Assombrinho | Bienal Sesc de Dança

02/09/2025

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Foto: Fábio Zerloti

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Entrevista com Wilson Julião | Concepção, cenários e direção

A obra parte do conceito de “assombro”, de Walter Benjamin. Como o grupo elabora essa ideia para um diálogo com a primeira infância?
Ao pensar a temática do fantasma para a primeira infância, ocorreu-nos uma aproximação ao conceito de “assombro” em Walter Benjamin de forma dupla: por um lado, articular a ideia do espaço – a instalação performada-performável – com um certo grau de impacto, que prolongasse o interesse e a curiosidade. Por outro, em nosso idioma, assombração é correlato de fantasma. Surgiu o título da proposta mesclando operação artística com célula fabular. Diferentemente da surpresa ou do choque, o assombro em Benjamin é uma forma de percepção expandida, carregada de potencial transformador, que seria nata à experiência frente à obra de arte. Podemos arriscar uma aproximação entre o olhar de descoberta da criança – pois quanto mais nova ela é, mais à frente do inesperado está – e a experiência singular proporcionada pela obra de arte. Nessa tangência de fragilidades, talvez surja algo ligado a um pequeno assombro.

A dança acontece na presença, se articula a certa distância, sob cumplicidade, e tem papel indispensável nas traduções do sensível

Assombrinho. Foto: Fábio Zerloti
Foto: Fábio Zerloti

Quais janelas são abertas ao colocar um imaginário fantasmagórico para as crianças?
Uma das brincadeiras acionadas por crianças da primeira infância é o adocicado “sustinho”. Tem formas variadas, mas quase sempre significa uma alteração no fluxo cotidiano para, num crescente de tônus, alcançar um ápice que pode incluir uma palavra, uma interjeição, gestos e movimentos. Em Assombrinho, o tecido que encobre, a cor que toma vida e flutua, o ser que se movimenta sem a revelação do corpo, são materialidades que provocam exercícios de abstração, de transformação, de finitude. O trabalho mescla momentos de construção (em Oiticica encontramos o termo “invenção”) em que todos estão envolvidos, e momentos de diluição, de falhas e brechas. O percurso que se arma e desaba, esse algo que acabou, como uma brincadeira inventada ali mesmo, apresenta e estabelece relações com o fim, com o vazio, e se aproxima de uma das belas definições do professor Celso Favaretto: “A arte não é para ser entendida, não é conhecimento, é uma espécie de enigma, ou um acontecimento, de imediato impenetrável, que pede para ser elucidado”.

Como você enxerga o papel da dança na sociedade atual e o que ela pode mobilizar ou revelar sobre nossos tempos?
O uso da inteligência artificial é um dos grandes desafios deste período. Conecta-se ao momento do surgimento da internet, das redes sociais, conquistas importantes, mas que também têm gerado um problema no e para o corpo. Há uma recente cooptação de palavras que trouxe esvaziamentos. A palavra “amigo” tinha outra conotação antes das redes sociais, o mesmo para “comunidade”, “curtir”, “conteúdo”, “redes”, “inteligência”… A dança (ou dancinha) divulgada em telas também foi afetada. Lembremos: a dança acontece na presença, se articula a certa distância, sob cumplicidade (uma boa palavra ainda não cooptada). Tem papel indispensável nas traduções do sensível. Oiticica dizia que a tarefa do artista é mudar o valor das coisas. Como trabalhamos com a primeira infância, temos foco na mobilização e operação do corpo da criança em um processo sensível.

Assombrinho. Foto: Fábio Zerloti
Foto: Fábio Zerloti

Sinopse

Assombrinho

Três fantasmas (mais um) estão ensaiando. Quando as crianças chegam, tudo se altera: os seres fantásticos se multiplicam e as ideias e as cores dançam pelo espaço. A experiência se abre para a criação cênica, performativa e relacional. Para isso, utiliza trilha sonora, projeções e tecidos como estímulos. A instalação performada-performável do Núcleo Quanta parte da temática do fantasma e se aproxima do conceito de “assombro” do filósofo alemão Walter Benjamin (1892-1940), sobre a aura perdida da obra de arte perante as formas de reprodução do início do século 20. Além de estilizar a ideia de assombração, a proposta busca desdobrar em ação a curiosidade das crianças da primeira infância. Ao resgatar fantasmas, a obra cria um espaço aberto e hospitaleiro para se tratar de temas proibidos, levando a refletir, de maneira lúdica, sobre a relação entre mundos e instâncias, sobre vida e morte como algo natural.


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Interview with Wilson Julião | Concept, set design, and direction

This piece draws on Walter Benjamin’s concept of “astonishment.” How does the group develop this idea to engage early childhood?
When reflecting on the theme of ghosts for early childhood, we came upon Benjamin’s concept of “astonishment” in a dual way: on one hand, articulating space — the performable-performed installation — with a degree of impact that could sustain interest and curiosity; on the other, in Portuguese, assombração (meaning “ghost” or “apparition”) is closely tied to the word assombro (“astonishment”). The title emerged as a blend of artistic operation and fable. Unlike surprise or shock, Benjamin’s astonishment is an expanded form of perception, charged with transformative potential, native to the experience of art. We can risk comparing the child’s gaze of discovery — the younger the child, the closer they stand to the unexpected — to the singular experience provided by a work of art. In this convergence of vulnerabilities, perhaps something like a small astonishment arises.

Dance happens in presence, unfolds across distance, under complicity, and plays an indispensable role in translating the sensorial.

Assombrinho. Foto: Fábio Zerloti
Foto: Fábio Zerloti

What windows open when a ghostly imaginary is presented to children?
One of the games typical of early childhood is the sweet “scare-baby prank.” It takes different forms but usually involves disrupting the everyday flow to build up tension toward a climax, which may involve a word, an exclamation, gestures, or movements. In Astonishlet, the fabric that conceals, the color that comes alive and floats, the being that moves without revealing the body — these materialities provoke exercises in abstraction, transformation, and finitude. The work blends moments of construction (Oiticica used the word “invention”) where all are involved, and moments of dissolution, of gaps and breaches. The path that assembles and collapses, that something just ended, like a game invented on the spot, introduces and establishes relations with endings, with emptiness, drawing close to one of Professor Celso Favaretto’s beautiful definitions: “Art is not to be understood, it is not knowledge, it is a kind of enigma, or an event, immediately impenetrable, that asks to be elucidated.”

How do you see the role of dance in today’s society, and what can it mobilize or reveal about our times?
Artificial intelligence is one of the great challenges of this era. It connects to the moment of the internet’s emergence, of social networks — major achievements that have also brought problems for, and through, the body. Words have been co-opted and emptied: “friend” meant something else before social networks, the same for “community,” “like,” “content,” “network,” “intelligence.” Dance (or little dances) spread on screens has also been affected. Let us recall: dance happens in presence, articulates across distance, under complicity (a good word still uncoopted). It plays an indispensable role in translating the sensorial. Oiticica said the artist’s task is to change the value of things. Since we work with early childhood, our focus is on mobilizing and activating the child’s body within a sensitive process.

Synopsis

Astonishlet

Three ghosts (plus one) are rehearsing. When the children arrive, everything changes: fantastic beings multiply, and ideas and colors dance through the space. The experience unfolds into scenic, performative, and relational creation, using soundtrack, projections, and fabric as stimuli. Núcleo Quanta’s performable-performed installation takes the theme of ghosts and engages with German philosopher Walter Benjamin’s (1892–1940) notion of aura and “astonishment,” lost in the early 20th century with forms of reproduction. Beyond stylizing haunting, the piece seeks to translate the curiosity of early childhood into action. By summoning ghosts, it creates an open and hospitable space to address otherwise forbidden themes, playfully reflecting on the relationship between worlds and dimensions, on life and death as something natural.

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