COMIDA DE VERDADE | 10 anos do Guia alimentar para a população brasileira

29/04/2024

Compartilhe:

Guia alimentar para a população brasileira celebra 10 anos e segue atual, inspirando comportamentos individuais e políticas públicas nacionais e estrangeiras 

POR MARCEL VERRUMO

Leia a edição de MAIO/24 da Revista E na íntegra

Durante anos, quem abrisse um livro escolar ou fosse a um(a) nutricionista poderia deparar-se com a famosa pirâmide alimentar. Criado na década de 1990 por pesquisadores dos Estados Unidos, o desenho orientava a composição de uma dieta saudável, dividindo os alimentos em grupos, de acordo com suas características nutricionais e as suas funções. Na base da pirâmide, ficavam cereais, tubérculos e raízes; imediatamente acima, hortaliças e frutas; na sequência, leite e produtos lácteos, carnes, ovos, leguminosas e oleaginosas; óleos, gorduras, açúcares e doces apareciam no topo da pirâmide. Ela recomendava que as pessoas deveriam privilegiar os itens da base da pirâmide e evitar aqueles do topo. 

Essa proposta começou a mudar no início do século 21. O Brasil atravessava uma série de transformações sociais, marcada por mudanças demográficas, epidemiológicas e de produção e consumo de alimentos, como a ampliação da oferta dos industrializados. Pesquisas científicas divulgavam novos dados sobre a alimentação, bem como apresentavam diferentes modos de vida baseados em saberes sociais que revelavam outras interpretações sobre o ato de comer. A alimentação começava a ser vista para além da ingestão de nutrientes e a proposta da pirâmide alimentar já não dava conta da nova e complexa realidade do país. Era preciso um novo material para orientar a população. 

Nesse contexto, foi lançado, em 2012, o Plano Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (PLANSAN), para traçar políticas públicas para essa área. Coube ao Ministério da Saúde atualizar os instrumentos de educação alimentar e nutricional, ou seja, criar ferramentas, metodologias e documentos para orientar os brasileiros sobre o que seria uma alimentação saudável. 

Com tal missão, o ministério iniciou um trabalho junto a pesquisadores do Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde da Universidade de São Paulo (Nupens/USP) e da Organização Pan-Americana da Saúde, escritório regional da Organização Mundial de Saúde (OPAS/OMS). A parceria, que também abriu consultas públicas à sociedade, resultou em uma publicação lançada em 2014, material que revolucionou o entendimento sobre alimentação adequada e saudável no Brasil e introduziu novos conceitos à área. Uma década depois, o Guia alimentar para a população brasileira segue inspirando comportamentos e políticas públicas nacionais e internacionais, reafirmando sua relevância e atualidade. 

ALÉM DOS NUTRIENTES 

O Guia alimentar para a população brasileira é uma publicação com cerca de 150 páginas, linguagem precisa e acessível, e de acesso gratuito pela internet. Uma das principais novidades em seu conteúdo foi propor uma alimentação adequada e saudável a partir de uma nova classificação para os alimentos. Enquanto a pirâmide alimentar estava dividida segundo as características nutricionais de cada elemento, o guia passou a classificá-los a partir do seu nível de processamento.  

“Observamos que outras características do que comemos eram igualmente importantes para a saúde, como sua capacidade de saciar o apetite e a presença de aditivos, características relacionadas ao processamento dos alimentos”, explica Carlos Monteiro, responsável pela elaboração técnica do Guia alimentar, e fundador do Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde da USP. 

Por essa metodologia, os alimentos são divididos em: in natura, minimamente processados, ingredientes culinários, processados e ultraprocessados [Leia a definição e confira exemplos desses grupos em Classificação dos alimentos]. Segundo o Guia alimentar, uma dieta saudável deve ser baseada em alimentos in natura e minimamente processados, majoritariamente de origem vegetal, além de limitar o consumo de processados e evitar os ultraprocessados. Em outras palavras, a alimentação cotidiana deve ter como base alimentos como arroz, feijão, ovos, frutas, legumes, verduras e carnes; reduzir a pequenas quantidades legumes em conserva, sardinha e atum enlatados, queijos e pães; e evitar biscoitos, salgadinhos “de pacote”, refrigerantes e macarrão instantâneo.  

Por considerar o nível de processamento dos alimentos, a nova classificação proposta pelo guia é universal, ou seja, pode ser aplicada à alimentação de diferentes culturas, não só à brasileira. Na América Latina, outros cinco países – Uruguai, Equador, Peru, Chile e México – lançaram guias inspirados na metodologia brasileira, com recomendações para que as pessoas evitem ultraprocessados. A Colômbia, por sua vez, aumentou os impostos sobre os ultraprocessados. Em outros continentes, países como França, Israel e Malásia também promoveram mudanças em suas diretrizes alimentares. “O guia brasileiro é revolucionário, entre outros aspectos, porque é baseado na classificação que mudou os paradigmas da alimentação e nutrição em saúde”, defende Monteiro. 

NO PRATO, A DIVERSIDADE 

Durante o desenvolvimento do Guia alimentar para a população brasileira, além das discussões técnicas feitas por acadêmicos e gestores, foram realizadas consultas públicas na internet e reuniões em diversos estados brasileiros para ouvir diferentes setores da sociedade. Representantes da sociedade civil, profissionais ligados a instituições de ensino, secretarias, conselhos e entidades da área de alimentação e nutrição, indústrias, associações e sindicatos avaliaram e contribuíram com as versões preliminares do material. 

A diversidade de saberes fez do guia uma publicação que considera a alimentação a partir de uma perspectiva complexa. Prova disso é que o documento valoriza a diversidade alimentar do país e está atento às diferentes culturas e ao tempo histórico da sociedade brasileira, recomendando alimentos e ingredientes regionais e sazonais (os da época). 

Também há recomendações sobre o planejamento das compras, a aquisição e escolha dos ingredientes, o modo de preparo das refeições e sobre o próprio ato de comer. “É um documento que pode contribuir muito para a promoção da saúde e da educação alimentar e nutricional”, afirma Patrícia Jaime, coordenadora técnica geral do Guia alimentar para a população brasileira, coordenadora do Nupens e professora da Faculdade de Saúde Pública da USP. 

O guia recomenda planejar a compra dos alimentos e definir o cardápio com antecedência, envolvendo todos os membros da casa nas atividades domésticas relacionadas às refeições. “Procure fazer compras de alimentos em mercados, feiras livres e feiras de produtores que comercializam variedades de alimentos in natura ou minimamente processados”, orienta o documento, sugerindo aqueles que são próprios da estação do ano ou cultivados localmente e, sempre que possível, os orgânicos e agroecológicos. A publicação também orienta a adoção de uma postura crítica quanto a informações e propagandas comerciais. 

Cozinhar é uma prática indicada pelo guia por ser uma forma de adquirir autonomia no momento de escolha e preparo daquilo que se come. Outra recomendação diz respeito à hora de se alimentar. É importante estar atento ao que se come, sem distrações, como mexer no celular ou realizar outra atividade ao mesmo tempo. Sempre que possível, deve-se comer em companhia, com familiares, amigos ou colegas de trabalho e da escola. E se for comer fora de casa, opte por locais que sirvam refeições feitas na hora, e que cobrem um preço justo, como restaurantes com comida caseira.  

POLÍTICAS PÚBLICAS 

Para além das escolhas individuais, o guia é um documento com diretrizes potencialmente capazes de fomentar a elaboração de políticas públicas voltadas para uma alimentação adequada e saudável, transformando o coletivo. “Ele deve ser uma inspiração para a construção de um sistema agroalimentar saudável e sustentável, livre da monotonia alimentar, e promotor da saúde”, defende a pesquisadora Patrícia Jaime.  

A nova composição da cesta básica nacional, instituída pelo governo federal em 5 de março de 2024, é um exemplo de política elaborada a partir do guia. Composta por alimentos in natura ou minimamente processados e ingredientes culinários, a nova cesta contempla feijões (leguminosas), cereais, raízes e tubérculos, legumes e verduras, frutas, castanhas e nozes (oleaginosas), carnes e ovos, leites e queijos, açúcares, sal, óleos e gorduras, café, chá, mate e especiarias. “O intuito é evitar a ingestão de alimentos ultraprocessados que, conforme apontam evidências científicas, aumentam a prevalência de doenças cardiovasculares, diabetes, obesidade, hipertensão e diversos tipos de câncer”, destacou um comunicado do governo no lançamento da nova cesta básica. 

Outro caso foi a proibição, pela prefeitura do Rio de Janeiro (RJ), da venda de bebidas e alimentos ultraprocessados nas cantinas e refeitórios das escolas públicas e privadas da cidade. A partir da sanção da lei, em 12 de julho de 2023, as escolas tiveram 180 dias para se adequarem às regras e, agora, a fiscalização multa os espaços que desrespeitarem a norma. “Devemos pensar no quanto o Sistema Único de Saúde (SUS) é sobrecarregado com doenças causadas pelo consumo de ultraprocessados. Nos últimos dez anos, as evidências científicas que comprovam os malefícios dos ultraprocessados exacerbaram ainda mais a importância do que o guia recomenda”, completa Patrícia Jaime, afirmando que o material deve ser utilizado não apenas por nutricionistas, mas por todo profissional da área da saúde (agentes comunitários, médicos, enfermeiros, assistentes sociais), profissionais que atuam em escolas dentre outros. 

Na mesma linha, Monteiro cita um estudo recente, publicado na revista científica The BMJ, demonstrando que o consumo de ultraprocessados está associado a mais de 30 agravamentos à saúde, incluindo câncer, depressão, doenças cardíacas e pulmonares. “Além de interromper os subsídios aos ultraprocessados, devemos tributá-los. Também devemos criar políticas públicas para promover a agricultura familiar, restringir a publicidade de ultraprocessados, proibir seu consumo em todas as escolas e hospitais. Em âmbito global, defendemos que é hora da Organização das Nações Unidas (ONU) e seus Estados-membros desenvolverem uma Convenção-quadro sobre alimentos ultraprocessados, assim como fizeram com o controle de tabaco”, finaliza o pesquisador. 

Quem também reconhece o potencial do guia para a transformação é Elisabetta Recine, professora da Faculdade de Ciências da Saúde da Universidade de Brasília (UnB), e presidente do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea). “O nosso Guia alimentar acumula uma trajetória virtuosa ao apresentar uma nova perspectiva. Ele é uma ferramenta prática para conceber as diretrizes alimentares e abrir o caminho para que, de fato, essas orientações pautem iniciativas não apenas do cuidado em saúde e nutrição, mas nas diferentes políticas e ações, como a alimentação escolar, a cesta básica, entre outras”, defende. Recine acrescenta que “o próximo passo é aprofundar e ampliar as conexões com as medidas de enfrentamento à crise climática para que tenhamos saúde e sustentabilidade para as pessoas e para o planeta.” 

DIVULGADORES DA CIÊNCIA 

Quando o Guia alimentar para a população brasileira foi lançado, em 2014, já havia outros documentos técnicos com orientações, porém, muitos tinham uma linguagem direcionada a especialistas. “Precisávamos de um guia que pudesse ser utilizado por todas as pessoas”, lembra Patrícia Jaime. A preocupação resultou em um material que traduz conceitos técnicos para uma linguagem cotidiana, aproximando os conhecimentos acadêmicos de públicos não especializados. O apoio de outros atores sociais também foi fundamental. A cozinheira e apresentadora Rita Lobo, por exemplo, foi uma das responsáveis por disseminar diretrizes da publicação em programas de televisão, internet e outras mídias. “O Guia alimentar foi uma revolução na saúde, com uma mensagem simples: coma comida de verdade, não imitação de comida. Ou seja, elimine os produtos ultraprocessados, porque fazem mal à saúde. Eu tenho orgulho de ver que meu trabalho é citado no próprio guia como referência para colocar na prática essas orientações”, conta Rita Lobo, autora do livro Panelinha: receitas que funcionam (Senac, 2012), citado na publicação. Em relação às repercussões do material, ela celebra: “fico muito feliz de ver que o guia serviu de base para a seleção dos alimentos que compõem a nova cesta básica. Que forma genial de comemorar os dez anos dessa publicação que é tão importante para o Brasil e que inspirou tantos outros países”. 

Já o nutricionista José Carlos, criador do perfil no Instagram @onutrifavelado, utiliza das potencialidades da rede social, além de outros espaços, para chegar a mais pessoas, disseminando que o ato de comer bem pode ser acessível a todos. “Busco desmistificar as questões relacionadas à alimentação e o imaginário comum sobre o saudável, que muitas vezes está distante das recomendações da publicação”, conta ele. O influenciador reconhece que difundir os ensinamentos do guia é um processo desafiador, porém a tarefa é urgente e necessária. “Entendo que existem várias questões que podem dificultar uma alimentação saudável e busco conscientizar e empoderar as comunidades, trazer informações e ferramentas para que possam fazer escolhas alimentares conscientes dentro de suas realidades.”

O GUIA ALIMENTAR PARA A POPULAÇÃO BRASILEIRA É REVOLUCIONÁRIO, ENTRE OUTROS ASPECTOS, PORQUE É BASEADO NA CLASSIFICAÇÃO QUE MUDOU OS PARADIGMAS DA ALIMENTAÇÃO E NUTRIÇÃO EM SAÚDE 

CARLOS MONTEIRO, RESPONSÁVEL PELA ELABORAÇÃO TÉCNICA DO GUIA E PROFESSOR EMÉRITO DA USP 

CLASSIFICAÇÃO DOS ALIMENTOS 

O Guia alimentar para a população brasileira divide os alimentos segundo o nível de processamento 

In natura  PREFIRA   

Alimentos obtidos diretamente de plantas e animais, e que não sofreram qualquer alteração após deixar a natureza. Exemplos: frutas (maçã, laranja, banana etc.), legumes e verduras (abóbora, beterraba, cenoura, brócolis, espinafre, couve etc.), raízes e tubérculos (batata, batata-doce, mandioca, mandioquinha etc.), ovos e água potável. 

Minimamente processados  PREFIRA  

Alimentos in natura que foram submetidos a processamentos mínimos (limpeza, moagem, congelamento etc.). Exemplos: grãos empacotados ou moídos na forma de farinha, raízes e tubérculos fracionados, carne resfriada ou congelada e leite pasteurizado. 

Ingredientes culinários   UTILIZE EM PEQUENAS QUANTIDADES  

Produtos extraídos de alimentos in natura ou da natureza por processos como moagem, pulverização e refino. Usados para temperar e cozinhar alimentos no preparo de refeições. Exemplos: óleos (de soja, milho, girassol, oliva, dentre outros), açúcares, sal de cozinha refinado ou grosso. 

Processados  LIMITE  

Produtos fabricados pela indústria com a adição de substâncias a alimentos in natura para torná-los mais duráveis ou saborosos. Exemplos: ervilhas e palmito preservados em solução de sal e vinagre; extrato de tomate; sardinha e atum enlatados; frutas em calda e cristalizadas; queijos; pães feitos com farinha de trigo, levedura, água e sal. 

Ultraprocessados  EVITE  

Formulações industriais fabricadas a partir de diversas técnicas de processamento e ingredientes, muitos deles de uso exclusivamente industrial. Exemplos: refrigerantes, salgadinhos “de pacote”, biscoitos recheados, macarrão instantâneo e cereais açucarados. 

Fonte: Guia alimentar para a população brasileira (2014). 

PARA ALÉM DE UM MANUAL ORIENTADOR DE PRÁTICAS DOS CIDADÃOS, O GUIA DEVE SER  
(E JÁ É) UM INDUTOR DE POLÍTICAS PÚBLICAS  

PATRÍCIA JAIME, COORDENADORA TÉCNICA GERAL DO GUIA ALIMENTAR PARA A POPULAÇÃO BRASILEIRA E PROFESSORA TITULAR DA USP 

GUIA COTIDIANO 

Inspirado pelo Guia alimentar para a população brasileira, Sesc São Paulo realiza ações permanentes de promoção de uma alimentação adequada e saudável 

Programas e projetos de alimentação realizados pelo Sesc no Estado de São Paulo fomentam, durante todo o ano, as diretrizes do Guia alimentar para a população brasileira. “Em nosso dia a dia, consideramos as recomendações da publicação para pensar as múltiplas e transversais dimensões da alimentação. Valorizamos ingredientes in natura e minimamente processados, e estamos atentos a aspectos culturais, sociais, econômicos, ambientais e de saúde do comer, buscando fortalecer a promoção de uma alimentação adequada e saudável”, diz Mariana Meirelles Ruocco, gerente da Gerência de Alimentação e Segurança Alimentar da instituição. 

Na alimentação, por exemplo, as comedorias (restaurantes, cafeterias e cafés) das unidades do Sesc servem preparações e alimentos saudáveis, brasileiros e contemporâneos, valorizando itens à base de ingredientes in natura e minimamente processados, da safra e regionais. Outra iniciativa é o Sesc Mesa Brasil, programa de combate à fome e ao desperdício de alimentos, criado em 1994, que fomenta a alimentação adequada e saudável. Em 2023, 81,93% dos alimentos doados foram in natura e minimamente processados. 

Além disso, o Sesc realiza permanentemente ações educativas, como palestras, oficinas, cursos e bate-papos, e projetos especiais como o Experimenta! Comida, Saúde e Cultura, em outubro, e o Do Peito Ao Prato, em agosto, nos quais as orientações do Guia alimentar são disseminadas aos frequentadores das unidades. 

Acesse o Guia alimentar para a população brasileira na íntegra

A EDIÇÃO DE MAIO/24 DA REVISTA E ESTÁ NO AR!

Para ler a versão digital da Revista E e ficar por dentro de outros conteúdos exclusivos, acesse a nossa página no Portal do Sesc ou baixe grátis o app Sesc SP no seu celular! (download disponível para aparelhos Android ou IOS).

Siga a Revista E nas redes sociais:
Instagram / Facebook / Youtube

A seguir, leia a edição de MAIO/24 na íntegra. Se preferir, baixe o PDF para levar a Revista E contigo para onde você quiser!

Conteúdo relacionado

Utilizamos cookies essenciais para personalizar e aprimorar sua experiência neste site. Ao continuar navegando você concorda com estas condições, detalhadas na nossa Política de Cookies de acordo com a nossa Política de Privacidade.