, exibidos no museu do campo de concentração de Auschwitz, na Polônia; o pé de uma bota degustada com bons modos no filme Em busca do ouro (The gold rush, 1925), de Charles Chaplin (1889-1977), semelhante ao par muito desgastado e sujo pintado por Vincent Van Gogh (1853-1890): Shoes (1888), exibido no Van Gogh Museum em Amsterdã, Holanda. 

Em inglês, a expressão “calçar os sapatos do outro” descreve o sentimento de empatia. A analogia traz consigo empecilho e desconforto: todos diferentes, os pés nem sempre se ajustam. E como diz o ditado: “cada um sabe onde lhe aperta o sapato”. 

Vistos sob o risco de contaminação e contágio, ao portarem vestígios das terras de origem, os sapatos devem ser deixados para trás. Na Mare Nostrum (2013-2014), operação aérea e naval do governo italiano que resgatou mais de 150 mil pessoas no Mar Mediterrâneo, a equipe de acolhida, em rigorosas vestimentas de proteção, que se tornariam familiares na pandemia, oferecia calçados Crocs genéricos. A contaminação não se restringiria àquela de doenças e bactérias, mas ao próprio senso de alteridade, em sua carga arquetípica e simbólica, quando a diferença é alvo de um julgamento moral, tomada como ameaça a ser combatida e eliminada: o outro é indesejável, mau.  

Em uma abordagem radical e simplista, os “remédios” sociais aplicados são brutais e imponderados: por parte do Estado – perseguição, separação, prisão, expulsão e deportação; pela população civil – violência, em muitos modos e gradações. Seria possível cultivar uma sociedade pautada pela inclusividade, pela diferença como descoberta e conjunção?  

Esse foi o cerne da revisão do projeto Refúgios Humanos, quando o Sesc São Paulo celebra 30 anos de desafios, realizações e méritos diante de um tema de urgência e exponencial crescimento futuro. Ao repensar os encontros entre educadores, migrantes e refugiados, atestou-se a incontornável questão da comunicabilidade: como transmitir a intensidade e complexidade de experiências, por vezes traumáticas e específicas de um grupo e localidade, a priori, distintas e distantes da realidade brasileira?  

Em inglês, a expressão “calçar os sapatos do outro” descreve o sentimento de empatia. A analogia traz consigo empecilho e desconforto: todos diferentes, os pés nem sempre se ajustam. E como diz o ditado: cada um sabe onde lhe aperta o sapato. O Dicionário Houaiss de Língua Portuguesa apresenta uma relação entre identidade e um repetitivo espelhamento: “capacidade de se identificar com outra pessoa, de sentir o que ela sente, de querer o que ela quer, de apreender do modo como ela apreende etc.”. Trata-se, então, de outro tipo de impasse: como sentir, querer, apreender como outro que não eu, sem que haja algum tipo de falseamento, um “eu” travestido de “outro”? 

No lastro dessa impossibilidade empática, podemos, então, retomar a proposição moral do filósofo Emmanuel Lévinas (1906-1995) como princípio fundamental da ética: o ser humano deve ser responsável pelo outro. Tal chamado não se estabelece por força, mas justamente pela vulnerabilidade e necessidade moral de proteção do outro contra qualquer forma de violência. Essa vulnerabilidade poderia encontrar analogia na desproteção dos pés.  

Na recorrente longa trajetória dos deslocamentos forçados, os sapatos se perdem: pés infantis crescem, sapatos se estragam, se entregam, desistem da jornada. Descalços e vulneráveis, os pés se ferem nos escombros de terras devastadas por bombardeios. Se nus, sim, mas também sujos, desonram a sagrada oração voltada para Meca, sem água para livrá-los das impurezas. Cuidar e lavar os pés do outro é um gesto consagrado de humildade e reverência a uma vida de sentido e compaixão, de comunidade. Em uma responsividade ao chamado ético, que os nossos – todos os pés –, possam estar protegidos, limpos e livres para caminhar sobre o mundo.  

Eda Nagayama é escritora e doutora em Estudos Literários pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP), com pesquisa em pós-memória, trauma, Holocausto e deslocamentos forçados contemporâneos. Autora de Desgarrados (Cosac Naify, 2015), finalista do Prêmio São Paulo de Literatura, e de Yaser (Ateliê Editorial, 2018), baseado na experiência como observadora de direitos humanos na Palestina.

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