Ed. 84 – Trajetórias ao Longo de um Século

10/02/2023

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Por Tatiana Lazarini Fonseca

Compartilhar experiências pode ser um momento para selar vivências e aprendizados. Afinal, nos reconectarmos com memórias requer vivenciarmos novamente as mesmas experiências. Talvez ressignificá-las. De qualquer forma, transmitir a outrem aquilo que impulsionou novos significados e trouxe a possibilidade da troca pode ser enriquecedor para quem relata e para quem se abre para a escuta. Sendo assim, convidamos o leitor a se conectar com alguns momentos que iremos partilhar nas próximas linhas. Trata-se de um relato de experiência com um grupo de mulheres idosas em um curso no Sesc Vila Mariana.

Em 2022, as unidades do Sesc foram voltando aos poucos com os cursos presenciais. Em consonância com a efeméride do centenário da Semana de Arte Moderna de 22, convidamos a atriz Lilian de Lima e o músico Paulinho Brandão para ministrarem o curso Mulheres no Vão de um Século. A atividade também chegou a acontecer em mais duas unidades do Sesc: Interlagos e Santo André. Todo o seu desenvolvi- mento foi elogiado nas unidades. E, aqui, vamos discorrer sobre a experiência do curso no Sesc Vila Mariana.

De abril a junho, a atividade aconteceu presencialmente com aproximadamente 20 mulheres idosas inscritas. Pensamos nesses profissionais para desenvolverem a atividade em virtude de seus perfis educativos e da pesquisa realizada para o espetáculo Pagu, Anjo Incorruptível, com direção e atuação de Lilian de Lima. O curso permitiu às participantes uma imersão no pensamento modernista e na vida de algumas das mulheres do movimento, além de abranger momentos de suas próprias vidas, atualizando questões de gênero relevantes na contemporaneidade.

Lilian de Lima é atriz, cantora, dramaturga, educadora, diretora e preparadora vocal. É formada em interpretação pela Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP e em expressão vocal/canto pelo Studio Voz em Movimento. No teatro, faz parte da Cia. do Tijolo, As Meninas do Conto e é fundadora do grupo Núcleo Toa- da. O currículo é extenso e ressaltaremos aqui o seu trabalho com o espetáculo musical Pagu, Anjo Incorruptível, que sobrepõe camadas narrativas ficcionais e teatro documental a partir de fragmentos da vida e obra da jornalista, escritora e ativista Patrícia Galvão (1910-1962), conhecida como Pagu.

Já Paulinho Brandão é compositor, escritor e músico formado em violão popular pela Escola de Música do Estado de São Paulo (Emesp) Tom Jobim. Destacamos na área teatral seus trabalhos com o grupo de teatro Vento Forte, Beatriz Tragtenberg e Cia. do Tijolo, além de ter assina- do a direção musical do espetáculo em questão.

Como mencionamos, ao longo dos encontros do curso, foi revisitado o passado das modernistas e das próprias mulheres inscritas. A partir das lembranças – memórias históricas e pessoais –, as participantes foram convidadas a caminhar na linha do tempo refletindo sobre as mudanças percorridas nas vidas dessas mulheres ao longo do último século. Dentre as modernistas tivemos Anita Malfatti, Zina Aita, Tarsila do Amaral, Patrícia Galvão, Eugênia Álvaro Moreyra, Elsie Houston, Guiomar Novaes e Olívia Guedes Penteado.

Foram muitas as contribuições, tanto das participantes quanto dos ministrantes. Discutiu-se sobre as influências do movimento modernista para as suas vidas na época e hoje. E até mesmo algumas reflexões sobre o que foi vanguarda e o que, atualmente, poderia ser considerado vanguarda. A importância da liberdade de expressão, a ruptura com conceitos e vivências arraigados no preconceito e conservadorismo ressoaram nas criações artísticas e falas das participantes:


E, uma vez mais, tivemos o privilégio de receber um presente muito valioso, que nos falou tão de perto. Esse curso nos deu a oportunidade de um feliz encontro com mulheres que fizeram história. Resgatando seus feitos, sentimo-nos mais vivas ainda e pulsamos com elas no mesmo ritmo. Esse universo feminino, tão multivalente, trouxe mais profundidade entre nós, do grupo, e com essas mulheres em cujas vidas nos aprofundamos” (Helenice Sales, frequentadora da unidade e participante do curso).

Todo o processo de revisitação às memórias foi conduzido por teoria e prática por meio de linguagens artísticas. Os encontros desenrolaram-se permeados por música, canto, escrita, pintura, dança e interpretação cênica. Constituiu-se uma troca frutífera entre oficineiros e participantes, com perguntas acompanhadas por diferentes respostas ou até mesmo sem resposta alguma. Quais serão as nossas contribuições para os filhos e netos? Qual o melhor caminho? Existe o certo e o errado?

Acreditamos que uma das belezas das discussões trazidas se fez com o seguinte pensamento: sempre é possível mudar as suas próprias opiniões e o roteiro seguido pelos antepassados. Isso não significa excluir ou negar o passado. É perceber que algumas vivências e conceitos dos ancestrais não fazem mais sentido hoje e podem ficar guardados no aconchego das lembranças.

Ficou evidente o quanto muitas dessas mulheres estão abertas para romper paradigmas, superar preconceitos e verdades até então inabaláveis. Desestruturar memórias expressando alegria em viver contagia qualquer pessoa. Foi perceptível o quanto cada fala e participação encorajou e estimulou lembranças com repertórios semelhantes. Contudo, é claro que ali encontra- mos velhices e vivências distintas, decorrentes de questões culturais e socioeconômicas.

De qualquer forma, os relatos reforçaram o quanto a família é importante para a velhice. Quão difícil e penoso foi para muitas delas ficarem meses em total isolamento, sobretudo em 2020. Feridas e tristezas em processo de cicatrização. O idadismo – preconceito contra a pessoa idosa – ficou mais evidente nesse período que fomentou diversos pensamentos estereotipados em todos os segmentos da sociedade.

Todos sabemos do grande impacto que a pandemia causou à saúde mental no mundo todo. No entanto, por conta da necessidade do isolamento social ainda mais restrito, a pessoa idosa sofreu um impacto ainda mais cruel. Houve nesse período um aumento significativo nos quadros de depressão, agravamento do sentimento de ansiedade, solidão e tristeza entre os membros desse grupo.

A oficina Mulheres no Vão de um Século foi para todas e todos nós uma oportunidade de seguirmos criando, trocando, cantando, dançando, acolhendo e sendo acolhidas. Uma oportunidade de celebrarmos o prazer e a graça de estarmos vivas. Memórias e depoimentos pessoais, biografias de mulheres inspiradoras do modernismo, canções, poemas, cenas e narrativas diversas fizeram parte dos nos- sos encontros e renderam riqueza e fluidez de experiências e de saberes; trouxeram à tona memórias e desejos, e nos encheram dessa alegria tão singular de criar, trocar e compartilhar a criação. Que alegria a minha, que alegria a nossa!” (Lilian de Lima, atriz e diretora teatral)

As mulheres participantes compartilharam parte da história de suas vidas e das mulheres que fizeram e fazem parte de suas trajetórias, sejam avós, mães, filhas, tias ou amigas. A partilha de intimidades, dores, sabores e alegrias se fez de forma genuína e esclarecemos aqui que muitas das participantes já se conhecem. Algumas são amigas, outras se conheceram em outros cursos vinculados ao TSI no Sesc. Tivemos ainda aquelas que estreitaram suas relações sobretudo no período de isolamento social em virtude da pandemia de covid-19. Destacamos que, nos anos de 2020 e 2021, a unidade Vila Mariana fez encontros on-line semanais com idosos frequentadores.

O acolhimento durante todo o processo, nos diálogos e vivências artísticas, foi funda- mental. Quanto mais pensamentos e histórias encontravam acolhimento – sem verdades ou ideias preconcebidas – mais o desenrolar das atividades fluiu e a fruição e o desfrute se fizeram dentro e fora das aulas. Sim, fora das aulas. Algumas delas passaram a se encontrar em outros espaços do Sesc por conta própria num formato de pequeno sarau.

A unidade tem um público expressivo de mulheres idosas com habilidades artísticas, como dança, literatura, artes plásticas e teatro. Acreditamos que essa junção de saberes e vontades contribuiu para que ao final do curso pudesse acontecer um sarau ampliado.

Todos os encontros corroboraram para que cada uma delas pudesse expor sua criação artística neste sarau. Foram trazidas histórias de mulheres que se deixaram invadir pela coragem, pelo sopro do medo; mulheres que acreditam que tiveram pouco contato com os pensamentos modernistas no passado; outras que se enxergam como precursoras desde a mais tenra idade.

O curso permitiu às participantes uma imersão no pensamento modernista e na vida de algumas das mulheres do movimento, além de abranger momentos de suas próprias vidas, atualizando questões de gênero relevantes na contemporaneidade.

A apresentação sucedeu-se com direito a figurino, cenário, iluminação cênica, poemas autorais, música gravada e ao vivo. As histórias dessas mulheres e de outras que fizeram e fazem parte das suas genealogias, ganharam voz por meio de depoimentos, poesias, canto ou interpretação. Foi realmente fantástico. Damo-nos o direito de usar a palavra fantástico abrangendo aqui os seus diversos significados. O extraordinário, a fantasia e a realidade se interpenetraram. Ficção? Realidade? Ninguém mais sabia ou se importava. A verdade da alma daquelas mulheres estava ali nas cenas por elas criadas.

Mesmo com um roteiro a ser seguido, os encontros trouxeram surpresas, sempre com a entrega sincera das participantes. E talvez, exatamente por nunca sabermos quais seriam as histórias trazidas, o desenrolar do curso instigou constantemente a curiosidade e o ímpeto de pesquisa. A experiência viva do encontro carrega isso mesmo: o desconhecido. E como o trabalho foi bem conduzido pelos profissionais contratados e funcionários do Sesc, ali foi avistada uma terra segura para lágrimas, gargalhadas, alteridade, troca de experiências e conhecimento.

Rever a nossa história, no microcosmo ou macrocosmo, fez emergir importantes ingredientes para o processo de autoconhecimento e para o pensamento crítico. Adentrar os porões do passado trouxe subsídios para ponderações sobre o presente e o futuro que desejam construir.

Diversas vezes alguns comentários delas nos lembraram uma das reflexões de um monge indiano chamado Swami Sri Yukteswar. Ele dizia para não ficarmos presos ao passado, pois o futuro sempre pode melhorar se for feito um esforço espiritual hoje. Ter consciência do passado é fundamental, contudo, ficar preso a ele impede o movimento dos ciclos da vida.

Tomados por essas ponderações, recordamo-nos também da riqueza que foram os cursos de meditação que algumas delas fizeram on-line por oferta do Sesc Vila Mariana em 2021. É como se a cada curso ou encontro com os frequentadores uma nova trama surgisse desse novelo chamado vida. Estar à frente do TSI na unidade nos possibilita ter contato direto com algumas pessoas com larga experiência de vida, que nos tiram do piloto automático por meio dos seus exemplos, vivências e pensamentos compartilhados. Vida longa aos encontros, escuta ativa e criatividade!

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Tatiana Lazarini Fonseca

Bacharela e licenciada em ciências sociais pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp), pós-graduada em gerenciamento de projetos – práticas do Project Management Institute (PMI) pelo Senac, responsável pelo Trabalho Social com Idosos (TSI) na unidade Vila Mariana.tatiana.lazarini@sescsp.org.br

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