De volta pro aconchego, Zélia Duncan no Sesc  

06/06/2023

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Zélia Duncan tinha lançado seu terceiro álbum, “Intimidade”, no ano anterior, quando subiu ao palco do Sesc Pompeia naquela terça-feira, dia 15 de julho de 1997. Era seu primeiro disco depois do estouro com “Catedral”, e mostrou que seu sucesso não seria passageiro. Ela estava ali para participar do projeto “Ouvindo Estrelas”, comandado pelo jornalista e pesquisador musical Zuza Homem de Mello, de quem era amiga. A noite começou com um carinhoso bate-papo de cerca de 20 minutos, e em seguida Zélia se apresentou.  

Alternando músicas de seus segundo e terceiro discos, “Zélia Duncan” (1994) e o já citado “Intimidade” (1996), a artista mostrava não só sua força como cantora, com sua voz grave marcante, mas também como compositora, já que 14 das 19 faixas eram de sua autoria, sozinha ou em parceria. Era um momento de consagração em sua carreira, registrado no álbum Relicário: Zélia Duncan (ao vivo no Sesc 1997), segundo lançamento do projeto Relicário, do Selo Sesc, que chega ao público agora, mais de duas décadas depois. 

Aquele palco era um divisor de águas na carreira da artista: tinha sido ali, três anos antes, a primeira vez em que Zélia havia ouvido o público cantar junto em uma apresentação sua. Uma noite que ela recorda até hoje. “Eu nunca vou esquecer, porque foi justamente antes desse estouro, mas a contagem já estava aberta. O álbum ‘Zélia Duncan’, que continha ‘Catedral’ e tantas músicas importantes pra mim, havia sido lançado em 1994. Esse show deve ter sido poucos meses depois, e a gente sente a onda mudar, sabe? Havia um frisson no ar e as pessoas chegando. Era o fim da solidão, pelo menos nesse aspecto”, lembra.

O carinho do público paulistano era tamanho que a cantora chegou a dizer em entrevista à Folha, em 1997, que São Paulo era o melhor lugar para a sua música e que muitas pessoas achavam que ela era paulista. Hoje em dia, ela acredita que foi sua identificação artística com São Paulo deixou essa impressão. “Meu maior ídolo é Itamar Assumpção, e eu sempre deixei isso muito claro. Cantar Rita Lee e Itamar com tanto amor confundiu as pessoas, mas eu nasci em Niterói, fui criada em Brasília e o Rio virou minha casa”, diverte-se. 

Na apresentação de 1997, as coisas já haviam mudado bastante. Zélia tinha feito recentemente um show no Central Park, em Nova York, uma miniturnê na Europa, e “Intimidade” tinha acabado de ganhar Disco de Ouro, pelas 100 mil cópias vendidas. “Era um momento de ascensão da minha carreira, o ‘boom’. Eu nunca nem tinha ido a Nova York, veja só. Foi muito importante como parte de um todo, que era muito novo para mim”, avalia a cantora.  

Foi em meio a essa onda boa (e nada passageira — pelo contrário) que ela foi ao encontro da plateia do Sesc Pompeia mais uma vez, acompanhada por Ezio Filho (baixo e direção musical), Ricardo Brasil (percussão), Wallace Cardia (bateria), Luis Hiroshi (teclados) e Luiz Chaffin (guitarra, violão e bandolim). “Lembro da minha entrada, daquele zumbido bom no ouvido, quando o público quer mostrar que te ama. Lembro do abraço no Zuza, lembro do quanto eu estava feliz”, rememora Zélia.  

“Boomerang Blues”, de Renato Russo, abre a apresentação — que, aliás, emenda em outra música do cantor e compositor, “Quase Sem Querer” (de Renato com Dado Villa-Lobos e Renato Rocha). “Minha geração foi muito invadida pelo pop rock nacional, e a Legião, como eu, vinda um tanto de Brasília, me chamava mais ainda. Renato é um ícone para nós”, comenta a cantora. A canção é também um cover: “Lá vou eu”, de Rita Lee e Luis Sérgio Carlini, da trilha sonora da novela “O grito” (1976). “Essa música começou a tocar na Rádio Musical1 e se espalhou, até hoje as pessoas acham que ela é minha, porque virou a minha cara com São Paulo”, diz Zélia. 

Antes de entoar a canção, em formato voz e violão, Zélia volta a falar na importância do Sesc Pompeia em sua carreira, dirigindo-se ao público. “Como o Zuza disse, esse palco aqui é importantíssimo para mim. Naquele ano que eu vim pela primeira vez e que tinha a impressão de que o público cantava comigo. Impressão maravilhosa, essa. E a música era ‘Lá vou eu’, de Rita Lee e Luis Sérgio Carlini, que a gente repete agora, juntos, de verdade, sem ilusão”, diz a artista na gravação. 

Ao final do número, em mais uma interação com a plateia, a cantora retoma uma história que havia mencionado durante o bate-papo com Zuza Homem de Mello: quando “Catedral” estourou, muita gente ficava em dúvida se a voz que estava ouvindo era de um homem ou de uma mulher. Ela entendeu, então, que precisava fazer shows e “correr atrás” de sua voz, que foi chegando no público antes dela, antes de sua imagem. “Acontecia isso das pessoas me ouvirem no rádio, ligarem, então, perguntando: ‘Quem é esse cara?’. Então era a hora de sair por aí pra cantar e explicar pras pessoas que o cara era eu”, brinca. 

A primeira faixa própria no show é “Não vá ainda”, com Christiaan Oyens (um de seus mais frequentes parceiros), de “Zélia Duncan” (1994), apenas com voz e bandolim, que soa ainda mais delicada ao vivo. Desse álbum, além da já citada “Lá vou eu”, Zélia apresenta ainda “Tempestade” (dela com Oyens) — com a “A cidade”, de Chico Science, como música incidental —, “Am I Blue For You” (de Joan Armatrading), “Sentidos” (com Oyens), “Nos lençóis desse reggae” (com Oyens) e “Catedral” (versão do sucesso da cantora alemã Tanita Tikaram, feita por Christiaan Oyens e Zélia Duncan).  

De “Intimidade”, a primeira que ela traz para o palco do Sesc Pompéia é “Enquanto Durmo”, quinta música do show. Na época, o clipe da canção havia recebido cinco indicações para o Video Music Brasil, prêmio da MTV, inclusive o de videoclipe do ano. Aos 33 anos, Zélia contava em entrevistas que estava surpresa com a quantidade de jovens em seus shows. Naquela noite não foi diferente. “Era um público da minha idade e mais novo que eu”, lembra. 

Outras canções do álbum de 1996 presentes no show são “Não tem volta”, “Minha fé”, “Coração na boca”, “Experimenta”, “Vou tirar você do dicionário” (de Itamar Assumpção) — com citações a “Barato Total” (Gilberto Gil) e “S.O.S.” (de Maurício Pacheco, sucesso do grupo Mulheres Q Dizem Sim) —, a faixa-título, “Bom pra você”, “Assim que eu gosto” e “A diferença”, com referência “Holiday Rap”, de MC Miker G e DJ Sven2

Embora Zélia tivesse mais um álbum, “Outra Luz” (1990), a cantora não se identificava muito com o trabalho, por não ter freado algumas imposições dos produtores, como o excesso de teclados. “Não soube dizer certos nãos que precisava ter dito. Comecei a cantar em 81 e só fui fazer o disco em 90. Já estava ansiosa para ter um trabalho. Tive receio de não conseguir fazer se dissesse muito não. Adoro que ele exista, mas não tem nada a ver comigo hoje”, contou ela à Folha de S. Paulo em 1996. 

No segundo e no terceiro discos, no entanto, a artista encontrou a sonoridade que queria: uma mistura da boa e velha MPB com folk e blues, com pitadas de country e reggae, coroada pela voz marcante da cantora. A receita agradou em cheio, ao público e à crítica: a revista estadunidense Billboard incluiu “Zélia Duncan” (1994) na lista dos Dez Melhores Álbuns Latinos daquele ano. Meses depois, “Catedral” foi parar na trilha da novela “A próxima vítima” (1995), como tema da personagem Irene (Vivianne Pasmanter). A partir dali, ela começou a colher os frutos de uma carreira que já passava de uma década. “Eu ralava muito, fazendo backings, cantando na noite, fazendo até locuções, fui cantar nos Emirados Árabes (entre 1991 e 1992) por cinco meses. Na volta, a vida começou a mudar”, lembra a cantora. 

Com o trabalho seguinte, havia uma tensão a respeito de como o disco seria recebido, o que costuma acontecer com qualquer artista que acabou de ter seu primeiro sucesso. Zélia diz que sentia ansiedade “o tempo todo”. “Só o tempo me sossegou de certas aflições. Não temos controle sobre nada, a não ser sobre o que compomos e cantamos. Não podemos prever como será recebido, precisamos caprichar no que sai de nós para o público, isso eu sempre soube”, afirma.  

Mas a pressão, felizmente, não tirou a liberdade criativa da artista, e “Intimidade” veio do jeito que ela gostaria. “Tenho muito orgulho dele, porque você não encontra ali a tentativa de me repetir. Não existe nada parecido com ‘Catedral’ nele, existe uma confirmação da parceria com Christiaan Oyens e Lucina, meus parceiros mais frequentes até então”, celebra ela. 

A última canção do “tempo regulamentar” é “Nos lençóis desse reggae” — com citação de “Roses Are Red (My Love)”, de Al Byron e Paul Evans —, que o público acompanha animadamente. Ao final, Zélia diz: “Inesquecível. Muito obrigada, mais uma vez”, diz. Ovacionada, ela atende aos pedidos de bis — que, como não podia deixar de ser, trouxe o hit “Catedral”. O público acompanha cantando e batendo palmas no ritmo, em um momento catártico. Zélia chega a deixar os fãs entoarem a música sozinhos: “Canta pra mim, vai”, pede ela. 

O resultado é um registro emocionante, marcado pela química entre os fãs e a artista. “Eu amo o palco. É onde me sinto melhor na vida, até hoje. A plateia me instiga e estimula”, diz Zélia. “E eu estava no meu momento, a gravação que estamos lançando juntos é um documento lindo, para mim, também da minha cumplicidade com essa plateia que abriu para mim ouvidos e coração”, derrete-se a cantora. 

Um amigo que a música deu 

Zuza Homem de Mello (1933-2020) foi jornalista, pesquisador e produtor musical, curador e diretor de shows. Entre 1994 e 1997, apresentou o projeto “Ouvindo Estrelas” no Sesc Pompéia, com bate-papos e shows de artistas como Maria Bethânia, Ivan Lins, João Bosco, Gal Costa e Gilberto Gil. Com Zélia Duncan, a conversa foi leve, descontraída e muito divertida, transparecendo a proximidade que os dois tinham. 

Ao chamar a artista ao palco, ele observou que, décadas antes, a música brasileira era dominada por intérpretes homens. Com um cenário dominado por mulheres, tinha ficado muito mais difícil se tornar uma cantora de destaque. “No entanto, a Zélia conseguiu isso. Primeiro, ela conseguiu isso à custa de um tremendo esforço e uma confiança em si própria”, disse. “Ela soube utilizar a sua voz, que, sem dúvida, é muito original, grave, com um timbre muito pessoal e identificável, o que ajuda muito, mas ela soube fazer um clima, um repertório. Apesar de três discos apenas, ela é uma das estrelas mais queridas do Brasil”. 

Zuza lembrou a fase difícil da carreira da artista, em que ela participou de um festival do qual ele era o diretor e ele a incentivou. “Eu falei: ‘Zélia, você ainda vai chegar lá, e não vai demorar (risos)’”. A cantora respondeu com um elogio: “Você era um alívio no meio daquilo tudo, assim, era alguém que sempre me dizia uma coisa boa. Quando a gente tá meio sem perspectiva e tudo escurece, é bom encontrar alguém que acredite na gente. É muito”, disse ela. “Eu acredito muito, sempre acreditei, e cada vez mais”, emendou ele. 

A artista contou um pouco sobre o que cresceu ouvindo: bossa nova e cantores como Dick Farney e Francisco Alves, cujas músicas a mãe gostava de cantar; Led Zeppelin e Pink Floyd, som que saía do quarto dos irmãos, e o álbum “Chico Buarque & Maria Bethânia ao vivo” (1975), uma fita cassete que ganhou de um tio aos 12 anos. Ela, a mãe e a irmã costumavam cantar e registrar em um gravador. Um dia, Zélia pegou o aparelho escondido e gravou “Tatuagem” (de Chico Buarque e Francis Hime) sozinha, contou ela, dando uma palinha da música. 

O jornalista menciona a gravação dessa música por Elis (em 1976, no álbum “Falso brilhante”), e é a deixa para Zélia falar sobre sua admiração pela cantora, que tentava imitar na adolescência. “E era um desespero, porque ela cantava muito mais agudo, e eu queria cantar pau a pau ali com ela (risos). E os meus irmãos ficavam desesperados, porque eu me trancava no quarto e ficava gritando as músicas”, diverte-se. Outra palinha, cantando e tocando violão, foi “Doce de coco”, choro de Jacob do Bandolim com letra de Hermínio Bello de Carvalho, gravado por Elizeth Cardoso, que estava no repertório da turnê anterior de Zélia. 

Em mais uma história divertida, a cantora contou que, logo depois de “Catedral” estourar, ela foi a Curitiba divulgar seu segundo álbum, “Zélia Duncan” (1994). A artista estava em uma loja olhando discos quando uma pessoa entrou e disse: “Tô procurando um disco… Uma voz que tá na novela.” “Aí eu fui chegando mais perto para ouvir. Aí a mulher falou: ‘É homem ou mulher?’. ‘Não sei.’ Eu falei: ‘Sou eu!’”, contou Zélia, para gargalhada geral. “E era (risos)”, completou. 

A participação no projeto “Ouvindo Estrelas” foi importante para a artista não só por sua relação com o palco do Sesc Pompeia, mas também com o próprio anfitrião. Antes de apresentar “Minha fé”, aliás, ela dedica a canção ao jornalista. “Me emociono com sua pergunta, porque o Zuza era um amigo que a música me deu. O fato de ele gostar de mim me deu prestígio, ele era cheio de dignidade e conhecia a história das coisas. Ele me olhava no olho, e aquele sorriso generoso invadiu minha vida. Me deu muita força sempre, me sentia segura com ele”. 

Kamille Viola é jornalista e pesquisadora musical. Autora do livro “África Brasil: um dia Jorge Ben voou para toda a gente ver”, lançado pelas Edições Sesc.



Sobre Relicário: Zélia Duncan (Ao vivo no Sesc 1997), leia também:


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