Karnak, do indivíduo ao mundo 

05/12/2025

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André Abujamra era um menino — “bem pequeno!”, ele reforça — quando seu pai, o ator e diretor Antônio Abujamra, chegou da então Alemanha Oriental com um punhado de vinis de artistas russos. Quando a mãe do pequeno André perguntou “por que você trouxe isso?”, Abujamra pai simplesmente respondeu: “Porque o Andrezinho um dia vai usar”

Corta para dezembro de 1999, no Sesc Pompeia. O Karnak, banda comandada pelo já crescido André Abujamra, na época com 34 anos, começa seu show com “Abertura russa”, confirmando a intuição de seu pai. A canção, composta por André Abujamra e Paulinho Moska, é uma viagem entre o épico e o festivo, cantada num russo inventado, uma língua usada pelo Karnak desde seu disco de estreia, de 1995. 

“Todo mundo perguntava: ‘Cara, você fala russo?’”, conta o cantor e compositor — e  instrumentista e produtor e ator e cineasta… “Eu explicava que não, mas eu escutei muita música russa quando era pequenininho. Então eu gosto de falar russo. Mas na verdade eu não gosto muito de falar, eu gosto mais de tocar. Só que música pop tem que ter letra, né? Então eu inventei um russo karnakiano”

O russo karnakiano de Abujamra aparece em diferentes momentos do álbum lançado agora dentro do projeto Relicário, do Selo Sesc — registro do show realizado no dia 21 de dezembro de 1999, no Sesc Pompeia. Aquelas apresentações capturavam a banda num momento logo anterior ao lançamento de seu terceiro disco, Estamos adorando Tokio. Empolgados com o novo repertório, então ainda inédito, a banda o usou como base do roteiro: das 13 faixas do disco ao vivo, oito são do álbum que ainda estava por sair, incluindo “Abertura russa”. 

“O show da gente sempre foi meio valente, até hoje”, explica Abujamra. “A gente tem sempre uma coisa de mostrar coisa nova pro público”.  

A valentia do Karnak é inerente ao próprio projeto da banda, idealizada e comandada por Abujamra. Afinal, a proposta do grupo era única: beber de sonoridades tradicionais árabes, ibéricas, russas, africanas, asiáticas e sertanejas, entre outras, cruzando com referências da música pop de diversas vertentes, do punk ao reggae. Mas não como um projeto de world music — categoria em voga na época. Simplesmente porque a abordagem de Abujamra não envolvia pesquisa. Era um olhar quase infantil — ingênuo, fantasioso, afetuoso — sobre as diferentes culturas, reunindo informações que ele liquidificava em sua música. 

Essa perspectiva permitia que a banda tratasse de maneira original questões centrais daquele início de década de 1990 — logo após a queda do Muro de Berlim, quando o neoliberalismo era visto por muitos como o “fim da História”, um caminho inescapável. Temas como a globalização, o lugar das tradições nesse contexto, a compreensão das diferenças. Tudo sob um olhar que, em sua aparente inocência, era e é até hoje capaz de se mostrar revelador — para quem sabe olhar, como observa Abujamra:     

“Sabe gente que só lê a orelha do livro?”, pergunta o artista. “Se você só lê a orelha do livro do Karnak, a gente é uma banda engraçadinha, meio Mamonas Assassinas. A nossa linguagem é leve, mas a gente fala coisas sérias. Somos uma banda amorosa. Tem melancolia, tem poesia. A gente definitivamente não é uma banda de piada”

A trajetória de Abujamra já era plena de valentia e originalidade antes do Karnak, como mostrava o experimentalismo pós-tropicalista pop urbano de Os Mulheres Negras, que ele criou em 1985 ao lado de Maurício Pereira. Antes, na faculdade de Música, os dois tocaram juntos em outra banda que se mostrava igualmente sui generis já no nome: Müska,d Xalote. “A gente já fazia umas coisas meio misturadas”, lembra o músico. 

Nota sobre o show da banda Karnak em 21 de dezembro de 1999
Nota sobre o show da banda Karnak em 21 de dezembro de 1999 na Folha de S. Paulo

As raízes, porém, são ainda mais fundas. Até os quatro anos, o menino Abujamra não falava — mas já ensaiava tocar desde um ano. “Antes de ser gente, eu já era músico”, brinca. “E eu sempre gostei de todos os tipos de música mesmo, de verdade. Então, o Karnak não foi uma coisa assim: ‘ah, eu vou fazer world music’. Eu sou world music! Eu escuto tudo e acoplo dentro do meu som. O Karnak é como é porque é do jeito que eu sou. Eu sempre gostei de coisas orientais, sempre gostei de música nordestina, e sempre achei que essas coisas combinavam. Eu acho que o reggae combina com o russo”.  

Quando Os Mulheres Negras interromperam suas atividades em 1991, Abujamra quis fazer algo mais volumoso do que um duo, que eles brincavam ser “a terceira menor big band do mundo”. Pensou: “Agora eu vou montar uma banda grande pra caralho e vou fazer tudo que eu quiser”. Daí veio o Karnak, que na formação que aparece no disco do projeto Relicário, além de Abujamra (guitarra e voz), tem Edu Cabello (guitarra), Kuki Stolarski (bateria), Hugo Hori (sax e voz), Marcos Bowie (trompete e voz), Sérgio Bártolo (baixo), Lulu Camargo (teclados) e Carneiro Sândalo (bateria e voz).  

É esse time que ataca, logo depois da “Abertura russa”, a segunda faixa do disco. Punk rock com pitadas de bebop, “O indivíduo” trata de um paradoxo central pra Abujamra, e consequentemente pro Karnak: a unicidade particular de cada um, ao mesmo tempo em que somos todos semelhantes. “O indíviduo é individual/Ele é diferente/Mas é igual”, dizem os versos, quase um aforismo punk. A canção, que nunca teve um registro em estúdio, até aqui aparecia na discografia do Karnak apenas no álbum ao vivo “Os piratas do Karnak”. 

“Fiz ‘O indivíduo’ quando nasceu meu primeiro filho, o José”, conta Abujamra. “Olhei pra ele e falei: ‘Esse moleque é muito individual… tão parecido comigo, mas não é igual”. Isso é simples e profundo, né?”

Também do repertório de Estamos adorando Tokio, a bucólica “Juvenar” é louvor à vida simples da roça com direito a solo de cravo e citação karnakiana de “Vida de gado”, de Zé Ramalho (“É uma música que eu escuto desde pequenininho”, diz Abujamra). Ela nasceu de uma letra que ele recebeu do baterista Carneiro Sândalo, escrita num papel de pão, a partir de uma frase que o músico tinha ouvido na TV: “Juvenar, vem tirar o leite!”

“Misturei a ideia dele com uma outra coisa, que não adianta muito você ir atrás de um lugar onde você vai estar bem”, detalha Abujamra. “Você tem que estar bem sempre com você mesmo, não importa onde”

“Mediócritas”, a faixa seguinte, traça um caminho bem à la Karnak. Na primeira parte, sobre um arranjo fofo, fala da maldade humana (“Ninguém quer te feliz/Todo mundo quer que você quebre o nariz”). Um xingamento marca a virada da atmosfera a partir dos versos “A gente faz letra infantil/ Vai pra puta que pariu”. Depois, já tornada em rock nervoso, se dirige agressivamente a seu interlocutor: “Você é um espírito de porco”. Por fim, a catarse vem na afirmação terna, contrastando com o grito que a emite: “A gente escuta nosso coração”. A conclusão é um berrado “Feliz Natal!” — na gravação que sairia no ano seguinte em Estamos adorando Tokio, nessa parte eles cantam “O amor é importante”.   

Abujamra conta que a escreveu como resposta a um crítico que disse que o Karnak era “uma banda natimorta”: “Graças a esse filho da puta o Karnak é uma banda eterna, porque ali eu falei: ‘Eu nunca vou acabar’”. 

“Estamos adorando Tokio”, nesta versão ao vivo, começa com um solo de sax que parece anunciar algo bem diferente da Cuba que se instaura na sequência. Faixa-título do disco de 2000, a canção trata de migração, refletindo — com cintura solta de salão de baile e muito humor — sobre a arbitrariedade das fronteiras e a possibilidade de abraçar diferentes culturas com o mesmo amor. No meio disso, Abujamra encaixa uma referência à ópera “Figaro” que não entrou na versão gravada em estúdio.  

Curiosidade: a banda nunca foi a Tóquio. A canção foi composta durante uma turnê que eles fizeram nos Estados Unidos e Canadá. O mote foi a fala de uma amiga da sogra de Abujamra na época, que em visita ao Japão, fascinada com a capital do país, disse ao taxista japonês: “Estamos adorando Tokio!”. “Ela falou assim mesmo, em português, de tão empolgada. Pensei na hora: isso é nome de disco. E fiz a música”, lembra o líder do Karnak. 

“Sósereiseuseforsó/ Nuvem passageira” começa como divertida paródia de metal para depois se abrir sem perder a densidade. “Falei pro Kuki e pro Carneiro fazerem o que quisessem nessa música. Ficou muito louco, incrível”, conta Abujamra, que compôs a melancólica canção numa época em que atravessava uma separação. A balada existencial “Nuvem passageira”, de Hermes Aquino, se encaixa à perfeição ali.  

“Depois da chuva” se desenha como um soul solar, estilo Stevie Wonder, e depois ganha acento reggae. A letra otimista anuncia exatamente o tempo bom após a tempestade. O vocalista aqui é Marcos Bowie. “Minha mãe amava o Karnak, ela ia no show e falava assim: ‘Ai, André, amei a banda, o show, mas aquele menino que canta com você é maravilhoso’. Eu tinha o maior ciúme”, confessa Abujamra. O pai era mais incisivo: “Andrezinho, tira aquele menino da banda. Ele canta muito melhor que você”.  

A melodia assoviável e o alto astral são temperados por elementos de estranheza, como o fim “engasgado”. “A gente sempre tenta fazer umas coisas um pouco mais pop, mas o Karnak nunca consegue ser pop”, avalia Abujamra. “É como disse o Paulinho Moska a certa altura da audição do nosso último disco, ‘Mesozóico’: ‘Essa é quase pop, mas tem umas coisas que atrapalham o ouvido das pessoas’”

“Zoo” é uma canção ao mesmo tempo triste e engraçada, construída sobre uma arranjo de base árabe — a Arábia do Karnak. A premissa é simples: os animais do zoológico falando da dor profunda de viverem trancafiados. Mas o inusitado de suas reflexões, o deslocamento para o ponto de vista deles provoca sorrisos, como quando a arara, sem entender o tratamento diferente dispensado a cada animal, pergunta: “Por que não prendem o gato e o cachorro?”. É um exemplo nítido do pensamento karnakiano — as injustiças estabelecidas a partir das diferenças são vistas por uma lente de pureza, o que as torna mais evidentes. 

“Mómuntuera” é uma brincadeira com as palavras e com as ideias de amor e ódio, num arranjo que faz uma citação rock de uma melodia de Sergei Prokofiev. “É de uma das músicas mais lindas do Prokofiev, o cara que fez ‘Pedro e o lobo’, trabalhou com trilhas pro Eisenstein. É o compositor que eu mais amo”, revela Abujamra.  

Até aqui, todo o repertório de show eram de inéditas, que seriam lançadas em sua maioria em Estamos adorando Tokio — a única exceção era “O indivíduo”. Na reta final do show, a banda toca três músicas dos dois álbuns anteriores, Karnak (1995) e Universo umbigo (1997).  

A primeira delas é “Alma não tem cor”, que expõe sua ideia central já no título — uma ideia que parte de uma premissa generosa, mas o tempo e os debates contemporâneos sobre raça a lançaram num terreno polêmico. A despeito disso, a canção ainda brilha, apontando para uma utopia que ainda merece ser perseguida — com a delícia de seu russo inventado na introdução, seu “negón” em espanhol, sua menção a Jorge Mautner, seus metais bálticos. Já então um hit do Karnak, ela encerra oficialmente o show. 

O bis é aberto com “O mundo”, espécie de canção-manifesto, cartão de vistas, obra síntese do Karnak. O que não está muito longe da verdade: ela foi a primeira composta para o projeto. “Nessa música que nasce o Karnak”, afirma Abujamra. Um mosaico de diferentes cacos do mundo, de sua superfície à sua alma: “O mundo tá muito doente/O homem que mata, o homem que mente”. Sustentando tudo isso, uma salada sonora world music de várzea, que inclui um ragamuffin vira-latíssimo.  

Quando eu falo que ‘Todos somos filhos de Deus/ Só não falamos as mesmas línguas’, isso não é uma coisa religiosa”, explica Abujamra. “É uma visão das coisas. O brasileiro faz feijoada, outro faz babaganuche. Mas todo mundo é filho de Deus”

A explosiva “Universo umbigo” retoma a dualidade indivíduo/Humanidade, que é um dos eixos do show e da própria trajetória do Karnak. Em meio a reflexão pop profunda, há citações a “Atirei o pau no gato”, “Frère Jacques” e até “Noite feliz” cantada em russo inventado. “Eu estava triste e pensando nisso, na importância dessa tristeza e de que eu não era o único sofrendo no mundo. Eu não sou o umbigo do universo, né? Mas cada um é o umbigo do mundo pra si. Aí eu falo que era convencido, mas agora não sou mais porque cheguei à perfeição. Já é o lado Monty Python do Karnak, sabe?”

Para fechar o bis, o Karnak ataca o baião transnacional “Ai ai ai ai ai ai ai” como quem abre um mapa-múndi particular. A gravação cruza a ária “La donna è mobile”, quadrinhas populares, lampejos de rock sinfônico e o canto de um boêmio de língua enrolada. Na letra, o planeta se mostra dividido sob a lógica karnakiana — “gente boa” e “gente má”, “gente à toa” e gente “atuá” — até chegar ao ponto em que a diferença se dobra em empatia: “Na Tailândia morreu nenê/E a gente chora vendo a mamãe sofrer”. É o humor iluminado por humanidade que faz do Karnak uma banda capaz de rir com as dores sem diminuir sua gravidade, e de lidar com as tensões com a mesma franqueza afetuosa que atravessa toda sua obra. 

Do mundo ao seu umbigo, da roça a Tóquio, das nossas diferenças às nossas semelhanças, da inocência à filosofia. A passagem do Karnak pelo palco do Sesc Pompeia em dezembro de 1999, agora registrada nesse álbum Relicário: Karnak (ao vivo no Sesc 1999), sintetiza um tanto do universo da banda, no que ele tem de real e de inventado — afinal, é da natureza das utopias pôr essas duas dimensões pra cantar e dançar juntas. 



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