Um mergulho no universo trágico e sobrenatural de Mizuki Shigeru

31/01/2023

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O fantástico e assombroso universo que inspirou os traços do artista japonês Mizuki Shigeru

Por Manuela Ferreira 

Pelas ruas da pequena cidade de Chofu, na província japonesa de Tóquio, estão espalhadas estátuas de seres imaginários inspirados no rico folclore asiático. Os personagens também são vistos no cemitério local, adornando – e protegendo – a sepultura de seu criador, o mais famoso morador do município. Mizuki Shigeru (1922-2015), o ilustre habitante daquela cova, fez de Chofu o seu refúgio. Um lugar onde se dedicou, ao longo de quase sete décadas, a enfrentar as profundas marcas causadas pelos horrores que testemunhou no fronte da Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Cenários e lembranças que também levaram o quadrinista e folclorista a se tornar um dos mais respeitados mangakás – autores de mangá, os quadrinhos japoneses – de seu país, e referência mundial no gênero. As memórias dos encontros com a morte são um tema recorrente no abrangente trabalho de Shigeru – e mais do que confrontá-la, o artista fez de suas criações uma ode à vida.

“Mizuki Shigeru começou a publicar obras para kamishibai [histórias ilustradas apresentadas ao público em pequenos palcos portáteis sobre rodas] em 1951 e, em 1958, teve seu primeiro mangá publicado. Entretanto, não tratavam da temática de guerra, mas sim de temas de aventura e ficção científica, muitas vezes utilizando, de maneira não autorizada, personagens famosos de histórias em quadrinhos dos Estados Unidos”, conta o escritor e historiador da arte Rafael Machado Costa. A partir do final dos anos 1950, Mizuki se voltou às histórias de terror e fantasia. “Foi só na metade da década de 1960 que ele passou a publicar, de forma mais estável, mangás sobre a guerra, vários deles publicados na revista alternativa Garo, berço de muitos dos quadrinhos japoneses experimentais e de vanguarda do período.”


Poder ancestral

O artista, cujo nome de batismo é Mura Shigeru, nasceu na cidade de Osaka e cresceu na  litorânea Sakaiminato. A mudança de ares foi a alternativa encontrada pelos pais, Ryoichi e Kotoe, para oferecer qualidade de vida e educação aos três filhos. A aptidão do garoto para escrever e desenhar se fez notar já nos primeiros anos escolares, época em que os professores de artes o consideraram um prodígio. A infância moldaria, ainda, um dos temas de investigação fundamentais na trajetória artística do autor. “Mizuki, quando criança, teve contato muito próximo com Kageyama Fusa, uma idosa que atuava como algo que poderia se aproximar do nosso conceito de benzedeira, realizando orações e ritos religiosos. Kageyama – que era chamada por Mizuki pelo apelido carinhoso Nonnonbaa – era uma pessoa bastante pobre, mas tinha um profundo conhecimento sobre cultura e narrativas tradicionais japonesas”, explica Rafael Machado Costa.

Foi de Kageyama que Mizuki Shigeru recebeu suas primeiras lições sobre os relatos históricos ancestrais. Anos mais tarde, tais referências seriam retratadas, principalmente, sob a forma dos exuberantes youkais (espíritos da natureza), que aparecem em grande número em seus mangás. “As pesquisas e trabalhos de Mizuki sobre as guerras e os youkais não são duas facetas do seu trabalho, mas sim uma única produção. Como ele próprio dizia, ‘é somente em tempos de paz que os youkais se permitem serem vistos’”, reflete o pesquisador Alexandre Linck.

Na sua visão, o quadrinista adentrava no imaginário japonês, antes de tudo, com o propósito de estudá-lo. “Parecia intrigar a ele como uma mesma cultura é capaz de tanta criatividade poética e também de horror. Contudo, Mizuki foi além, explorando também mitos e lendas de culturas do mundo todo”, analisa Linck, que cita como obras primordiais do autor as séries GeGeGe no Kitaro (publicada entre 1965 e 1986) e Showa: Uma história do Japão (1988), ambas ainda inéditas no Brasil. “É difícil demarcar qual é o seu principal trabalho, pois muito do que ele produziu é bastante inacessível no Ocidente”, pontua. Dois títulos, porém, estão disponíveis em português: Marcha para Morte (Devir, 2019) e NonNonBa (Devir, 2018).


Faces do absurdo

Quando jovem, Mizuki Shigeru realizava trabalhos variados, como entregador de jornais e pintor de paredes, enquanto candidatava-se, sem sucesso, a instituições de ensino superior. Até que, em 1942, aos 20 anos, foi convocado pelo exército japonês após a eclosão da Guerra do Pacífico (1937-1945) – operação travada no contexto da Segunda Guerra Mundial, quando o Japão invadiu e atacou possessões britânicas e bases militares norte-americanas. Mesmo acometido por uma grave miopia, o quadrinista foi obrigado a servir em Nova Guiné, país insular situado na Oceania. Jamais se acostumaria às funções na tropa, sendo alvo constante de advertências e de violência física dos superiores. Presenciou execuções de companheiros de regimento, decapitações de combatentes inimigos e atuou em missões suicidas. Ao contrair malária – e afetado pelos delírios ocasionados pela febre característica da doença – foi levado para um hospital de campanha da cidade de Rabaul certo de que seria “esquecido”.

Dias depois, quando ainda estava internado, a unidade médica foi atingida por um bombardeio aéreo. Com a explosão, perdeu o braço esquerdo. A amputação do membro, sem uso de anestesia, adicionaria mais sofrimento à experiência como soldado, já permeada por reflexões sobre morte, crises existenciais e total ojeriza ao conflito. Após retornar ao Japão, continuou trabalhando em ofícios distintos, como vendedor de peixe, tintureiro, pintor de cerâmicas e artista kamishibai. Novas mudanças, no entanto, ocorreram a partir de 1960, ano em que se casou com Nunoe, companheira de toda a vida. Juntos, tiveram duas filhas: Naoko Haraguchi e Etsuko Mura. Na mesma época, Mizuki passou a produzir e publicar mangás do personagem Kitarou – um menino youkai. As encantadoras figuras do universo de Kitarou – como Kitaro (seu pai), Medama-oyaji (um youkai-múmia, que morre de doença, mas ressuscita apenas com os olhos) e Nezumi-otoko (o homem rato) – atravessam gerações como um marco cultural e uma das obras-primas do mangá.

Ruínas e construções

Kitarou aparece, inicialmente, em publicações restritas ao mercado de locadoras de livros, e depois o personagem vai se popularizando com as contribuições narrativas e visuais de Shigeru, conforme detalha Rafael Machado Costa. “Após desenvolver algumas histórias em que Kitarou encontrava com criaturas fantásticas e míticas, tanto da cultura chinesa como da ocidental [como vampiros e lobisomens], Mizuki inseriu, gradualmente, outros personagens das histórias que ouvira de Kageyama, usando Kitarou para apresentá-los aos leitores”, completa o historiador.

Para além do resgate do imaginário tradicional japonês, o artista incutiu alguns dos parâmetros artísticos de um “novo Japão” que emergia após a derrota na guerra – ao passo que não aceitava revisionismos históricos favoráveis ao papel do próprio país no conflito bélico, que considerava catastrófico. Pacifista, o autor também produziu diversas histórias em quadrinhos em que criticava o nacionalismo japonês dos anos 1930 e 40. Condenava, ainda, a futilidade da guerra, na qual oficiais de alta patente, vindos de famílias tradicionais e nobres, em tentativas de alcançarem status idealizados como heróis, usavam os jovens soldados de famílias modestas e pobres – incapazes de entender por quê pegavam em armas – como se fossem descartáveis.

O artista, portanto, deixou um legado importante para evitar que o imaginário tradicional japonês fosse ofuscado diante da crescente urbanização e industrialização que o seu país natal enfrentou na segunda metade do século passado – somando a esse aspecto, também, a expansão das novas mídias. “Ao inserir esses personagens, seres e entidades em suas histórias em quadrinhos – que posteriormente foram adaptadas para animação, cinema e videogame – Mizuki os reintroduziu na cultura popular japonesa mais recente, permitindo que alcançassem um público urbano mais jovem”, ressalta Rafael Machado Costa.

Nas palavras do escritor e tradutor Zack Davisson, em artigo publicado no jornal The Comics Journal, de 9 de dezembro de 2015, a influência de Shigeru na cultura pop “é tão onipresente que chega a ser invisível”. “Se você já viu uma criança jogar uma carta de Pokemon ou Digimon, ou assistiu a filmes como Meu amigo Totoro (1988) ou A viagem de Chihiro (2001), então você viu a mão de Mizuki. Aquelas batalhas entre monstros e robôs gigantes dos [filmes] Círculo de Fogo (2013), Godzilla e da [série] Neon Genesis Evangelion? (1995). Aconteceu primeiro nas páginas de Kitarou”, escreveu.

Maestro do sobrenatural

Vertente antropológica da obra de Mizuki Shigeru foi foco de curso no Sesc São Paulo

Na avaliação do escritor e historiador da arte Rafael Machado Costa, são inúmeras as contribuições deixadas por Mizuki Shigeru enquanto folclorista. “Mizuki investigou os youkais de maneira ativa, visitando diferentes regiões do Japão, recolhendo narrativas orais e as registrando, pesquisando em textos e pinturas antigas em templos xintoístas e outras bibliotecas, e compilando esse material nos vários livros e enciclopédias que escreveu e desenhou sobre o tema”.

O quadrinista também se dedicou aos estudos do que chamava de youkai estrangeiros que, segundo o historiador, são “compostos por entidades e seres fantásticos presentes nas culturas de outros povos – que incluía até mesmo os encantados da cultura brasileira, como o Saci-Pererê”, complementa.

Esta vertente antropológica do legado do artista foi um dos temas do curso Mizuki Shigeru: os youkais e a sociedade japonesa, que Rafael conduziu no Centro de Pesquisa e Formação do Sesc São Paulo, entre novembro e dezembro de 2022. Em seu canal no YouTube, Ilha Kaijuu, Rafael apresenta – e faz críticas – a mangás e outras histórias em quadrinhos. Saiba mais: youtube.com/ilhakaijuu.

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