DIREITOS LGBTI+ | Um encontro com Renan Quinalha

29/04/2024

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Professor de direito e escritor, Renan Quinalha traça um panorama histórico das lutas e conquistas deste movimento no Brasil 

POR LUNA D´ALAMA

Leia a edição de MAIO/24 da Revista E na íntegra

A sigla LGBTI+ abrange uma grande diversidade de pessoas no Brasil, com distintas realidades culturais e socioeconômicas. Essas diferenças têm impacto no exercício de cidadania dos indivíduos, como eles vivem, são reconhecidos e quais espaços podem ocupar. Nas últimas décadas, essa população tem conquistado, juridicamente, direitos civis como o reconhecimento da união estável homoafetiva, o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo, e a adoção.  

Na esteira dos avanços recentes e da despatologização das sexualidades, a comunidade LGBTI+ também conquistou o direito de pessoas transgêneras poderem ir diretamente aos cartórios para alterar o primeiro nome e o sexo na documentação civil, o de homens gays poderem doar sangue, e o de se discutir gênero e sexualidade nas escolas. 

Direitos como esses dependem de mobilização social para que sejam efetivos. No entanto, muitas pessoas no Brasil desconhecem o histórico de reivindicações, desde a década de 1960, do Movimento Homossexual Brasileiro (MHB) e de outros grupos em defesa dos direitos da população LGBTI+. Ao longo de vários ciclos, a comunidade foi conquistando direitos, políticas públicas, ampliando suas demandas e aparecendo cada vez mais – e de forma positiva – na cena pública. Para traçar um panorama histórico dessas lutas, o advogado, professor de direito da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e escritor Renan Quinalha lança em breve, pelas Edições Sesc São Paulo, o livro Direitos LGBTI+: Novos rumos da proteção jurídica, organizado pelo autor em conjunto com Alexandre Bahia e Emerson Ramos. “Uso LGBTI+ porque tem sido a convenção adotada pelo movimento nos últimos encontros promovidos no Brasil”, explica. 

Quinalha também é autor de Movimento LGBTI+: Uma breve história do século XIX aos nossos dias (Autêntica, 2022), vencedor do Prêmio Cidadania e Diversidade da Parada LGBT de São Paulo e finalista do Prêmio Jabuti, em 2023. Além disso, é editor e colunista da seção Livros e Livres, dedicada à literatura LGBTI+, na revista Quatro cinco um, e coordenador do Núcleo TransUnifesp, na universidade em que leciona. Neste Encontros, o especialista aponta conquistas e desafios da população LGBTI+. 

LUTA HISTÓRICA 

Desde o fim dos anos 1970, durante a ditadura militar, já havia no Brasil um movimento político organizado, com iniciativas LGBTI+ acontecendo em vários lugares. Um movimento de resistências, de agenciamentos, de pessoas vivendo suas experiências – individuais e coletivas – de gênero, de sexualidade, de dissidência. Em meio ao processo de redemocratização e junto a uma série de outros movimentos sociais (feminista, sindical, estudantil e negro), surge o Movimento Homossexual Brasileiro (MHB). Seu primeiro desafio, naquele momento, era de fato a reconstrução democrática. Na virada da década, já havia cerca de 20 grupos ativos no MHB, num período em que vários coletivos da sociedade estavam se organizando e trazendo suas demandas para a cena pública. Todo esse processo desembocou nas Diretas Já [movimento popular que teve como objetivo a retomada das eleições diretas para o cargo de presidente da República] e na Constituinte de 1988. 

DA EPIDEMIA À VISIBILIDADE 

No meio do caminho dessa luta por direitos, nos anos 1980 e 1990, o movimento LGBTI+ enfrentou a epidemia de HIV/Aids, que abateu essa população (sobretudo homens gays, bissexuais e travestis) de uma maneira muito significativa e dramática. Hoje, o Sistema Único de Saúde (SUS) é um modelo mundial de prevenção e combate ao HIV, graças também à mobilização do movimento LGBTI+ organizado, que se engajou nessa luta. Na década de 1990, com uma política de assistência de saúde mais estruturada, esse movimento conseguiu ter maior visibilidade e ocupar mais a cena pública, incluindo a realização das primeiras Paradas do Orgulho LGBTI+ [em cidades como Rio de Janeiro e São Paulo]. A representatividade desses segmentos foi aparecendo cada vez mais na mídia e em uma série de outras frentes importantes, inclusive nas políticas públicas – como o Programa Nacional de Direitos Humanos, na gestão de Fernando Henrique Cardoso [1995-2002] –, trazendo avanços nas áreas de assistência social, saúde, educação, trabalho e renda para essa população vulnerabilizada. 

RECONHECIMENTO DE DIREITOS 

A partir dos anos 2000, a população LGBTI+ vê, de fato, um avanço significativo do ponto de vista da cidadania, do reconhecimento de direitos [humanos e civis]. Apesar de ainda não termos uma lei específica de proteção à comunidade LGBTI+, há duas décadas começamos a ter uma série de decisões importantes no Supremo Tribunal Federal (STF) e no Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Foram casos de repercussão geral, como o reconhecimento da união estável homoafetiva em 2011; e o reconhecimento do casamento civil entre pessoas do mesmo sexo, em 2013. Dois anos depois, o STF reconheceu o direito de casais gays adotarem crianças sem restrições de idade ou sexo, garantindo a essa população o direito à parentalidade, à formação de famílias. Em 2018, pessoas trans conquistaram o direito à identidade de gênero, podendo ir diretamente aos cartórios para alterar o primeiro nome e o sexo na documentação civil, sem burocracia, necessidade de autorização judicial ou cirurgia de redesignação sexual. Em 2019, a LGBTfobia foi criminalizada e, em maio de 2020, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) foi obrigada, por decisão do STF, a aceitar a doação de sangue por homens gays e bissexuais. Além disso, o STF decidiu que discussões de gênero e sexualidade podem – e devem – acontecer nas escolas, pois dizem respeito a uma educação em direitos humanos. 

ALÉM DOS DIREITOS CIVIS, PESSOAS LGBTI+ PRECISAM DE TRABALHO, RENDA, DIGNIDADE E RECONHECIMENTO DE SUA CIDADANIA 

PELA CIDADANIA 

A gente ainda tem um déficit muito grande para a plena realização da cidadania LGBTI+ no Brasil. Isso porque há uma distância enorme entre o que dizem as decisões do STF ou leis regionais antidiscriminação e o que se vê na prática. Além disso, ainda não temos, em âmbito federal, nenhuma lei penal de proteção a essa população. O grande desafio, portanto, é tirar [propostas e] legislações do papel, tanto em relação à comunidade LGBTI+, quanto a vários outros grupos vulnerabilizados no país. Enfrentar esse desafio passa pela educação e pela cultura, por debates e conversas, pois o direito tem um limite até onde pode chegar, do ponto de vista da promoção de mudanças na sociedade. Acredito no direito como ferramenta de transformação social, de proteção dos direitos humanos, mas ele tem uma limitação sobre o quanto consegue sensibilizar as pessoas. Assim como o racismo, a LGBTfobia também é estrutural na sociedade. Há determinadas estruturas que nos precedem, nos atravessam, e a gente acaba reproduzindo-as, muitas vezes, inconscientemente. Com educação e cultura, podemos trazer outras versões sobre esses temas, qualificar o debate público, aprofundar as reflexões e sensibilizar as pessoas para a importância da desconstrução de preconceitos, a fim de que exista, finalmente, uma sociedade mais acolhedora e diversa. 

IGUALDADE JURÍDICA 

É muito importante que a gente tenha essa perspectiva de que, ao falar de direitos LGBTI+, não se está falando de privilégios, de querer um tratamento diferenciado do ponto de vista da legislação. O que se está buscando é igualdade de direitos. O casamento civil entre pessoas do mesmo sexo não alterou em nada o casamento entre pessoas heterossexuais. Ou seja, você não precisa retirar direitos do outro para reconhecer direitos a um segmento da população. Não é um jogo de soma zero. Pelo contrário, é possível a extensão desses direitos, de modo a contemplar o modo como as pessoas se percebem e vivem em sociedade. Além disso, acredito que, em um país democrático, é perfeitamente possível ter liberdade de crença, de fé, de culto, ao mesmo tempo em que se respeita a diversidade de manifestações de identidade de gênero, de orientação sexual. Apesar dos avanços judiciais que se materializaram em direitos importantes, a gente ainda não tem um estatuto antidiscriminação mais amplo ou uma lei civil de casamento, como a Argentina tem a lei do matrimônio igualitário. Uma lei específica criminalizando a LGBTfobia, por exemplo, daria maior solidez para o reconhecimento desses direitos do que uma decisão do STF. 

NATURALIZAÇÃO DE VIOLÊNCIAS 

Muitas vezes, as maiores violências contra a população LGBTI+ acontecem dentro dos ambientes familiares, lugares onde as pessoas esperam encontrar acolhimento, compreensão e carinho, mas que acabam sendo os primeiros locais de violação de direitos. Muitas crianças e adolescentes são expulsos de casa por conta de sua identidade de gênero ou orientação sexual. Além disso, ainda temos que lidar com formas cotidianas de violência, que aparecem como uma LGBTfobia cordial, uma “piadinha”, algo recreativo. Isso aparece em vários espaços que ocupamos, na forma de palavras que não teriam o intuito de ofender, desrespeitar ou agredir. Mas, tudo contribui para esse processo de naturalização da violência e de desumanização da população LGBTI+. 

DIÁLOGO ENTRE MOVIMENTOS 

Historicamente, no Brasil e no mundo, tem havido aproximações entre movimentos LGBTI+ e outros que lutam por direitos civis, como movimentos negros, de mulheres, trabalhadores e estudantes. Destaco os Estados Unidos, que são o país de mobilização mais importante e paradigmática da população LGBTI+. Nos anos 1950 e 1960, os movimentos pelos direitos civis de pessoas negras e mulheres acabaram abrindo caminho para o LGBTI+. Em 1969, na cidade de Nova York, ocorreu a Revolta de Stonewall [série de protestos realizados pela comunidade LGBTI+ em reação a batidas policiais violentas no bar Stonewall Inn, com grande público gay, trans, negro e latino], marcando a data de 28 de junho como o Dia Internacional do Orgulho LGBTI+. No Brasil, essa interseccionalidade de agendas dos movimentos vem ganhando cada vez mais força. A gente precisa olhar para essa comunidade entendendo que as pessoas LGBTI+, muitas vezes, têm outros marcadores sociais de diferença [gênero, raça, classe social, idade e região geográfica]. É por isso que o diálogo dos movimentos é essencial para uma política de alianças e reivindicações. Se olharmos apenas para uma dimensão, a da diversidade sexual, não vamos resolver todas as vulnerabilidades a que essas pessoas estão sujeitas em suas vidas e em seus territórios.  

MUDANÇAS PROFUNDAS 

Por décadas, a gente viu representações negativas de pessoas LGBTI+ em vários tipos de produções culturais. Isso acabou estigmatizando essa população. Com o tempo, a percepção social da população LGBTI+ foi ganhando exemplos positivos na mídia, que abordam conteúdos dessas e de outras comunidades vulnerabilizadas. Reality shows como RuPaul’s Drag Race e Queer Eye, por exemplo, têm uma audiência enorme para fora da comunidade LGBTI+. Ou seja, não é mais algo de nicho, mas algo visto de modo mais amplo por pessoas que se interessam pelo tema. Além disso, os personagens LGBTI+ têm se tornado mais complexos em sua trajetória e identidade, o que ajuda a criar uma consciência mais elaborada sobre diversas questões. As mudanças trazidas com as lutas e conquistas dessa população passam, ainda, pelo mercado editorial, com cada vez mais publicações com temáticas sobre sexualidade e identidade de gênero. Muitas empresas também têm se dedicado a discussões sobre diversidade e inclusão, olhando para dentro de suas estruturas, e adotando uma postura proativa nesse sentido. Acho fundamental que se criem culturas organizacionais e ambientes de trabalho mais acolhedores, porque, a partir disso, conseguiremos fazer mudanças ainda maiores. Além dos direitos civis, pessoas LGBTI+ precisam de trabalho, renda, dignidade e reconhecimento de sua cidadania. A inclusão pelo trabalho faz uma diferença concreta na vida desses indivíduos. É preciso, portanto, pensar num compromisso efetivo que busque a contratação dessas pessoas e o treinamento dos demais funcionários, para que sejam respeitosos com todos.   

Ouça, em formato de podcast, a conversa com o escritor, advogado e professor Renan Quinalha, que esteve presente na reunião virtual do Conselho Editorial da Revista E, no dia 21 de março de 2024. A mediação do bate-papo é de Francis Manzoni, gerente-adjunto das Edições Sesc São Paulo.

Edição: Carol Mendonça

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