Alimentar a transformação 

30/09/2025

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Da produção ao prato, iniciativas apontam caminhos para conciliar a alimentação com a sustentabilidade 

POR MARCEL VERRUMO  
FOTOS NILTON FUKUDA

Leia a edição de OUTUBRO/25 da Revista E na íntegra

Em 2013, os moradores do Jardim Filhos da Terra, na periferia da zona Norte de São Paulo, sentiam a falta de locais que vendessem alimentos saudáveis (frutas, legumes, verduras etc.), enquanto se multiplicavam os comércios que ofertavam produtos ultraprocessados (salgadinhos de pacote, bolacha, entre outros). Recém-formado em gestão ambiental, o morador Wagner Ramalho começou a se incomodar com esse cenário, conhecido como deserto alimentar. Certo dia, caminhando pelo bairro, observou inúmeros terrenos baldios, repletos de garrafas pet e de outros materiais, e teve a ideia de cultivar hortas agroecológicas nesses locais. Era o início do negócio socioambiental Prato Verde Sustentável

Com o aval da Associação Mutirão, organização não-governamental que gerenciava os terrenos, Ramalho idealizou um trabalho de educação ambiental com crianças e jovens da região. “Os participantes pegavam as garrafas pet do ambiente e plantavam alface, cebolinha e outros alimentos, criavam hortas. Durante esse trabalho, a gente falava do ciclo da água, da fotossíntese, e as crianças conseguiam ver a relação entre os conhecimentos”, conta.  

Vista aérea das hortas do negócio socioambiental Prato Verde Sustentável: espaço ultrapassa 500 canteiros que ocupam 13 mil m² e empregam 46 famílias do Jardim Filhos da Terra, zona Norte de São Paulo.

A iniciativa cresceu e atraiu participantes de outras idades. Mais de uma década depois, as hortas do Prato Verde Sustentável ultrapassam 500 canteiros, ocupando uma área total de 13 mil m² e empregando 46 famílias. Parte dos alimentos cultivados é preparada em uma cozinha da iniciativa que produz mais de 500 refeições diárias, servidas gratuitamente à comunidade. Também são destinados alimentos agroecológicos a creches e Centros para Crianças e Adolescentes (CCAs) da região, enquanto produtos derivados ainda são comercializados. “Nossa ação mostra a riqueza da periferia. Tiramos os nossos recursos da terra e do nosso trabalho, e transformamos um bairro com desertos alimentares em um espaço que produz alimento saudável e gera renda, onde as pessoas têm orgulho de morar”, diz Ramalho, sintetizando a mudança promovida pela iniciativa comunitária. 

Das hortas agroecológicas cultivadas pelo Prato Verde Sustentável no Jardim Filhos da Terra até a refeição servida, os alimentos percorrem uma série de etapas, sendo modificados por tecnologias e manuseados por diferentes pessoas. Esse caminho, incluindo seus indivíduos, equipamentos e técnicas, compõe o que pesquisadores chamam de sistemas alimentares – no caso, um sistema alimentar sustentável. 

Quando recém-formado em gestão ambiental, Wagner Ramalho, morador do Jardim Filhos da Terra, na periferia da zona Norte da cidade, viu uma oportunidade de transformar inúmeros terrenos baldios em hortas agroecológicas na região.

Tiramos os nossos recursos da terra e do nosso trabalho, e transformamos um bairro com desertos alimentares em um espaço que produz alimento saudável e gera renda, onde as pessoas têm orgulho de morar

Caminho dos alimentos 
“Os sistemas alimentares compreendem todas as etapas, processos e setores [ligados aos alimentos], desde a terra, a semente e os trabalhadores, passando pelo transporte, processamento, abastecimento, preparação e modos de consumo e refeições”, define Elisabetta Recine, nutricionista e professora da Universidade de Brasília (UnB). 

Essa jornada da comida influencia a vida dos trabalhadores, o meio ambiente e o que chega aos pratos. Se uma região prioriza técnicas agroecológicas e a agricultura familiar, por exemplo, tende a ter uma disponibilidade maior de alimentos saudáveis e diversos, e o solo preservado. Por outro lado, se essa trajetória for pautada por um sistema baseado na monocultura, pode diminuir a biodiversidade disponível à mesa e a preservação do meio ambiente. “Os sistemas alimentares são a ‘espinha dorsal’ de tudo o que comemos, definindo a variedade, a qualidade, o preço e a disponibilidade dos alimentos que chegam ao nosso prato”, defende Gabriela Rigote, nutricionista e mestra em ciências. 

A maior parte dos sistemas alimentares do mundo é insustentável, segundo Rigote, valorizando modelos voltados à produção em larga escala e priorizando as monoculturas de commodities agrícolas, como a soja e o milho. O resultado, defende a pesquisadora, são pratos com menos frutas, legumes e verduras, e um consumo maior de ultraprocessados. 

A necessidade de tornar mais sustentáveis os caminhos dos alimentos é um tema urgente, fazendo parte dos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), da Organização das Nações Unidas (ONU). Até 2030, o documento toma como uma das metas “garantir sistemas sustentáveis de produção de alimentos e implementar práticas agrícolas resilientes, que aumentem a produtividade e a produção, que ajudem a manter os ecossistemas, que fortaleçam a capacidade de adaptação às mudanças climáticas, às condições meteorológicas extremas, secas, inundações e outros desastres, e que melhorem progressivamente a qualidade da terra e do solo”. 

Da terra ao prato 
Para tornar sustentável a jornada percorrida pelos alimentos, não basta preservar o solo, a água e as florestas, é necessário conciliar o tripé do desenvolvimento econômico, social e ambiental. “Do ponto de vista econômico, [os sistemas alimentares] precisam ser rentáveis para distintos elos da cadeia produtiva e com práticas de comércio justo. Devem, ainda, gerar benefícios amplos para a sociedade e buscar neutralizar os impactos ambientais negativos da produção, distribuição e consumo de alimentos”, diz Gustavo Porpino, pesquisador da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa)

Alcançar a sustentabilidade exige uma série de investimentos. Para a professora da UnB Elisabetta Recine, é preciso que os sistemas alimentares sejam produtivos e prósperos, garantindo a disponibilidade de alimentos suficientes à população, de forma equitativa e inclusiva, promovendo o acesso de todas as pessoas à comida e aos meios de subsistência. Esses sistemas também necessitam ser empoderadores, fomentando a autonomia dos cidadãos e grupos, e incluindo os mais vulnerabilizados; além de resilientes e regenerativos, para serem sustentáveis e estáveis, inclusive em períodos de crise; e saudáveis e nutritivos, promovendo a saúde. 

Gustavo Porpino, pesquisador da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Foto: Beto Jeon)

Quem trabalha para a conformação de sistemas alimentares mais sustentáveis é o bacharel em gestão ambiental e doutor em patologia, Guilherme Reis Ranieri, especialista em PANCs (plantas alimentícias não convencionais), pesquisador da Universidade de São Paulo (USP), e idealizador do projeto digital Matos de Comer. O especialista leva a biodiversidade alimentar para as hortas urbanas, repensando as espécies e técnicas aplicadas nesses locais, e já desenvolveu projetos em cidades como São Paulo e Jundiaí.  

“As hortas urbanas são reservatórios de biodiversidade alimentar. Consideradas uma forma de agricultura familiar, elas têm um enorme potencial de produzir alimentos saudáveis, sem o uso intensivo de insumos e agrotóxicos, e ainda valorizam a biodiversidade que ficou à margem dos sistemas alimentares maiores, como é o caso das plantas alimentícias não convencionais (PANCs)”, defende Ranieri. O gestor também cita a agroecologia como ciência promotora da sustentabilidade nos sistemas alimentares, por adotar práticas com menor impacto ambiental e, por vezes, até regenerativas (ao invés de degradarem o solo e contaminarem a água, podem melhorá-los com o tempo). 

Nutrir o próprio território 
A lógica linear é outro desafio dos sistemas alimentares. O enfoque à exportação de commodities é uma característica que pode resultar no aumento de preços dos alimentos básicos, na fome e na geração de resíduos, além da monotonia alimentar (diminuição da diversidade à mesa). “O desperdício de alimentos é parte inerente do sistema [insustentável]. Temos casos extremos, como o descarte em redes varejistas de carnes e o descarte de frutas que viajam o mundo, chegam ao ponto de venda com preços premium para o segmento de maior renda e terminam indo, em parte, para o lixo”, avalia o pesquisador Porpino, apontando a importância da valorização de práticas de economia circular em resposta. 

No bairro de Campo Limpo, zona Sul de São Paulo, a chef Tia Nice (Cleunice Maria de Paula) e seu filho, o empreendedor Thiago Vinícius, fundaram o Organicamente Rango em 2018, negócio que desafia a lógica linear das monoculturas voltadas à exportação e serve uma alimentação adequada e saudável à população local. Nascida em Santa Mônica, cidade do interior do Paraná, a chef trabalhou por cerca de quatro décadas na capital paulista, onde aprendeu diversas técnicas culinárias que pôde aplicar no seu próprio restaurante. 

Com o sucesso do empreendimento, a dupla comprou um sítio onde começou a cultivar alimentos orgânicos e agroecológicos. Aquilo que era produzido nas hortas passou a ser preparado e servido no restaurante que, além de atender no próprio endereço, também recebe pedidos por delivery e doa refeições a pessoas em situação de insegurança alimentar. “Nunca precisei atravessar a ponte para comprar um alimento saudável. Aqui na periferia, cultivo comida boa, que valoriza a diversidade e respeita o meio ambiente”, conta a chef. Respeitando a circularidade dos alimentos, a equipe do restaurante separa o lixo orgânico e produz adubo com os restos de comida, evitando o desperdício. Junto à mãe, Thiago Vinícius sintetiza a mudança promovida: “o Organicamente Rango mostra que não é só o Centro que tem o direito de comer bem. A periferia é ‘PhD’ na alimentação brasileira.” 

Nascida em Santa Mônica (PR), a chef Tia Nice trabalhou por cerca de quatro décadas na capital paulista, onde aprendeu diversas técnicas culinárias até abrir seu próprio restaurante, o Organicamente Rango, focado em alimentação orgânica para todos.

Nunca precisei atravessar a ponte para comprar um alimento saudável. Aqui na periferia, cultivo comida boa, que valoriza a diversidade e respeita o meio ambiente.  

O papel do Estado 
Embora as iniciativas da sociedade civil sejam valiosas para promover a sustentabilidade na alimentação, especialistas indicam que é preciso que o Estado também se envolva com o tema, por meio de políticas públicas que gerem ganhos tanto para quem produz quanto para quem consome. “É papel das políticas públicas fomentar o cultivo e o consumo de alimentos saudáveis, atenuar falhas de mercado, contribuir com o financiamento da produção e do abastecimento, e fortalecer ações intersetoriais e entre diferentes níveis de governo”, elenca Porpino. 

Exemplo de política pública que promove a sustentabilidade, a nova cesta básica, de 2024, prioriza os alimentos in natura (obtidos diretamente de plantas e animais, e que não sofreram qualquer alteração após deixar a natureza, como frutas, legumes e verduras) e minimamente processados (grãos empacotados ou moídos na forma de farinha, carne resfriada ou congelada e leite pasteurizado, que são alimentos submetidos a processamentos mínimos, como limpeza, moagem e congelamento), respeitando as recomendações do Guia alimentar para a população brasileira (2014), do Ministério da Saúde. “Isso incentiva tanto uma alimentação mais diversificada, adequada e saudável, contribuindo com a valorização da biodiversidade brasileira, como também a agricultura familiar, que tem um papel de destaque na produção desses alimentos”, diz Rigote. 

Entre outras políticas públicas mencionadas pelos pesquisadores, também se destacam o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE). O primeiro é uma ação do governo federal responsável por adquirir alimentos da agricultura familiar e distribuí-los a pessoas em situação de vulnerabilidade social, equipamentos públicos, dentre outros espaços. Já o segundo, também de nível federal, distribui alimentos a alunos de todos os níveis da educação básica, privilegiando alimentos locais e da agricultura familiar. “Essas políticas contribuem para ampliar a oferta de produtos da agricultura familiar e impactam positivamente a redução de perdas decorrentes da falta de acesso a mercados para alimentos in natura”, argumenta Porpino. 

Junto à filha Maria Flor, Thiago Vinicius, um dos fundadores do Organicamente Rango, em Campo Limpo, zona Sul de São Paulo, serve uma alimentação adequada e saudável à população local, de olho no futuro das gerações. 

Semear a mudança 
Além de transformar a jornada dos alimentos com etapas, processos e técnicas mais sustentáveis, ações educativas que deem autonomia aos cidadãos precisam ser promovidas, ajudando os indivíduos a fazer escolhas mais saudáveis. “A Educação Alimentar e Nutricional (EAN) sensibiliza os cidadãos para os impactos multidimensionais de suas escolhas alimentares e, então, motiva-os a tornarem-se agentes de transformação”, diz Erika Fischer, gestora pública especializada em programas de alimentação escolar e segurança alimentar, cofundadora do Instituto Comida e Cultura, organização voltada à promoção da EAN. 

Essas práticas educativas devem ser impulsionadas desde os primeiros anos de vida da criança, segundo Fischer, de modo a forjar uma futura geração de cidadãos mais conscientes, saudáveis e engajados. “São inúmeras as possibilidades de atuação, mas entendemos que uma abordagem integrativa deva visar à formação de hábitos duradouros, promover a conexão entre teoria e prática e valorizar os saberes e a sociobiodiversidade dos territórios”, defende, citando como exemplos o desenvolvimento de hortas pedagógicas, oficinas culinárias, criação de livros de receitas afetivas e visitas a fazendas de produção agroecológica. 

Para cultivar hortas em terrenos desocupados da periferia, o Prato Verde Sustentável desenvolveu um trabalho educativo com crianças e jovens da comunidade, propagando saberes sobre os alimentos e o meio ambiente. No início, em 2013, as ações eram voltadas exclusivamente aos moradores da zona Norte. Conforme a iniciativa cresceu e foi reconhecida pelo Brasil afora, a equipe passou a ser procurada para realizar atividades educativas em outros locais.  

“Fizemos até uma capacitação em Sol Nascente [localizada no Distrito Federal, a maior favela do país em número de domicílios, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)]. Foi uma formação com jovens e adolescentes em regime semiaberto, em que falamos de agroecologia, racismo ambiental e crise climática”, conta o idealizador do Prato Verde Sustentável, Wagner Ramalho. Segundo ele, os jovens impactados pela ação já se tornaram multiplicadores e, hoje, levam a mais pessoas o que aprenderam: “acredito que a educação ambiental seja o caminho para semear saberes e mudar a realidade de comunidades em todo o Brasil”.  

para ver no sesc / alimentação 
Educação alimentar no cardápio 
Sesc São Paulo realiza 9ª edição do Experimenta! Comida, Saúde e Cultura com mais de 180 atividades gratuitas em todas as unidades da capital, interior e litoral 

De 14 a 26 de outubro, o Sesc São Paulo realiza a 9ª edição do Experimenta! Comida, Saúde e Cultura, e convida o público a refletir sobre o universo da alimentação em suas múltiplas dimensões. No mês do Dia Mundial da Alimentação (16/10), serão realizadas mais de 180 atividades gratuitas, em todas as unidades do Sesc São Paulo, como bate-papos, palestras, oficinas culinárias, dentre outros formatos. “Iniciativa integrante das ações educativas em Alimentação do Sesc São Paulo, o Experimenta! Comida, Saúde e Cultura é um convite à descoberta de sabores e saberes, fomentando a autonomia para escolhas mais saudáveis, justas e sustentáveis”, diz Mariana Meirelles Ruocco, gerente da Gerência de Alimentação e Segurança Alimentar do Sesc São Paulo.  

Confira destaques da programação. 

 Pompeia
À mesa com o bem-estar 
Na palestra, o médico Drauzio Varella e a nutricionista Patrícia Jaime abordam como as escolhas alimentares podem ser aliadas na construção de práticas promotoras da saúde.  
Dia 14/10. Terça, às 18h. Grátis.

Consolação
Na Feira Também Tem! Oralidade e Saberes Gastronômicos 
Vivência com Dani Lisboa, com escuta e partilha de histórias gastronômicas, que serão registradas em um livro coletivo de receitas e memórias.
Dia 18/10. Sábado, às 13h30. Grátis.

Belenzinho
Cozinha na nossa mão 
A importância do consumo de alimentos da época e provenientes da natureza é o tema desta oficina culinária, conduzida pela nutricionista Neide Rigo.
Dia 22/10. Quarta, às 19h. Grátis.

Taubaté
Como desenvolver autonomia e responsabilidade alimentar, da infância à adolescência 
A nutricionista Gabriela Kapim aborda escolhas e rotinas alimentares, saúde infantil a partir do prato, e como desigualdades sociais e econômicas influenciam o que é servido à mesa.  
Dia 23/10. Quinta, às 20h. Grátis.

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