Deslocar olhares com Cecilia Braschi

01/12/2025

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Doutora em história da arte e curadora ítalo-francesa acredita em intercâmbio cultural com a América Latina para soma de perspectivas no cenário das artes

Leia a edição de Dezembro/25 da Revista E na íntegra

POR MÁRIA JÚLIA LLEDÓ
FOTO NILTON FUKUDA

Na década de 1920, Tarsila do Amaral (1886-1973) chegava a Paris, epicentro de movimentos artísticos, de mestres, museus e galerias. Lá, ela aprenderia lições na Academia Julian e iria expor uma primeira fase de seu trabalho, para depois retornar ao Brasil e se tornar ícone do modernismo no país. Junto a Anita Malfatti (1889-1964) e a outras pioneiras, Tarsila inscreveria a presença das mulheres na história da arte moderna no Brasil. No entanto, a artista seria escamoteada pelos livros de história da arte europeus, nos quais seu nome permanece desconhecido. Ao se dar conta da trajetória e da importância da artista brasileira, bem como de outros expoentes latino-americanos que estiveram em Paris, a pesquisadora e curadora ítalo-francesa Cecilia Braschi se empenhou em jogar luz sobre artistas latino-americanos – além de Tarsila, o colombiano Fernando Botero (1932-2023).

“Na universidade, nunca estudei nada sobre a arte do Brasil.(…) Então, partiu de uma curiosidade pessoal saber por que tantos artistas vieram a Paris”, recorda Braschi, que assinou a curadoria das exposições Fernando Botero, além das formas, no Museu de Belas Artes de Mons, na Bélgica, em 2021, e Tarsila do Amaral: Pintar o Brasil Moderno, a primeira que abrange toda a carreira da artista, realizada no Museu de Luxemburgo, em Paris, e no Guggenheim, em Bilbao (Espanha), entre 2024 e 2025.

Além de acertar o passo com o tempo e com a necessidade da incorporação de outras narrativas a uma história da arte colonialista, segundo Braschi, ambas exposições abriram frestas na perspectiva do público. “Então, a proposta não é só da curadora, nem da obra em si, que é muito interessante, mas também do olhar do público, quando ele para, comenta e discute. Para mim, essa é uma parte fundamental da existência da exposição”, acredita Cecilia Braschi, que participou do curso Novas perspectivas museográficas e curatoriais: Modernismos sul-americanos e públicos europeus, no Centro de Pesquisa e Formação (CPF) do Sesc, em agosto passado. Neste Depoimento, a curadora compartilha seu encontro com a obra de Tarsila, a exposição e a recepção do público, além da importância de intercâmbios culturais para ampliação de repertórios e pontos de vista.

curiosidade
Na minha formação não havia contato com expressões artísticas sul-americanas. Na universidade, nunca estudei nada sobre a arte do Brasil. Mas o que me chamou a atenção, em uma pesquisa pessoal, foi constatar a presença de muitos artistas latino-americanos – argentinos, brasileiros, uruguaios – em Paris, em particular, nos anos 1950, o período que mais estudei durante o mestrado. Então, partiu de uma curiosidade pessoal, saber por que tantos artistas vieram a Paris. Foi aí que comecei a fazer viagens para vários desses países. Essa curiosidade vem da minha experiência também, porque sou italiana, moro na França e acho muito rico esse deslocamento. Cansativo, também, do ponto de vista emocional e cultural. Imagino que para todos os artistas que se deslocaram de suas origens foi a mesma coisa, mas também enriquecedor. Foi isso que me convidou a pensar no deslocamento dos artistas e das ideias no âmbito da cultura em geral. 

tarsila
Impossível não passar por Tarsila do Amaral quando você se aproxima da arte brasileira. No meu doutorado, estudei os anos 1950 e 1960, e essa personalidade da arte sempre aparecia. Muito frequentemente, acontece assim: você começa a estudar uma época e busca entender o que aconteceu antes. A minha tese era sobre revistas de arte e de arquitetura, e achei vários artigos e discussões sobre artistas, entre os quais, Tarsila. Ela participou da 1ª Bienal de São Paulo (1951), da 32ª Bienal de Veneza (1966), então descobri essa figura maior do panorama da cena artística brasileira. Também me chamou a atenção o fato de Tarsila ter estado em Paris por tanto tempo e como isso foi importante para ela. Olhando desde o Brasil, parece que essa temporada foi fundamental. No entanto, Paris esqueceu essa artista, como esqueceu muitos outros. Agora, há um novo interesse para cenas artísticas que a França desconsiderou e, também, para artistas mulheres. 

intercâmbio
Cada narrativa depende de um ponto de vista e, portanto, das experiências e pensamentos que o conformam. Não se trata de negar um ou outro, mas de entender como vários pontos de vista coexistem e como um pode acrescentar ao outro. Então, fazendo uma exposição na Europa sobre artistas, nesse caso, de dois países da América Latina [Fernando Botero e Tarsila do Amaral], não se trata de tomar de novo o comando da história ou da narrativa artística. Sobre Tarsila, por exemplo, existem muitos estudos profundos feitos no Brasil. Então, para mim era importante começar por aí. Mas depois, ver também o que esse olhar desde a Europa pode acrescentar. Senão, não faz muito sentido simplesmente deslocar exposições de um lugar para outro. Cada lugar tem uma alma, uma experiência diferente e foi bem interessante [realizar as exposições de Botero e Tarsila], porque, de fato, eu achei ideias novas que nasceram justamente desse olhar de fora, que não apaga nada, mas acrescenta ideias e possibilidades de pontos de vista.

imaginários
Eu acho que Tarsila inventou uma ideia de Brasil, até porque fazia parte do projeto modernista inventar um ideal brasileiro que fosse, também, exportável para os europeus. Então, havia uma consciência de que o olhar estrangeiro era importante. Sendo assim, como ela constrói esse imaginário? Por um lado, olhando e sintetizando a própria paisagem, e a intenção dessa exposição foi mostrar como ela seleciona os elementos visuais dessa paisagem, traduzindo-os em linhas e formas geométricas simples, que se tornam o vocabulário da nova linguagem moderna brasileira, que ela inventa em suas paisagens pintadas nos anos 1924-1925. Mas depois, inventar um povo é bem mais problemático. Quem são esses brasileiros? Uma obra como A negra foi, primeiramente, exaltada como homenagem à população afro-brasileira, mas agora é criticada como um estereótipo racista e sexista, a representação de uma mulher negra e ama de leite, com todo o peso desse imaginário. Em Paris, estamos acostumados a ver obras de Pablo Picasso (1881-1973), e estamos familiarizados com obras literárias como Antologia negra, do poeta franco-suíço Blaise Cendrars (1887-1961), escrito pouco tempo antes de Tarsila pintar A negra. Então, dá para entender o contexto. Com certeza, Tarsila estava tentando se encaixar numa época. Ela estava, também, respondendo a uma expectativa que é propriamente europeia. 

Cecilia Braschi acredita que uma exposição não deve ser limitar a apresentar ideias prontas e fechadas, mas estar aberta ao olhar do público

diálogo
A maior gratificação dessa exposição [Tarsila do Amaral: Pintar o Brasil Moderno] foi um grupo de jovens, entre 20 e 25 anos, que me disse que essa era uma exposição que falava com eles. Esse, para mim, foi o maior elogio. Porque, justamente, não era apenas contar a história da arte de uma época já passada, mas todo o jeito de apresentá-la era meu foco, assim como atualizar esse discurso. Ao olhar para uma mulher artista em Paris, que estava inventando um personagem em um mundo bem estereotipado e masculino, dá para pensar qual é hoje a situação das mulheres artistas. Além disso, pensar a invenção de uma identidade nacional. Qual é hoje a nossa identidade? Ela existe, é inventada ou construída? Outro aspecto que também me chama muita atenção é a implicação política de Tarsila na segunda parte da sua carreira, uma época pouco explorada e apresentada, mas que deu para levantar novas pesquisas e textos no catálogo. 

público
Eu acredito muito no público, que é muito mais inteligente do que o mercado das exposições nos deixa pensar. Então, esse diálogo é importante. Uma exposição não se limita apenas a apresentar coisas fechadas e prontas. É o olhar do público que faz metade da exposição. A recepção e as perguntas que são elaboradas fazem parte também. Eu gostei muito disso, sobretudo, em Paris, no Museu de Luxemburgo, um museu pequeno, aonde o público vai porque está interessado na programação, uma vez que há muitas ofertas na cidade. E eu observei e ouvi muitos comentários inteligentes dos visitantes. Então, a proposta não é só da curadora nem da obra em si, que é muito interessante, mas também do olhar do público, quando ele para, comenta e discute. Para mim, essa é uma parte fundamental da existência da exposição. 

pluralidade
É justamente essa ideia de “uma história da arte” que devemos romper. Ouço muitas vezes em discursos na França que: “hoje temos que reescrever a história da arte”. Mas e se a gente parar de escrever e, então, ler outras histórias? Ouvir as histórias. Porque elas são plurais. A partir da trajetória de uma mulher artista dá para aprender outras coisas sobre a história da arte, como a trajetória de uma artista brasileira, que conta tantas outras coisas. E como o contexto influencia muito a carreira de cada artista, assim é possível multiplicar as histórias da arte, o que eu acho muito mais interessante. A mentalidade europeia está acostumada a classificar e a fichar, desde sempre, e com isso, estamos contando a história como “ela é”. Mudar é um exercício mental difícil, vai tomar tempo, mas vai dar certo.  

Assista a trechos desse Depoimento com a doutora em história da arte, pesquisadora e curadora ítalo-francesa Cecilia Braschi, realizado em agosto no Centro de Pesquisa e Formação (CPF) do Sesc São Paulo. 

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