Flip Couto
Artista interdisciplinar formado em dança. Cruza performance, curadoria e gestão cultural em práticas que refletem negritudes, sexualidades e saúde. Bixa preta vivendo com HIV, atua nas danças urbanas desde 2000 e fomenta a cultura Ballroom desde 2016, onde é reconhecido como Legend.
Em cada passo se acumulam camadas de história, aprendidas, vigiadas e moldadas por códigos normativos e regras impostas nos espaços que ocupamos. Quando um corpo dissidente se move, não repete a forma: desmonta-a. Dançar, nesse contexto, é criar coreografias de fissura, recusa encarnada, acontecimento político. É gesto insurgente que interrompe o curso esperado da história e abre a possibilidade de outros mundos.
Essas danças nascem da necessidade vital de existir. Emergindo das ruas, dos becos, das favelas, dos quilombos, das aldeias e dos campos, são alimentadas por memórias ancestrais e pelos atravessamentos do cotidiano. São corpos que não se expressam para caber, mas para fugir, multiplicar e incendiar. Dançar é riscar no chão uma gramática própria, feita de improviso, ginga, giro e pose. É corpo que não apenas sobrevive, mas desenha caminhos possíveis.
Assumir essas práticas como centrais é deslocar a escuta para o corpo, para o chão da experiência, para a prática da coletividade. A dança, quando nasce da urgência, não pede licença nem aguarda legitimação, ela simplesmente acontece. Nesse movimento, inaugura outra organização do sensível, outras lógicas de valor, novas formas de partilha da vida.
Nossas danças marginais são estruturais. Elas mostram que todo gesto é político, que todo corpo em movimento é um potente posicionamento do tempo que vivemos. Quando pessoas com deficiências, negras, indígenas, trans, velhas, periféricas e outras pluralidades dançam, não apenas contam novas histórias: reescrevem. Cada passo, cada giro, cada queda é afirmação de vida, prova de presença, invenção do impossível em carne e osso.
Movimentos radicais não brotam do nada. Eles emergem da indignação, do desejo de respirar, vibrar e continuar. Transmitidos pela convivência, pelo contágio e pela presença, são gestos que escapam ao controle porque se reinventam a cada instante. Sua radicalidade está na raiz, no enraizamento ancestral e no risco de criar mundos ainda sem nome. É nesse deslocamento, no improviso e no interdito, que a História tropeça e o futuro começa a dançar.
Este texto também é um gesto de CURA. Um convite a reconhecer a dança como potência criadora de vida, prática política e linguagem de reexistência. É um chamado para escutar o que dizem os corpos quando se movem, quando se deixam atravessar pela necessidade de existir em coletivo. Porque é na margem e na encruzilhada que recriamos mundos.
Equipe de curadoria Bienal Sesc de Dança 2025
Ana Dias, Augusto Braz, Cléber Tasquin, Flip Couto, Maitê Lacerda, Marcos Takeda, Sara Centofante e Talita Rebizzi
Pesquisa Curatorial Bienal Sesc de Dança de 2025
Ana Carolina Massagardi, Marcos Villas Boas, Mateus Menezes, Paula Souza, Simone Aranha e Vinicius Souza
*Fazer um festival a muitas mãos é mais fácil do que escrever um texto a muitas mãos.
A Bienal Sesc de Dança 2025 firma seu corpo mais uma vez como um momento de celebração da dança e sua importância na construção de comunidades. É uma convocação para que o público participe, toque, sinta, observe e reconfigure as suas próprias percepções. Na dança, as ações que compõem esse universo de fazeres criam uma tessitura que aproxima corpos e pensamentos, que desafia o silêncio e amplia o fazer de quem dança.
A equipe de curadoria desta edição começou sua trajetória em dezembro de 2024 com 14 programadores de dança da rede Sesc São Paulo, uns meses depois reduzida a 7, articulando diferentes experiências e pesquisas em dança. Em fevereiro de 2025, o artista e articulador Flip Couto integrou o grupo, e assim seguimos trabalhando ao longo de todo o primeiro semestre do ano.
Fazer um festival é uma tarefa que exige mobilizar composições. É segurar, soltar e, mais do que tudo, abraçar. Das agendas disputadas de artistas aos desafios técnicos, oportunidades nascem. Com muita labuta – e algumas coincidências –, as coisas se alinham. E de debates técnicos e poéticos, nasce uma programação.
Trabalhamos para construir uma Bienal-Convite, que possa acolher diferentes gerações, trajetórias, discussões, pesquisas e estéticas. Uma Bienal que busca, nas frestas e relevos da cidade de Campinas, a possibilidade de habitar salas cênicas, teatros, praças. A programação move não somente o espaço físico, mas também as memórias e os imaginários simbólicos aqui emanados.
Campinas convida o Brasil, convida o mundo e nos convoca para um encontro neste chão, compartilhando nossas vivências.
Instigada pelas diversas formas de fazer dança, a equipe de curadoria traz para a partilha artistas e obras que provocam e promovem a travessia de fronteiras e a preservação de histórias e memórias. É preciso reafirmar sempre o que a dança há tempos se propõe: seu papel na resistência, na reinvenção e na preservação de identidades. Os corpos conversam, questionam, celebram e reivindicam.
Para além de apresentações artísticas, as ações formativas – oficinas, residências, aulas abertas, conferências e banca de impressos – seguem sendo basilares na feitura desse festival. Partilham com diversos públicos a vastidão da dança como campo de conhecimento, valorizando seus profissionais em frentes diversas e fazendo com que a fruição na dança aconteça também em complemento à apresentação das obras cênicas. O pensamento se revela em trocas entre o visual, o textual e o corporal.
Com esses diversos modos de tocar a dança, o festival assume sua vocação como um centro de convívio em torno da dança, um espaço amplo de diálogo.
Nesse sentido, as ações transitam do cênico ao ativista, do urbano ao comunitário, atualizando constantemente o diálogo com o presente. Artistas de mais de 17 países e de diversas regiões do Brasil trazem suas experiências, referências e inquietações.
Na edição de 2025, alguns assuntos emergem com força. Mesmo que não tenham sido ponto de partida da pesquisa programática, eles marcam presença como constelações criadas em um universo visível para orientar e fomentar possibilidades de navegação.
O alimento como crítica e retomada cultural dos povos, evidenciando os modos de cultivo, colheita, preparo e partilha como práticas de reconexão e resistência e um contraponto às mazelas da colonização.
O brincar como estratégia de interação com o mundo e possibilidade de conhecimento, investigação e manutenção do corpo; o encantamento dos nossos corpos.
As estéticas da batalha e do confronto na cena como formas de renovação e invenção; aprender e aperfeiçoar com o outro.
A dança como elemento fundamental para criar comunidade e valorização social de corpos dissidentes, reluzindo em técnicas e poéticas na sobrevivência colonial.
A indumentária como lugar de potência para a desconstrução de padrões homogeneizantes e resistência da ancestralidade.
Convidamos você a se deixar envolver por essa programação, buscando nas ações, obras e encontros uma nova maneira de pensar o corpo, o espaço e o mundo. Afinal, nesta edição, a dança não está apenas na cena – ela é o próprio modo de fazer o mundo se mover.
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