
Por Leandro Mendoza
O projeto Vetus Venustas nasce de uma necessidade urgente: rever a velhice no mundo do circo contemporâneo. Não a partir de uma visão nostálgica nem condescendente, mas como um exercício de reconhecimento, reparação e transmissão de saberes. A reflexão se constrói sobre uma base clara: em muitas disciplinas artísticas — e especialmente naquelas que exigem grande esforço físico —, os corpos envelhecidos tendem a desaparecer dos palcos. Essa ausência não é apenas consequência do desgaste físico, mas, sobretudo, de um sistema de valores que associa produtividade à juventude e à rentabilidade, excluindo aqueles que já não atendem a essas expectativas.
A proposta se foca em um fenômeno social mais amplo: a exclusão sistemática das pessoas idosas do campo cultural e da sociedade em geral. O que se expressa aqui não é somente uma questão artística, mas uma forma concreta de etarismo, uma marginalização baseada em critérios de idade. Muitos artistas veteranos foram deslocados, forçados a se retirar de sua profissão por falta de espaço, oportunidades ou visibilidade. Permaneceram à margem, como exilados de suas próprias trajetórias.
Ao mesmo tempo, o projeto observa outro fenômeno, desta vez entre as gerações mais jovens: a sensação de fracasso ou estagnação, a dificuldade de consolidar carreiras artísticas em um contexto econômico e social que prioriza a rentabilidade acima do valor simbólico ou social das práticas artísticas. Nesse contexto, o circo — uma disciplina que historicamente desafiou normas sociais e que continua confrontando preconceitos sobre o corpo, o risco e a diferença — torna-se um território especialmente sensível a essas tensões.
Vetus Venustas constrói uma ponte entre essas duas gerações, partindo de uma ideia fundamental: não pode haver futuro sem memória. O espetáculo convida a conhecer as trajetórias de artistas mais velhos, conhecer suas biografias e reconstruir seus caminhos de vida e profissionais. Essa dimensão antropológica — que reconhece a experiência individual como um bem coletivo — se torna o núcleo do projeto: transmitir não apenas técnicas, mas formas de vida, decisões éticas, modos de habitar o corpo e de entender a arte.
O processo de criação do espetáculo baseou-se em pesquisa direta, troca de relatos, trabalho físico e reflexão coletiva. Emergiram temas como o medo, o cuidado, a dignidade, a fragilidade, o valor do ofício e a filosofia pessoal de cada intérprete. O que se propõe não é apenas um espetáculo para o público, mas uma experiência significativa para quem o cria. Nesse processo, as hierarquias habituais — baseadas na idade, na destreza ou na visibilidade — são desativadas, dando lugar a uma horizontalidade baseada no reconhecimento mútuo.
A metáfora cênica escolhida é o armazém: um espaço onde se guardam objetos velhos, empoeirados, considerados obsoletos ou descartáveis. É ali que os personagens habitam, reclusos em caixas, invisibilizados. O próprio espaço é um relato: um lugar de esquecimento que, no entanto, conserva a memória em cada um de seus elementos. Em cena, os personagens surgem dessas caixas — de um caixão, inclusive — representando não apenas o retorno à vida cênica, mas a reativação de uma memória coletiva. A imagem é clara: há vida, valor e sentido naquilo que foi descartado.
O resultado é uma peça que alguns espectadores definiram como “circo humanista”. O termo remete a uma prática artística que coloca no centro a dimensão humana, acima do espetáculo visual. Aqui, o foco não está na façanha física ou no virtuosismo técnico, mas na relação entre os corpos, nos gestos compartilhados, na emoção contida em um olhar ou em uma ação mínima. Não se trata de impressionar, mas de conectar, de gerar empatia e reconhecimento.
Essa conexão se estende ao público. Vetus Venustas provoca identificação, especialmente em pessoas que viveram a experiência do envelhecimento em seu entorno. As relações familiares, as transformações corporais, as perdas e os aprendizados se projetam no palco de forma direta. O espetáculo não busca comover por meio de recursos fáceis, mas através de uma exposição sincera e honesta da vida como trajetória comum. Isso o transforma, em termos antropológicos, em um dispositivo de mediação entre gerações, que permite abrir conversas necessárias sobre o tempo, o corpo, a dignidade e a arte.
Do ponto de vista da prática artística, o projeto levanta questões sobre como repensar os formatos cênicos para integrar a diversidade etária, como adaptar os processos criativos para incorporar diferentes ritmos e necessidades e como romper com o paradigma do novo como único valor estético. Também sugere uma redefinição do conceito de profissionalismo: ser profissional não é apenas ser ágil ou jovem, mas ter uma trajetória, um saber situado, uma perspectiva construída ao longo dos anos.
Vetus Venustas é uma intervenção cultural que propõe uma visão alternativa do circo, distante da lógica de mercado e centrada nos vínculos humanos. É uma aposta na permanência, na transmissão viva, na criação coletiva entre gerações. E é, sobretudo, uma advertência de que a arte não pertence apenas ao presente imediato, mas também àqueles que a construíram, viveram e continuam sustentando com seus corpos, suas histórias e suas memórias.
Leandro Mendoza Artagaveitia é diretor cênico e dramaturgo argentino-espanhol, referência do circo contemporâneo e fundador da companhia Cíclicus.
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