CORPO ATUANTE | Entrevista com Celso Frateschi

28/02/2023

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Com meio século de carreira, ator, diretor, dramaturgo e professor Celso Frateschi encara o teatro como espelho da sociedade

Por Maria Júlia Lledó  

Leia a edição de março/23 da Revista E na íntegra

Nascido numa olaria na Lapa de Baixo, em São Paulo (SP), Celso Frateschi moldou seu destino com o barro do teatro, sempre comprometido com um questionamento social, político e cultural. Foi aluno de mestras como Heleny Guariba (1941-1971) e Cecília Boal, e fez do Teatro de Arena sua segunda casa. Tendo como grande referência o teatrólogo Augusto Boal (1931-2009), fez parte do elenco que encenou o Teatro Jornal 1ª Edição, embrião do Teatro do Oprimido, metodologia criada por Boal e que, até hoje, repercute mundialmente.

Em 2020, na pandemia, encenou Diana, monólogo de sua autoria, no palco do Teatro Ágora, no Bixiga – espaço criado por Frateschi, em 1999, e desde então gerido por ele e sua esposa, a cenógrafa Sylvia Moreira. Transmitido pelo projeto #EmCasaComSesc, Diana marcou a estreia da programação de artes cênicas no canal do Sesc São Paulo no YouTube.

Frateschi na peça Diana, que marcou a estreia de artes cênicas do #EmCasaComSesc, em maio de 2020. Edson Kumasaka
Frateschi na peça Diana, que marcou a estreia de artes cênicas do #EmCasaComSesc, em maio de 2020. Foto: Edson Kumasaka

Frateschi segue trilhando uma carreira de cinco décadas em que cultura, docência e política sempre estiveram de mãos dadas. Além do premiado trabalho nos palcos, ele já foi diretor do Teatro da Universidade de São Paulo (TUSP), de 2004 a 2006 e de 2010 a 2014, além de professor de interpretação na Escola de Arte Dramática da mesma instituição, de 1980 a 2015. Também deixou um importante legado como gestor e articulador cultural nos cargos de secretário de Educação, Cultura e Esportes do Município de Santo André (1989 a 1992, 1997 e 1998), secretário de Cultura do Município de São Paulo (2003 a 2004), presidente da Funarte (2006 a 2008) e secretário de Cultura de São Bernardo do Campo (2009).

Para essa Entrevista, Frateschi abre as portas do Teatro Ágora à Revista E e compartilha alguns capítulos desse profícuo enredo de 50 anos. 

Como foi seu encontro com o teatro?

Foi na escola Alexandre von Humboldt, na Vila Anastácio, considerada, naquela época, periferia de São Paulo. Eu sempre estudei em colégio público. Foi aí que tive meu primeiro contato com o teatro e, por incrível que pareça, por um professor de ciências que levava a gente para assistir a algumas peças. Depois, teve um professor de português que resolveu montar uma peça na escola, me convidou, e acabei fazendo. Eu nem lembro que peça foi, porque foi muito rápido, e depois eu briguei muito com esse professor porque ele colaborou com a ditadura, e acabou denunciando a mim e meu irmão para o Dops [Departamento de Ordem Política e Social], e a gente acabou sendo preso por causa dele. Então, essa coisa do teatro começou ainda muito cedo. Me lembro de ter ido com meus irmãos mais velhos assistir a Arena conta Zumbi [musical escrito por Gianfrancesco Guarnieri (1934-2006) e Augusto Boal, em 1965, com música de Edu Lobo, direção de Boal e direção musical de Carlos Castilho (1933-1985), que estreou no Teatro de Arena em maio de 1965], e fiquei completamente fascinado.

Foi também por influência dos seus irmãos, e desse momento na escola, que você teve vontade de estudar teatro?

Sou o filho mais novo. Então, sempre corri atrás dos mais velhos nessas primeiras experiências, e acabei saindo no lucro. Me lembro de ter assistido, nessa época, a Édipo Rei, Esperando Godot, Navalha na Carne, Dois Perdidos Numa Noite Escura. Logo depois, a gente começou a organizar os alunos, independentemente de professor, para comprar ingressos mais baratos – éramos grupos de 30, 40, 50 alunos – e assistir aos espetáculos, conversar sobre eles e, evidentemente, sobre a nossa realidade, sobre o que o Brasil estava passando em plena ditadura. Fui ver todas as peças do Arena, todas as peças do Oficina. O teatro me ajudava a compreender o mundo. E essa era a nossa intenção: todas as peças serviam para a gente conversar sobre as nossas vidas.

E quando o teatro e a política se entrelaçaram na sua carreira?

Sempre caminharam juntas e eu acho que continuam caminhando. Particularmente, eu discordo muito de alguns colegas que fazem um teatro político mais proselitista. Porque eu acho que o teatro é o espanto, o estranhamento, a ponta da investigação. A política depois resolve, mas o teatro é que revela. E para revelar, o teatro não pode ter prisão ideológica. Acho que não é o caso do teatro ser propaganda de uma ideia, mas ser o questionamento das ideias. A arte tem essa função mais complexa, mais profunda, mais inteira, que não é propagar ideologia, mas a de “desideologizar”. Isso aprendi muito, principalmente, com Heleny Guariba [professora, teatróloga, militante de oposição à ditadura e desaparecida política desde 1971], que veio com uma visão brechtiana da Europa. Antes de ser presa e desaparecida, fiz um curso com ela e a Cecília Boal [psicanalista, atriz e diretora, que foi casada com Augusto Boal] no Teatro de Arena. Foi meu começo no trabalho de ator, tinha 16, 17 anos. Heleny questionava sempre, e muito, porque ela sabia que a arte vinha desse processo de questionar a realidade e, com isso, cumprir a sua função revolucionária. Essa função vital da arte: colocar a mosca na sopa da turma. E aí, pra mim, o teatro nunca foi tanto uma propaganda de uma ideia. Até acho que o teatro é generoso o suficiente para entrar na luta política, mais direta. Acho que o teatro se presta a isso também, mas a função primordial dele, na minha opinião, é de questionar mais profundamente o comportamento humano e as relações sociais.

Logo após esse curso no Teatro de Arena, você participou do grupo de atores que encenou o Teatro Jornal 1ª Edição, embrião do Teatro do Oprimido, criado por Augusto Boal. Como foi essa experiência?

O Boal era uma figura fantástica como professor, como formulador. O Teatro Jornal foi um pouco assim. Depois que a gente terminou o curso do Arena, a gente pediu ao Boal para continuar pesquisando e trabalhando no espaço. E ele tinha uma ideia de fazer às segundas-feiras, no Teatro de Arena, um Teatro Jornal:  à medida que os bancários e os prestadores de serviços pudessem passar por lá, eles teriam, teatralmente, informação jornalística. É claro que com a censura prévia – você precisava de pelo menos 60 dias de antecedência para aprovar um texto, para poder montar o espetáculo, e depois passar pela censura do espetáculo – a ideia de um teatro semanal foi por água abaixo. Mas, a gente quis pesquisar independente disso. A gente começou a trabalhar as cenas com o intuito de mostrar o mais rápido possível ao público. Fazíamos apresentações quinzenais, e o Boal nos deixou trabalhar no Areninha, um teatro que havia em cima do Teatro de Arena. Na genialidade dele, Boal formulou essa coisa que depois ele chamou de “pré-história do Teatro do Oprimido”, pois a ideia de nosso espetáculo era exatamente fazer com que o público, o povo, fizesse seu próprio teatro. Boal construiu o nosso espetáculo como uma aula de como teatralizar notícias de jornal, propondo o teatro como um jogo de salão, uma brincadeira. Foi muito prazeroso estar junto com ele. 

De que forma esse aprendizado e trocas com Augusto Boal reverberam em seu trabalho de investigação do ser humano contemporâneo no Teatro Ágora, criado em 1999 junto ao diretor Roberto Laje?

No final do século, com projetos diferentes, nós dois perdemos um edital de ocupação do Teatro de Arena, já administrado pela Funarte [Fundação Nacional de Artes]. O Roberto Laje e eu, então, conversamos:  “Vamos fazer algo juntos? Porque a gente não pode ficar dependendo de edital”. Ele já tinha sido sócio do antigo Teatro do Bixiga, que ocupava esse espaço aqui ao lado, e o teatro estava vazio há algum tempo. Ele conhecia a proprietária, e a gente conseguiu alugar. Formulamos, então, a proposta do Ágora, que é a base até hoje: um teatro que pensa o ser humano na complexidade que é o século 21. Suas angústias, seus sonhos e seus traumas, no sentido de entender o que gera essas relações, o que gera a nossa felicidade e a nossa infelicidade no planeta. O que o Ágora propõe hoje é quase um antiespetáculo: a gente vai enxugando, enxugando, enxugando, tentando chegar à menor grandeza, como diz o Brecht [Bertolt Brecht (1898-1956), dramaturgo e encenador alemão], para poder ter o essencial.

Compartilhar conhecimento por meio do ensino foi outro papel muito importante na sua carreira, uma vez que foram 37 anos lecionando na Escola de Arte Dramática (EAD) da Universidade de São Paulo. Que legado fica desse período?

Eu aprendi muito. Na verdade, quando eu entrei na EAD, não entendi porque eu fui parar lá. Porque a gente fazia teatro nessa época. A gente tinha feito no Arena, no Theatro São Pedro, em 1974-75, e a gente foi para a periferia. Na época pesada da ditadura, a gente estava na zona leste com o Teatro Núcleo, que a gente amava. Nesse período, a gente dava muitos cursos para a comunidade. Então, na EAD, me chamaram para dar o curso de Análise e Interpretação de Texto. Gostei muito, comecei a me envolver. Lembro quando criamos, todos os professores juntos, a Carta Aquários, que foi um momento em que os professores, durante um fim de semana no sítio da professora Renata Pallottini, repensaram a escola inteira. A partir daí, veio a formulação do Currículo Nacional de Arte Dramática, entre uma série de coisas. Não sou um teórico de teatro, sou um cara que atua, e também nunca quis ser um acadêmico de teatro, meu estudo é voltado para o que estou fazendo. Não acho que isso seja melhor do que ser acadêmico, só que fui por outro caminho. Às vezes, eu acho até que me falta bastante academia.

Ao lado da atriz Thais Ferrara, Frateschi encenou, em 2022, o espetáculo O Canto do Cisne, no Sesc Consolação, pelo projeto O teatro de onde eu venho, em celebração aos 50 anos de carreira. João Caldas
Ao lado da atriz Thais Ferrara, Frateschi encenou, em 2022, o espetáculo O Canto do Cisne, no Sesc Consolação, pelo projeto O teatro de onde eu venho, em celebração aos 50 anos de carreira. Foto: João Caldas

Qual era a provocação que costumava fazer aos estudantes na EAD?

Primeiro, eu fazia uma pergunta e eles ficavam bravos: “Sabe quanto vocês custam para o Estado?” – para que tivessem noção de que aquele é um curso bastante dispendioso. Então: “Para onde você tem que dirigir a sua formação?”; “É para você se encher de privilégios ou para, de alguma forma, ajudar a construir uma sociedade melhor através da arte?”. A arte existe para questionar. Então, a sua importância e responsabilidade é colaborar criticamente com o avanço de onde você convive e entender essas relações. Porque o teatro, desde a origem, dizia Hamlet aos seus atores, sempre teve esse papel de espelhar a sociedade, revelando sua pobreza de espírito, suas baixezas, mas, também, suas virtudes. A minha preocupação sempre foi tentar desenvolver um espírito crítico, para que o ator não acreditasse só no seu porte físico, na sua voz ou na sua simpatia, mas que usasse essas características para entender melhor a vida que a gente vive.

Na pandemia, como foi para você – ator, professor e também diretor de um teatro – vivenciar o fechamento dos espaços físicos e ter que adaptar peças para as telas?

Acho que o primeiro momento da pandemia foi de pânico: “O que vai acontecer?” Aí, teve a provocação do Sesc São Paulo [Celso Frateschi estreou a programação de teatro do #EmCasaComSesc, com a peça Diana, transmitida pelo canal da instituição no YouTube, em maio de 2020]. Depois, teve também a provocação da Sylvia Moreira [cenógrafa, diretora do Teatro Ágora e esposa de Frateschi], que me perguntou: “O que Brecht faria numa situação dessas?”. Porque Brecht utilizou todos os meios possíveis de comunicação. E o teatro é comunicação. Às vezes, a gente esquece que o teatro está comunicando alguma coisa, que ele existe para comunicar alguma coisa. E como a gente resolve isso dentro dos limites impostos? Foi muito interessante porque a gente acabou se juntando com um grupo de cinema e fizemos um decálogo: “Quais características de teatro podem ser mantidas nessa linguagem virtual? O que é impossível?”. De cara, a gente sabia que não teria o público presente. Então, como é que a gente podia ir além? Esse primeiro impasse acabou reforçando outros. Primeiro: o teatro é uma experiência em que você troca com outras pessoas naquele determinado momento. Ele tem uma característica performática. Não se trata de gravar uma imagem e depois repassá-la. O que importa é esse ato acontecendo ao mesmo tempo em que as pessoas estão assistindo. Então, nesse ponto a gente resolveu: tem que ser ao vivo. Não pode ser gravado e transmitido. Segundo: “Como se dá a reunião das pessoas?”. Então, a gente optou pelo Zoom [plataforma de videochamada], porque você tinha a chegada do público aos nossos espetáculos, conversavam entre si pelo chat. A gente começou a perceber as vantagens que poderia haver, do ponto de vista artístico também, a linguagem virtual. Evidentemente que do ponto de vista pessoal, eu não via a hora de ter público, mas a gente percebeu que aquela era uma forma de expressão extremamente válida. Precisa ser ainda desenvolvida e espero que a gente possa desenvolvê-la. Acho que o teatro virtual pode ser um caminho. Foi bárbaro porque a gente percebeu que esse limite abriu uma série de outras possibilidades que eu acho que o teatro virtual tem.

Quais seus outros projetos para este ano? Você dará sequência ao projeto O Teatro de Onde eu Venho, que celebrou seus 50 anos de tablado, em 2022, no Sesc Consolação, com a peça O Canto do Cisne e a peça Gongorê, junto ao seu neto Miguel Abati?

A gente terminou de fazer a temporada no Sesc Consolação de O Canto do Cisne, e vai continuar fazendo porque é uma peça que comemora os meus 50 anos de carreira. E temos já garantido que vamos fazer o Pawana [livro que faz um comovente depoimento da caça a baleias e agressão à natureza por meio de um relato de viagem; Cosac Naify, 2009, 1ª ed.], de Le Clézio, prêmio Nobel de Literatura. Um texto fantástico que dialoga muito com Moby Dick [obra-prima do escritor norte-americano Herman Melville (1819-1891)], porque é sobre dois caçadores de baleia. Acho que tem a ver com o momento em que estamos vivendo, onde a natureza é colocada em risco, assim como a sobrevivência da raça humana. Também vamos começar os cursos no Ágora. Welington [Andrade] ministra o terceiro núcleo do Teatro e Texto em Cena, que é uma experiência genial de imersão, com teatro, cinema, almoço, conversa, leitura dramática. Também teremos os cursos de interpretação – tanto de iniciação, quanto de aperfeiçoamento – que, normalmente, eu realizo aqui. Fora do teatro, talvez eu faça uma ou duas séries. O Teatro Ágora volta a ter esse espaço da construção de conhecimento, a partir de um pensamento contemporâneo, com pessoas que estão de alguma forma debruçadas sobre o momento que a gente está vivendo. Tentamos colaborar um pouco com o movimento teatral, sem nenhuma pretensão ou presunção, mas simplesmente colocando, de alguma forma, uma lenha a mais na fogueira.

Você já disse em muitas oportunidades que o teatro é uma atividade vital. De que forma?

O teatro é uma atividade vital, e eu sinto necessidade de sempre afirmar isso porque não é só uma atividade econômica. Não é só um aspecto da indústria cultural. O teatro é uma atividade vital porque é através dele que a gente aprende. Através da imitação você conhece o outro, é assim desde sempre. Se você vir uma criança, ela vai imitar o pai para poder entendê-lo, ou vai imitar o irmão. É a partir da imitação que você conhece o outro, assim como os nossos ancestrais pintavam na pedra para poder conhecer aquele outro. Imitavam pelo desenho para conhecer aquele animal que ele precisava dominar. Ou vestiam-se com a pele de um animal para poder parecer com ele, entender sua alma, seu espírito. E o teatro tem essa mesma função desde sempre: ele serve para compreendermos melhor as relações humanas, as relações sociais, um homem em relação ao diferente. Trabalha a alteridade, aquilo que não é você, que é o outro, seja ele o que for. E o teatro, a partir da imitação, a partir desse jogo, serve para isso. Ao buscar o teatro pelo viés da atividade econômica, esquece-se dessa razão vital do teatro, que é a do mútuo conhecimento, de você se entender a partir do outro. Por isso que eu acho que é muito importante essa característica de assembleia que o teatro tem. É lá que você vai encontrar aquela pessoa que se queria encontrar, ou aquela pessoa que você não queria encontrar e vai ter que conversar, vai ter que trocar ideias. O próprio ato teatral, independentemente do conteúdo, já é uma ação social extremamente importante. Agora, no palco, a história que é contada, é transformada em alguma metáfora que vai me ajudar a me compreender no mundo. Por isso, o teatro não é um luxo, não é um produto comercial, como a sociedade mercadológica quer transformá-lo. A beleza do teatro está em outro sentido, em outro lugar. Pelo menos é o que eu busco no teatro, e fico muito feliz quando encontro.

Assista ao vídeo com trechos da Entrevista com Frateschi, gravada no Teatro Ágora, no bairro do Bixiga, no Centro da cidade de São Paulo

Captação: Guilherme Barreto. Edição: Riff Produtora.

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