Direção de Arte: festival inaugura nova categoria e entrevista Ana Mara Abreu, premiada por “Tia Virgínia”

12/04/2024

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Em seu cinquentenário, o Festival Sesc Melhores Filmes oferece uma programação inovadora com diversas atrações, entre homenagens, rodas de conversa, cursos gratuitos, faixa especial com clássicos e exibições de filmes inéditos que representam a nova safra do cinema nacional. Na premiação, que revelou os vencedores mais votados pelo público e pela crítica, a principal novidade foi a estreia da categoria Melhor Direção de Arte.

A partir desta edição, além de Melhor Fotografia, público e crítica passam a votar em mais uma categoria técnica que reconhece a contribuição artística de profissionais do audiovisual brasileiro. As primeiras recipientes da categoria Melhor Direção de Arte foram Ana Mara Abreu por “Tia Virgínia” (prêmio da crítica) e Juliana Lobo e Thales Junqueira pela cinebiografia “Meu Nome é Gal” (prêmio do público).

As diretoras de arte Ana Mara Abreu e Juliana Lobo, integrantes da Brada e vencedoras da categoria inaugural do 50º Festival Sesc Melhores Filmes / Crédito: Carol Mendonça

Mas o que implica uma Direção de Arte? Como o público, enquanto assiste a um filme, está hábil a analisar este departamento? Basta observar os cenários e avaliar se é “bonito” ou não?

Para responder estas e tantas outras dúvidas, o CineSesc convidou Ana Mara Abreu, uma das vencedoras da categoria inaugural, para ministrar um curso online e gratuito de três encontros intitulado “A Direção de Arte do Audiovisual”. As vagas se esgotaram em poucos minutos.

Formada em Cinema pela ECA-USP, Ana Mara Abreu é uma consolidada diretora de arte e cenógrafa brasileira. Em sua trajetória profissional, já assinou a Direção de Arte de longas-metragens, séries, documentários, vídeos publicitários e peças de teatro. Alguns dos seus trabalhos incluem produções dirigidas por cineastas conceituadas, como “Um Céu de Estrelas” (1996), de Tata Amaral; “Tônica Dominante” (2001), de Lina Chamie; “Durval Discos” (2002) e “É Proibido Fumar” (2009), ambos de Anna Muylaert – este último vencedor do prêmio Melhor Filme Nacional (público e crítica) no Festival Sesc Melhores Filmes em 2010.

Cena do filme “É Proibido Fumar”, de Anna Muylaert / Crédito: Divulgação

A dramédia “Tia Virgínia”, de Fábio Meira, que lhe rendeu o recente prêmio no festival, pode ser conferida na telona do CineSesc no dia 24 de abril, às 15h. Foi a primeira vez que Ana Mara trabalhou com a atriz Vera Holtz, a quem soltou elogios. “Em ‘Tia Virgínia’, a Vera se relaciona, contracena e se funde aos cenários e figurinos. Ela dá vida aos objetos e até contracena com o vestido no cabide. Coisa de gênia! Com certeza, sua atuação potencializou muito a direção de arte, espero que a gente também tenha colaborado com o trabalho dela”, declara.

Vera Holtz em cena no filme “Tia Virginia”, de Fabio Meira / Crédito: Divulgação

Mara também é sócia-fundadora da Brada, coletivo de Diretoras de Arte que une  mulheres, pessoas trans, não-bináries e quaisquer outras formas de expressão de gênero minoritárias em todo o Brasil. A Brada visa difundir, promover e divulgar o trabalho de Direção de Arte no audiovisual. Para conhecer mais sobre a iniciativa, acesse bradacoletivo.com.

Confira abaixo a entrevista na íntegra.

1. Uma pergunta bem técnica para início de conversa: há diferença entre Cenografia, Direção de Arte e Design de Produção?

Esta é uma pergunta intrincada para responder, até porque as nomenclaturas variam muito dependendo do lugar, da época e do tamanho do filme.

A cenografia é uma das funções que compõem a Direção de Arte. Ela é responsável pela parte específica da espacialidade dos cenários e se assemelha ao trabalho de um arquiteto, porém seu objetivo, neste caso, é contribuir com a narrativa sensorial de uma obra audiovisual.

Já direção de arte tem um pensamento mais global, conceitual e promove as valiosas trocas dentro do departamento de arte, com a direção geral e direção de fotografia, entre outros, garantindo que tudo esteja alinhado e coeso. 

Vou citar o trecho de um texto que gosto muito: “Diretores de Arte são responsáveis pela estruturação plástica e espacial que conforma a obra audiovisual em suas atmosferas, ambientes e caracterização de personagens, através do manejo de elementos visuais e estímulos sensoriais por meio do uso consciente de cores, texturas, linhas e volumes.”

Design de Produção é uma tradução literal e não muito precisa de Production Design, que é usado no cinema anglo-americano. A primeira pessoa que recebeu este crédito foi William Cameron Menzies por “… E o Vento Levou”, em 1939. Em agradecimento à sua importante colaboração, o produtor David O. Selznick cunhou este crédito, que espelha um pensamento característico de Hollywood na era dos grandes estúdios, quando os produtores eram mais valorizados do que os diretores. Não por acaso, ele retirou a palavra “direção” e inseriu “produção” no crédito de arte.

Nós entendemos que o termo “Direção de Arte” é muito mais adequado, mais ligado à criação. A direção de um filme conta com a direção de fotografia e a direção de arte para construir a visualidade do filme. A direção de arte também envolve o pensamento de produção, mas ele existe em função de viabilizar este olhar criativo. 

Resta saber se o crédito de Direção de Arte vai resistir por aqui com a vinda de streamings, por exemplo, que querem instituir que Production Design é algo mais valoroso em termos artísticos do que Direção de Arte, o que não é verdade. A Direção de Arte tal qual praticamos aqui no Brasil é ainda mais abrangente do que a Production Design. Aqui, o nosso trabalho inclui, por exemplo, um pensamento conjunto com figurino e maquiagem, enquanto nos Estados Unidos são departamentos bem distintos e com poucas trocas.

2. O roteiro do filme é a sua única fonte de base para conceber o trabalho ou há outros meios? Por exemplo, quando você vai construir a casa de um personagem, essa demanda exige um estudo/análise deste personagem?

Nossa função é traduzir palavras escritas no roteiro em imagens, portanto o estudo do roteiro e do personagem é fundamental. O roteiro é o início de tudo e é interessante que a gente se relacione com ele de diversas formas. Eu gosto de fazer uma primeira leitura sem interrupções e permitir que a imaginação flua livremente. Passada esta etapa, eu começo a estudar este roteiro em todos os seus detalhes. Entender o personagem é fundamental para se pensar em que ambiente ele vive ou atua, assim como entender a dinâmica do roteiro é fundamental para pensarmos a evolução destes espaços e dos personagens ao longo do filme.

3. O cinema é uma arte coletiva, que reúne diferentes profissionais especializados em departamentos diferentes. Para a concepção dos cenários, por exemplo, como funciona essa dinâmica com diretor, atores e outros profissionais? 

Sim, é uma arte extremamente coletiva, muitas são as trocas ao longo do processo. Trocamos muito dentro do próprio departamento de arte, entre cenografia, decoração de cena, design gráfico, figurino, maquiagem, cabelos, e também com a direção geral, direção de fotografia e produção. Depois das trocas iniciais, criamos e apresentamos o projeto de arte, e só depois de tudo discutido e aprovado que começamos a produzi-lo.

Já as trocas entre atores e cenografia acontecem de um jeito mais informal e cada vez mais percebo a importância de ter reuniões já previstas e agendadas. A sala onde fica o departamento de arte é sempre um espaço que todos gostam de visitar. Você está ali no meio de um projeto e, de repente, entra um ator que veio conhecer o projeto de arte junto com a direção. Então, você conversa, mostra as imagens, mas não é algo que já estava na pauta e que você se preparou previamente, então estas interações podem ser mais dispersas. Ou podem até não acontecer. Eu procuro sempre acompanhar as provas de figurino e de caracterização, então normalmente este é um encontro muito criativo com os atores, é quando me aproximo mais deles.

Na última edição da Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, eu e a diretora de arte Vera Hamburger preparamos uma mesa onde convidamos as atrizes Maeve Jinkings e Larissa Nunes para debatermos exatamente sobre isso: a interação do trabalho da arte com o trabalho dos atores.  As atrizes fizeram considerações lindas e expressaram o quanto gostariam de entrar em contato com estes universos visuais que estão sendo projetados e pensados ainda num momento em que elas também estão se preparando e descobrindo o caminho de suas atuações, afinal, estamos todos tentando descobrir quem são e como são estes personagens.

Ao criarmos os contornos, cores, formas, texturas, provocamos sensorialmente atrizes e atores. Portanto, conhecer o projeto deste mundo que molda os personagens e que é ao mesmo tempo moldado por eles, traz muitas respostas para quem vai atuar. Da mesma maneira, conhecer o que os atores estão preparando nos estimula a pensar mais amplamente os espaços, ambientes e caracterizações.

4. Como funciona o processo de pesquisa para desenvolver a direção de arte de um projeto?

É um momento intenso e muito rico. Trabalhar com Direção de Arte significa vivenciar diferentes modos de vida e de pensamento. Cada filme vai demandar conhecimentos que variam dos mais prosaicos aos mais elaborados e poéticos.

Eu adoro este momento de pesquisa. Entendo que é um respeito pelos personagens que serão retratados, embora acredite que quanto mais aprofundada for a pesquisa, maior será a liberdade que teremos para inventar e criar novos mundos e formas de existir, sejam elas realistas ou não. 

Existem várias formas e finalidades nas pesquisas. Gosto muito de fazer pesquisas de campo, entrevistas com pessoas reais que se assemelham em algum aspecto com o personagem, fotos de rua, álbuns de fotografia, fotos de Instagram, livros de arte, de arquitetura, filmes de ficção, filmes documentários, entre outros.

Muitas vezes estamos à procura de respostas mais palpáveis, mais objetivas, tipo como eram as salas de aula de escola primária na década de 1920, qual era o tipo de carteira e disposição das mesmas? Mas também nos interessam pesquisas mais abstratas sobre cores, formas, composições, plasticidade, que nos ajudarão a compor a alma ou a atmosfera do filme. As pesquisas podem funcionar também como estímulos criativos, uma imagem te faz lembrar de outra e de outra e, de repente, você chega em lugares ainda não imaginados.

5. Como você observa/avalia o comportamento do público em relação aos cenários?

Eu acho que o público se relaciona intensamente com a direção de arte e a visualidade geral do filme. Eles se envolvem, se emocionam e são tocados pelos cenários, pela composição dos objetos e caracterizações mesmo quando não percebem racionalmente que isto está acontecendo. Uma boa direção de arte de cinema faz o público sentir o cheiro, o paladar, acessar memórias e fantasias.

6. Pra finalizar, qual a sua recomendação para as pessoas que têm interesse em ingressar como profissionais de Direção de Arte no cinema?

Eu diria que na formação básica há diferentes áreas como cinema, arquitetura, design, artes plásticas, história, literatura, entre outras.

Poucas são as universidades que têm em sua grade a disciplina de Direção de Arte, mas hoje em dia temos bons cursos livres sobre direção de arte, porém ainda é algo espalhado e sem continuidade, mas muito está sendo pensado neste sentido.  

Eu mesma tenho um desejo enorme em criar um curso completo, bem robusto de direção de arte que desenvolva as habilidades técnicas dos estudantes e promova reflexões sobre cinema e direção de arte, em que eles possam aprofundar seus conhecimentos, tenham continuidade no seu aprendizado e possam desenvolver seus processos e repertórios pessoais.

Troféu do 50º Festival Sesc Melhores Filmes / Crédito: Carol Mendonça

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