Os Olhos de Mark Cousins

09/02/2023

Compartilhe:

Mark Cousins não para. Enquanto alguns diretores podem levar anos para finalizar um único projeto, Mark lançou três filmes, só no ano passado. Entre eles, Marcha Sobre Roma, um estudo sobre a acessão do fascismo na Itália, que venceu o prêmio de Melhor Documentário na Mostra de São Paulo. Segundo o cineasta, o segredo de sua produtividade está no fato de ele ter energia de sobra, tomar decisões rápidas e trabalhar com orçamentos baixos, que permitem uma maior liberdade e mobilidade.

Cousins nasceu em 1965 em Belfast, na Irlanda do Norte, mas vive e trabalha em Edimburgo, na Escócia, de onde conversou via Zoom com o Sesc. Em 2009, Cousins anunciou a fundação da 8 ½ Foundation, ao lado da atriz Tilda Swinton, na qual eles equiparam uma van com um projetor de 35 mm, que viajava pelas montanhas da Escócia exibindo filmes para crianças de 8 anos e meio. Cineasta cinéfilo, Cousins lançou vários projetos sobre o próprio cinema, incluindo as séries The Story of Film: An Odyssey (2011) e Women Make Film: A New Road Movie Through Cinema (2018), além de documentários como Meu Nome É Alfred Hitchcock (2022) e Os Olhos de Orson Welles (2018), que chega agora na plataforma Sesc Digital.

Leia abaixo, os principais trechos da entrevista com Mark Cousins.

DUDA LEITE – Quando começou seu interesse pelo cinema?

MARK COUSINS – Eu descobri o cinema por volta dos 8 anos. Aliás, descobri minha paixão pelo cinema na escola. Eu não era bom de leitura, como muitas pessoas, mas era bastante visual. Me apaixonei por Orson Welles e Alfred Hitchcock, e todas aquelas pessoas que falavam uma língua que eu podia entender: o melodrama, as imagens. Já amava o cinema desde essa época. Só não tinha ideia de que eu viria a trabalhar com isso. Vim de uma família de classe operária, sem nenhuma conexão com as artes. Meu pai era um mecânico e minha mãe uma ajudante doméstica. Mas sempre soube que cinema e artes não eram apenas para a elite, o cinema em especial. Filmes precisam tratar de temas que todos possam se identificar de alguma maneira. Isso não significa que você precise tratar de temas triviais. Considero meu trabalho bastante imaginativo.

DUDA – Sem dúvida. Você se lembra qual foi o primeiro filme que você assistiu de Orson Welles? E qual foi a sensação que ele te causou?

MARK – Foi A Marca da Maldade (Touch of Evil, 1958). Eu vi na TV quando tinha 8 ou 9 anos. Quanto à sensação – essa é uma boa palavra – foi como se minha mente tivesse sido inundada. Foi como se uma bomba tivesse explodido na minha cabeça. Hoje em dia, consigo perceber que o filme trata sobre sexualidade e racismo, mas eu não tinha ideia disso quando era garoto. Tudo que eu conseguia absorver eram os movimentos de câmera, o brilho das formas e o clima do filme. Havia algo de veludo na textura do filme. E, claro, Marlene Dietrich e Janet Leigh. Foi nesse momento que eu descobri que não era como os outros alunos da minha classe. Eu possuía uma chave que abria a porta para uma caixa secreta chamada cinema.

DUDA – E como surgiu a ideia para o projeto sobre Orson Welles? Foi a caixa com os desenhos?

MARK – Eu tive minha fase Orson Welles quando era mais jovem. Em seguida, parti para outras coisas. Até que fui convidado para ir ao Festival de Michael Moore em Traverse City, Michingan. Foi lá que conheci Beatrice Welles, a filha de Orson. Ela já conhecia o meu trabalho. Tomamos alguns martinis, e ela me disse: “tenho uma caixa com centenas de desenhos do meu pai, que nunca foram vistos por ninguém”. Então, ela me perguntou se eu não gostaria de fazer um filme sobre isso. Eu aceitei na hora. A estrutura de um filme sempre vem em primeiro lugar para mim. Pensei que poderia estruturar o filme em quatro ou cinco partes, dividas entre “peões”, “cavaleiros”, “rainhas”, “coringas” e “reis”. Dessa forma pude visualizar o filme, olhando para seus desenhos e pinturas.

DUDA – Você estruturou o filme em capítulos. Chegou a pensar em testá-los em alguma outra ordem?

MARK – Não, todos os meus filmes até agora sempre foram pensados em ordem linear. Eu os faço pensando que o espectador os veja do início ao fim. Recentemente criei uma instalação para uma galeria na Escócia, onde eu tinha quatro telas e onde o público podia escolher para onde olhar. Mas, no caso do filme de Orson, criei capítulos separados de aproximadamente 25 minutos cada, que eu creio que, se fosse o caso, o espectador poderia ver fora de ordem. Mas, a grande vantagem da edição não linear é que você pode brincar com a edição. E brincar é um aspecto importante da criatividade.

DUDA – No filme Os Olhos de Orson Welles, você viajou para várias locações onde Orson filmou, como a Espanha e o Marrocos. Você chegou a cogitar vir ao Brasil? (Onde Orson realizou o projeto inacabado It’s All True).

MARK – Nunca estive no Brasil, mas morro de vontade de ir. Faz 20 anos que estou planejando uma viagem ao seu país. Em 2020 estava com uma viagem planejada, mas aí veio a pandemia e tive que desmarcar. Eu trabalho com baixos orçamentos. E o Brasil era o país mais distante (da Escócia) onde Orson havia filmado. A experiência de Orson no Brasil foi importante, principalmente o episódio com os jangadeiros. Porém, meu orçamento só me permitiu viajar para poucos lugares. Por exemplo, fui convidado para um festival em Sevilha, então levei minha câmera comigo e filmei por lá. De lá, peguei um barco até o Marrocos. Quando você trabalha com baixos orçamentos, é preciso pensar nessas coisas.

DUDA – Precisamos dar um jeito de você vir ao Brasil.

MARK – Eu quero muito ir. Meu primeiro amor é a arquitetura, depois a música e o cinema. Portanto, o Brasil, sendo do tamanho de um continente, me interessa muito. Como você sabe, meus filmes foram exibidos por aí. Acho que chegou a hora.

DUDA – Você acredita que seu filme Os Olhos de Orson Welles – que teve sua estreia na sessão Cannes Classiques, no Festival de Cannes  irá despertar o desejo de um público mais jovem para assistir aos filmes de Orson?

MARK – Espero que sim. Meu filme foca na identidade política de Orson. Além de ser um grande inovador do cinema, ele era um grande pensador político. Ele se importava com as pessoas. Ele acreditava apaixonadamente na igualdade. Sem dúvida, era alguém que se interessava para além das suas fronteiras além dos EUA. De certa forma, Orson era uma pessoa do século 21. Espero que as pessoas consigam se conectar com isso. Era um homem de sangue quente, um apaixonado. Ele era muito aberto em relação às suas paixões. Todas essas são formas de se conectar com Orson Welles.

DUDA – Como você acha que Orson se adaptaria ao Século 21?

MARK – Por um lado, Orson sempre se adaptou às novas tecnologias. Ele teria amado as mudanças tecnológicas. Se Orson tivesse vivido mais tempo, ele adoraria trabalhar com as câmeras menores e poderia ter feito mais filmes como o belo Verdades e Mentiras (F For Fake, 1973). Era um homem apaixonado e internacional. Ele tinha um grande interesse pela América Latina, pela África e pelo mundo hispânico. Certamente ele se sentiria bem em um mundo mais globalizado. Acredito que ele teria questionado as políticas identitárias. Ele acreditava que a arte era como a mozzarella: “você deve se esticar”. A arte permite um pulo imaginativo, para um outro lugar. E esse outro lugar é um espaço criativo. Acho que ele suspeitaria das pessoas que dizem “a identidade é sua arte”. Seu tema precisa ser sobre quem você é e de onde você vem. Acho que ele teria uma certa resistência com esse conceito. Ele acreditava em empatia, imaginação, transformação e mutação. Ele não acreditava que a identidade era algo construído em pedra, algo fixo.

DUDA – Como foi seu processo de trabalho nos documentários sobre o Orson Welles e Alfred Hitchcock? 

MARK – Eu revejo todos os filmes enquanto faço anotações. Mas gosto mesmo é de desenhar os planos dos filmes. Fiz aproximadamente 30 desenhos só de Orson como MacBeth. Eu adoro desenhar. Crio várias pastas, uma para cada capítulo e reúno um vasto material iconográfico. Tenho uma pasta só com o tema “Rei”, por exemplo, que é um dos capítulos do filme. Junto muito material em papel. Tenho caixas e mais caixas aqui no meu escritório, para cada projeto que eu fiz. A pasta “Coringa” tem aproximadamente 200 imagens e desenhos. Para usar uma palavra moderna, gosto de criar hyperlinks para cada capítulo. Trabalhei da mesma forma para o filme de Hitchcock. Aliás, Hitchcock tinha uma imaginação total, então gosto de criar esses hyperlinks. Hoje em dia, muitas pessoas gostam de criar seus projetos no computador, mas no meu caso, prefiro criar essas pastas físicas. Isso me ajuda a visualizar meus filmes e organizar minhas ideias. Dessa maneira, posso ver exatamente como foi meu processo.

DUDA – Além de cineasta, me parece que você é também um cinéfilo. Quantos filmes você consegue assistir por dia?

MARK – Eu nunca vejo filmes em casa, a não ser quando estou trabalhando em algum projeto específico. Eu vou ao cinema todos os dias, pelo menos uma vez ao dia. As pessoas me dizem: “você vai ao cinema para estar com outras pessoas”. Na verdade, vou ao cinema porque eu não posso apertar o pause. Quando você está no cinema, você perde o controle. É por isso que eu vou. Assisto a muitos filmes. Porém, nem todos os meus filmes são sobre cinema. Já fiz filmes sobre cidades, crianças, e outras coisas. O cinema está no mundo, assim como o pôr-do-sol, as florestas e as pizzas. O pôr-do-sol, as florestas, as pizzas e o cinema fazem parte do mundo e são todos magníficos. Portanto, são bons temas para filmes. É por isso que eu faço filmes sobre o cinema.

____________________

OS OLHOS DE ORSON WELLES
Dir.: Mark Cousins | Reino Unido | 2018 | 110 min | Documentário | Livre

Produzido por Michael Moore, The Eyes of Orson Welles mostra as paixões, as ideias políticas e o poder de uma das figuras mais importantes do showbusiness do século XX. O documentário explora como o gênio de Orson Welles continua reverberando ainda hoje e mostra aspectos do artista que nunca haviam sido explorados antes. Considerado um dos maiores documentaristas do cinema contemporâneo, o diretor Mark Cousins é o mesmo de Meu Nome É Alfred Hitchcock, As Tempestades de Jeremy Thomas e Marcha Sobre Roma.

Assista gratuitamente em sescsp.org.br/cinemaemcasa

Disponível até 02.08.2023

Utilizamos cookies essenciais para personalizar e aprimorar sua experiência neste site. Ao continuar navegando você concorda com estas condições, detalhadas na nossa Política de Cookies de acordo com a nossa Política de Privacidade.