Por Gandhy Piorski e Ana Cláudia Leite (Cacau)
Se pudéssemos criar uma ordem de interesses para aquilo que as crianças mais valorizam, encontraremos como um dos primeiros lugares, se não o primeiro, o desejo de estarem próximas de sua mãe, pai ou dos adultos que se dedicam ao seu cuidado. A vontade da criança em viver a proximidade familiar, revela a necessidade de um alimento insubstituível para a sua alma: a intimidade.
Mas o que é a intimidade? A intimidade é aquilo que nos faz sentir quem realmente somos. Um ambiente em que a criança se sente segura e acolhida pelo que ela é, e não pelo que se espera dela, cria o sentimento de pertencimento e de intimidade. A intimidade é mais do que uma casa, brinquedos, telas, um quarto próprio, uma turma da escola, uma agenda com horários definidos. Intimidade é uma atmosfera afetiva poderosa. Ela só acontece pela presença, pelo cuidado, pela escuta.
A criança, em primeiro lugar, baliza toda a construção do seu senso de intimidade naquilo que ela vê e recebe de seus pais ou dos adultos responsáveis por ela. Depois, nutre-se de outras camadas de relações e afetos que compõem a sua vida familiar e social. Uma das coisas que mais incomoda a criança é ver os pais ou cuidadores ao seu lado sem estar lá. Estão na praça, no quintal, no restaurante, na escola ou até mesmo em casa, usando o celular ininterruptamente, e muitas vezes disponibilizando também telas para elas. Criam assim um sentimento de exclusão. Inviabilizando e colocando a criança apartada do que interessa aos adultos.
Estar presente, escutar e cuidar não é estar fisicamente ao lado e, no entanto, alheio ao que acontece, abduzido em um espaço próprio ou no ambiente digital, vivendo em um estado de desconexão com o presente, que anula as coisas de interesse da criança. Na infância se vive na inteireza do aqui e agora, do presente, e o adulto, na maioria das vezes, está alheio à este estado, disperso em seus próprios desejos, sentimentos, expectativas e afazeres. Do mesmo modo, escutar as crianças não é simplesmente ouvir e responder algo. Não é estabelecer apenas uma conversa, com perguntas sobre o seu dia, sua escola, o que gostaria de comer.
A escuta é, antes de tudo, uma atenção amorosa. Um verdadeiro interesse ao que a criança vive, no seu mundo imaginário, no seu brincar, nas suas narrativas, nos gestos, e também em seus silêncios. Escutar requer uma disponibilidade interna para estar com a criança e se interessar por aquilo que ela traz de si e de suas percepções sobre a vida. Por isso, até temas sensíveis e complexos, como a morte, as injustiças sociais, ou mesmo as crises ambientais, como na pesquisa que realizamos de 2018 a 2020 de escuta sobre natureza e mudanças climáticas, podem ser fontes para se ouvir as infâncias. Elas percebem, muitas vezes de modo subliminar, o que acontece em seu entorno. Sabem expressar sobre os mais diversos temas de forma profunda. Mas precisamos abrir possibilidades de linguagens para que elas se comuniquem. A profundidade das crianças está na maneira simbólica de se expressar.
No mundo onde os adultos, quase sempre estão atarefados, sobra pouco, ou quase nenhum, espaço e tempo para o acaso, o silêncio, a observação e a qualidade de presença. Nesta toada frenética, esquecemos que as crianças trazem um mundo rico de significados desde sua interioridade.
O modo mais eficaz de trazerem seus próprios universos está para além de suas palavras. O que elas falam também conta muito. Mas, os desenhos, as histórias, os objetos que compõem, seus gestos, seus sonhos, seus modos de observar e de brincar, todos são formas de dizer de uma criança. Todas essas linguagens trazem mostras significativas de como uma criança percebe o ambiente, a família, a casa, a escola, o planeta e os aspectos invisíveis que impregnam as relações com a vida. Devemos alargar o olhar e entender que as crianças não fazem – como se costuma dizer pejorativamente – “coisas de criança”, elas fazem coisas da alma, elas manifestam o seu ser.
O que elas fazem não é apenas uma “brincadeira”, algo “menor”, como frequentemente costumam ver os adultos. As crianças expressam o seu ser para o assentar no mundo. Criam memória ao fazer suas coisas na casa, no quarto, na relação com a família. Assim estão aprendendo a pertencer à vida, a fazer parte, pela amorosidade do sonho, do bem estar ou do estar bem com os outros e o mundo.
Escutar as crianças é levar à sério seu trabalho diário e incansável, de colocar o mundo que elas percebem dentro do sonho. Tal tarefa transformativa é enorme. É um trabalho da alma, um propósito de sobrevivência em buscar um vínculo verdadeiro com a vida. Tirar da infância a imaginação, o sonho, a capacidade de brincar em liberdade, é arrancar muito cedo essa bondade que a natureza nos dá quando pequenos: estar no mundo imaginando-o.
*Esta reflexão compõe o projeto Pra lá do meu quintal, que convida crianças e famílias a vivências lúdicas e sensíveis sobre natureza e território em uma programação de férias nos Centros de Educação Ambiental do Sesc São Paulo. Conheça a programação completa em sescsp.org.br/praladomeuquintal.
Ana Cláudia Leite (Cacau) é pedagoga, mestre em Ciências Sociais da Educação e especialista em infância. Dedica-se aos temas da educação, culturas das infâncias, participação e escuta de crianças. É Assessora de Educação e Culturas Infantojuvenis do Instituto Alana e desenvolve pesquisa sobre as práticas das crianças com Gandhy Piorski. É co-autora das publicação: “Território do Brincar – diálogos com escolas”.
Gandhy Piorski é artista plástico, teólogo, curador de exposições e pesquisador nas áreas da cultura, produção simbólica e antropologia do imaginário. Há mais de 30 anos se dedica aos estudos do imaginário e das práticas das crianças. Autor dos livros “Brinquedos do Chão. A natureza, o imaginário e o brincar”, “A criança e as águas” e “Anímicas”, publicados pela Editora Peirópolis.
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