
Da produção ao prato, iniciativas apontam caminhos para conciliar a alimentação com a sustentabilidade
POR MARCEL VERRUMO
FOTOS NILTON FUKUDA
Leia a edição de OUTUBRO/25 da Revista E na íntegra
Em 2013, os moradores do Jardim Filhos da Terra, na periferia da zona Norte de São Paulo, sentiam a falta de locais que vendessem alimentos saudáveis (frutas, legumes, verduras etc.), enquanto se multiplicavam os comércios que ofertavam produtos ultraprocessados (salgadinhos de pacote, bolacha, entre outros). Recém-formado em gestão ambiental, o morador Wagner Ramalho começou a se incomodar com esse cenário, conhecido como deserto alimentar. Certo dia, caminhando pelo bairro, observou inúmeros terrenos baldios, repletos de garrafas pet e de outros materiais, e teve a ideia de cultivar hortas agroecológicas nesses locais. Era o início do negócio socioambiental Prato Verde Sustentável.
Com o aval da Associação Mutirão, organização não-governamental que gerenciava os terrenos, Ramalho idealizou um trabalho de educação ambiental com crianças e jovens da região. “Os participantes pegavam as garrafas pet do ambiente e plantavam alface, cebolinha e outros alimentos, criavam hortas. Durante esse trabalho, a gente falava do ciclo da água, da fotossíntese, e as crianças conseguiam ver a relação entre os conhecimentos”, conta.

A iniciativa cresceu e atraiu participantes de outras idades. Mais de uma década depois, as hortas do Prato Verde Sustentável ultrapassam 500 canteiros, ocupando uma área total de 13 mil m² e empregando 46 famílias. Parte dos alimentos cultivados é preparada em uma cozinha da iniciativa que produz mais de 500 refeições diárias, servidas gratuitamente à comunidade. Também são destinados alimentos agroecológicos a creches e Centros para Crianças e Adolescentes (CCAs) da região, enquanto produtos derivados ainda são comercializados. “Nossa ação mostra a riqueza da periferia. Tiramos os nossos recursos da terra e do nosso trabalho, e transformamos um bairro com desertos alimentares em um espaço que produz alimento saudável e gera renda, onde as pessoas têm orgulho de morar”, diz Ramalho, sintetizando a mudança promovida pela iniciativa comunitária.
Das hortas agroecológicas cultivadas pelo Prato Verde Sustentável no Jardim Filhos da Terra até a refeição servida, os alimentos percorrem uma série de etapas, sendo modificados por tecnologias e manuseados por diferentes pessoas. Esse caminho, incluindo seus indivíduos, equipamentos e técnicas, compõe o que pesquisadores chamam de sistemas alimentares – no caso, um sistema alimentar sustentável.

Tiramos os nossos recursos da terra e do nosso trabalho, e transformamos um bairro com desertos alimentares em um espaço que produz alimento saudável e gera renda, onde as pessoas têm orgulho de morar
Caminho dos alimentos
“Os sistemas alimentares compreendem todas as etapas, processos e setores [ligados aos alimentos], desde a terra, a semente e os trabalhadores, passando pelo transporte, processamento, abastecimento, preparação e modos de consumo e refeições”, define Elisabetta Recine, nutricionista e professora da Universidade de Brasília (UnB).
Essa jornada da comida influencia a vida dos trabalhadores, o meio ambiente e o que chega aos pratos. Se uma região prioriza técnicas agroecológicas e a agricultura familiar, por exemplo, tende a ter uma disponibilidade maior de alimentos saudáveis e diversos, e o solo preservado. Por outro lado, se essa trajetória for pautada por um sistema baseado na monocultura, pode diminuir a biodiversidade disponível à mesa e a preservação do meio ambiente. “Os sistemas alimentares são a ‘espinha dorsal’ de tudo o que comemos, definindo a variedade, a qualidade, o preço e a disponibilidade dos alimentos que chegam ao nosso prato”, defende Gabriela Rigote, nutricionista e mestra em ciências.
A maior parte dos sistemas alimentares do mundo é insustentável, segundo Rigote, valorizando modelos voltados à produção em larga escala e priorizando as monoculturas de commodities agrícolas, como a soja e o milho. O resultado, defende a pesquisadora, são pratos com menos frutas, legumes e verduras, e um consumo maior de ultraprocessados.
A necessidade de tornar mais sustentáveis os caminhos dos alimentos é um tema urgente, fazendo parte dos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), da Organização das Nações Unidas (ONU). Até 2030, o documento toma como uma das metas “garantir sistemas sustentáveis de produção de alimentos e implementar práticas agrícolas resilientes, que aumentem a produtividade e a produção, que ajudem a manter os ecossistemas, que fortaleçam a capacidade de adaptação às mudanças climáticas, às condições meteorológicas extremas, secas, inundações e outros desastres, e que melhorem progressivamente a qualidade da terra e do solo”.
Da terra ao prato
Para tornar sustentável a jornada percorrida pelos alimentos, não basta preservar o solo, a água e as florestas, é necessário conciliar o tripé do desenvolvimento econômico, social e ambiental. “Do ponto de vista econômico, [os sistemas alimentares] precisam ser rentáveis para distintos elos da cadeia produtiva e com práticas de comércio justo. Devem, ainda, gerar benefícios amplos para a sociedade e buscar neutralizar os impactos ambientais negativos da produção, distribuição e consumo de alimentos”, diz Gustavo Porpino, pesquisador da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa).
Alcançar a sustentabilidade exige uma série de investimentos. Para a professora da UnB Elisabetta Recine, é preciso que os sistemas alimentares sejam produtivos e prósperos, garantindo a disponibilidade de alimentos suficientes à população, de forma equitativa e inclusiva, promovendo o acesso de todas as pessoas à comida e aos meios de subsistência. Esses sistemas também necessitam ser empoderadores, fomentando a autonomia dos cidadãos e grupos, e incluindo os mais vulnerabilizados; além de resilientes e regenerativos, para serem sustentáveis e estáveis, inclusive em períodos de crise; e saudáveis e nutritivos, promovendo a saúde.

Quem trabalha para a conformação de sistemas alimentares mais sustentáveis é o bacharel em gestão ambiental e doutor em patologia, Guilherme Reis Ranieri, especialista em PANCs (plantas alimentícias não convencionais), pesquisador da Universidade de São Paulo (USP), e idealizador do projeto digital Matos de Comer. O especialista leva a biodiversidade alimentar para as hortas urbanas, repensando as espécies e técnicas aplicadas nesses locais, e já desenvolveu projetos em cidades como São Paulo e Jundiaí.
“As hortas urbanas são reservatórios de biodiversidade alimentar. Consideradas uma forma de agricultura familiar, elas têm um enorme potencial de produzir alimentos saudáveis, sem o uso intensivo de insumos e agrotóxicos, e ainda valorizam a biodiversidade que ficou à margem dos sistemas alimentares maiores, como é o caso das plantas alimentícias não convencionais (PANCs)”, defende Ranieri. O gestor também cita a agroecologia como ciência promotora da sustentabilidade nos sistemas alimentares, por adotar práticas com menor impacto ambiental e, por vezes, até regenerativas (ao invés de degradarem o solo e contaminarem a água, podem melhorá-los com o tempo).
Nutrir o próprio território
A lógica linear é outro desafio dos sistemas alimentares. O enfoque à exportação de commodities é uma característica que pode resultar no aumento de preços dos alimentos básicos, na fome e na geração de resíduos, além da monotonia alimentar (diminuição da diversidade à mesa). “O desperdício de alimentos é parte inerente do sistema [insustentável]. Temos casos extremos, como o descarte em redes varejistas de carnes e o descarte de frutas que viajam o mundo, chegam ao ponto de venda com preços premium para o segmento de maior renda e terminam indo, em parte, para o lixo”, avalia o pesquisador Porpino, apontando a importância da valorização de práticas de economia circular em resposta.
No bairro de Campo Limpo, zona Sul de São Paulo, a chef Tia Nice (Cleunice Maria de Paula) e seu filho, o empreendedor Thiago Vinícius, fundaram o Organicamente Rango em 2018, negócio que desafia a lógica linear das monoculturas voltadas à exportação e serve uma alimentação adequada e saudável à população local. Nascida em Santa Mônica, cidade do interior do Paraná, a chef trabalhou por cerca de quatro décadas na capital paulista, onde aprendeu diversas técnicas culinárias que pôde aplicar no seu próprio restaurante.
Com o sucesso do empreendimento, a dupla comprou um sítio onde começou a cultivar alimentos orgânicos e agroecológicos. Aquilo que era produzido nas hortas passou a ser preparado e servido no restaurante que, além de atender no próprio endereço, também recebe pedidos por delivery e doa refeições a pessoas em situação de insegurança alimentar. “Nunca precisei atravessar a ponte para comprar um alimento saudável. Aqui na periferia, cultivo comida boa, que valoriza a diversidade e respeita o meio ambiente”, conta a chef. Respeitando a circularidade dos alimentos, a equipe do restaurante separa o lixo orgânico e produz adubo com os restos de comida, evitando o desperdício. Junto à mãe, Thiago Vinícius sintetiza a mudança promovida: “o Organicamente Rango mostra que não é só o Centro que tem o direito de comer bem. A periferia é ‘PhD’ na alimentação brasileira.”

Nunca precisei atravessar a ponte para comprar um alimento saudável. Aqui na periferia, cultivo comida boa, que valoriza a diversidade e respeita o meio ambiente.
O papel do Estado
Embora as iniciativas da sociedade civil sejam valiosas para promover a sustentabilidade na alimentação, especialistas indicam que é preciso que o Estado também se envolva com o tema, por meio de políticas públicas que gerem ganhos tanto para quem produz quanto para quem consome. “É papel das políticas públicas fomentar o cultivo e o consumo de alimentos saudáveis, atenuar falhas de mercado, contribuir com o financiamento da produção e do abastecimento, e fortalecer ações intersetoriais e entre diferentes níveis de governo”, elenca Porpino.
Exemplo de política pública que promove a sustentabilidade, a nova cesta básica, de 2024, prioriza os alimentos in natura (obtidos diretamente de plantas e animais, e que não sofreram qualquer alteração após deixar a natureza, como frutas, legumes e verduras) e minimamente processados (grãos empacotados ou moídos na forma de farinha, carne resfriada ou congelada e leite pasteurizado, que são alimentos submetidos a processamentos mínimos, como limpeza, moagem e congelamento), respeitando as recomendações do Guia alimentar para a população brasileira (2014), do Ministério da Saúde. “Isso incentiva tanto uma alimentação mais diversificada, adequada e saudável, contribuindo com a valorização da biodiversidade brasileira, como também a agricultura familiar, que tem um papel de destaque na produção desses alimentos”, diz Rigote.
Entre outras políticas públicas mencionadas pelos pesquisadores, também se destacam o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE). O primeiro é uma ação do governo federal responsável por adquirir alimentos da agricultura familiar e distribuí-los a pessoas em situação de vulnerabilidade social, equipamentos públicos, dentre outros espaços. Já o segundo, também de nível federal, distribui alimentos a alunos de todos os níveis da educação básica, privilegiando alimentos locais e da agricultura familiar. “Essas políticas contribuem para ampliar a oferta de produtos da agricultura familiar e impactam positivamente a redução de perdas decorrentes da falta de acesso a mercados para alimentos in natura”, argumenta Porpino.

Semear a mudança
Além de transformar a jornada dos alimentos com etapas, processos e técnicas mais sustentáveis, ações educativas que deem autonomia aos cidadãos precisam ser promovidas, ajudando os indivíduos a fazer escolhas mais saudáveis. “A Educação Alimentar e Nutricional (EAN) sensibiliza os cidadãos para os impactos multidimensionais de suas escolhas alimentares e, então, motiva-os a tornarem-se agentes de transformação”, diz Erika Fischer, gestora pública especializada em programas de alimentação escolar e segurança alimentar, cofundadora do Instituto Comida e Cultura, organização voltada à promoção da EAN.
Essas práticas educativas devem ser impulsionadas desde os primeiros anos de vida da criança, segundo Fischer, de modo a forjar uma futura geração de cidadãos mais conscientes, saudáveis e engajados. “São inúmeras as possibilidades de atuação, mas entendemos que uma abordagem integrativa deva visar à formação de hábitos duradouros, promover a conexão entre teoria e prática e valorizar os saberes e a sociobiodiversidade dos territórios”, defende, citando como exemplos o desenvolvimento de hortas pedagógicas, oficinas culinárias, criação de livros de receitas afetivas e visitas a fazendas de produção agroecológica.
Para cultivar hortas em terrenos desocupados da periferia, o Prato Verde Sustentável desenvolveu um trabalho educativo com crianças e jovens da comunidade, propagando saberes sobre os alimentos e o meio ambiente. No início, em 2013, as ações eram voltadas exclusivamente aos moradores da zona Norte. Conforme a iniciativa cresceu e foi reconhecida pelo Brasil afora, a equipe passou a ser procurada para realizar atividades educativas em outros locais.
“Fizemos até uma capacitação em Sol Nascente [localizada no Distrito Federal, a maior favela do país em número de domicílios, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)]. Foi uma formação com jovens e adolescentes em regime semiaberto, em que falamos de agroecologia, racismo ambiental e crise climática”, conta o idealizador do Prato Verde Sustentável, Wagner Ramalho. Segundo ele, os jovens impactados pela ação já se tornaram multiplicadores e, hoje, levam a mais pessoas o que aprenderam: “acredito que a educação ambiental seja o caminho para semear saberes e mudar a realidade de comunidades em todo o Brasil”.
para ver no sesc / alimentação
Educação alimentar no cardápio
Sesc São Paulo realiza 9ª edição do Experimenta! Comida, Saúde e Cultura com mais de 180 atividades gratuitas em todas as unidades da capital, interior e litoral

De 14 a 26 de outubro, o Sesc São Paulo realiza a 9ª edição do Experimenta! Comida, Saúde e Cultura, e convida o público a refletir sobre o universo da alimentação em suas múltiplas dimensões. No mês do Dia Mundial da Alimentação (16/10), serão realizadas mais de 180 atividades gratuitas, em todas as unidades do Sesc São Paulo, como bate-papos, palestras, oficinas culinárias, dentre outros formatos. “Iniciativa integrante das ações educativas em Alimentação do Sesc São Paulo, o Experimenta! Comida, Saúde e Cultura é um convite à descoberta de sabores e saberes, fomentando a autonomia para escolhas mais saudáveis, justas e sustentáveis”, diz Mariana Meirelles Ruocco, gerente da Gerência de Alimentação e Segurança Alimentar do Sesc São Paulo.
Confira destaques da programação.
Pompeia
À mesa com o bem-estar
Na palestra, o médico Drauzio Varella e a nutricionista Patrícia Jaime abordam como as escolhas alimentares podem ser aliadas na construção de práticas promotoras da saúde.
Dia 14/10. Terça, às 18h. Grátis.
Consolação
Na Feira Também Tem! Oralidade e Saberes Gastronômicos
Vivência com Dani Lisboa, com escuta e partilha de histórias gastronômicas, que serão registradas em um livro coletivo de receitas e memórias.
Dia 18/10. Sábado, às 13h30. Grátis.
Belenzinho
Cozinha na nossa mão
A importância do consumo de alimentos da época e provenientes da natureza é o tema desta oficina culinária, conduzida pela nutricionista Neide Rigo.
Dia 22/10. Quarta, às 19h. Grátis.
Taubaté
Como desenvolver autonomia e responsabilidade alimentar, da infância à adolescência
A nutricionista Gabriela Kapim aborda escolhas e rotinas alimentares, saúde infantil a partir do prato, e como desigualdades sociais e econômicas influenciam o que é servido à mesa.
Dia 23/10. Quinta, às 20h. Grátis.
A EDIÇÃO DE OUTUBRO DE 2025 DA REVISTA E ESTÁ NO AR!
Para ler a versão digital da Revista E e ficar por dentro de outros conteúdos exclusivos, acesse a nossa página no Portal do Sesc ou baixe grátis o app Sesc SP no seu celular! (download disponível para aparelhos Android ou IOS).
Siga a Revista E nas redes sociais:
Instagram / Facebook / Youtube
A seguir, leia a edição de AGOSTO na íntegra. Se preferir, baixe o PDF para levar a Revista E contigo para onde você quiser!
Leia poemas inéditos de Rodrigo Garcia Lopes, ilustrados por Carcarah
Utilizamos cookies essenciais para personalizar e aprimorar sua experiência neste site. Ao continuar navegando você concorda com estas condições, detalhadas na nossa Política de Cookies de acordo com a nossa Política de Privacidade.