Autophagies [Autofagias] | Bienal Sesc de Dança

02/09/2025

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Foto: Argenis Apolinario

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Entrevista com Eva Doumbia | Texto e Direção

Autophagies trata da dimensão política da alimentação. Para você, qual é a relação da comida com a sociedade de consumo e o legado colonial?
Quanto mais trabalho neste texto, mais compreendo que a alimentação é a base da política, das relações entre os seres humanos e também entre todas as espécies. A alimentação de uns permite a reprodução dos outros. Nos seres humanos, é o ponto de partida da colonização. Eu digo que o problema começou para nós, os negros, com a loucura do açúcar entre os brancos. Mas isso teve início antes. O Império Romano colonizou e impôs suas culturas. O trigo está no centro do comércio no Oriente Médio desde a Antiguidade. O que é muito contemporâneo é que não temos mais consciência disso. Comemos animais mortos sem fazer a conexão com seus corpos vivos e não sabemos quem cultivou nossos vegetais. Estamos desconectados de nossa vida.

Autophagies consegue integrar os cheiros e os sabores. É importante para mim pensar as artes de maneira diferente, e a culinária pode ser espetacular.

Autophagies. Foto: Argenis Apolinario
Foto: Argenis Apolinario

Sua obra é bastante híbrida e é concebida como uma eucaristia documental. Como combina as diferentes linguagens e qual o papel do ritual no trabalho?
O texto foi concebido a partir de pesquisas históricas e culinárias, discussões e improvisações, a dança surgiu rapidamente porque a primeira intérprete era bailarina. No início, eu mesma cozinhava, mas não consigo fazer para 200, 300 pessoas. E nos apresentaram Alexandre, que é chef e tinha sido ator. Acho que Autophagies consegue integrar os cheiros e os sabores. Antes, eu já tinha feito uma peça com penteados. É importante para mim pensar as artes de maneira diferente, e a culinária pode ser espetacular. Todas as cerimônias e rituais têm uma dimensão culinária ou de partilha de bebidas. Comemos o pão encarnado em Cristo, sacrificamos um cordeiro do Eid. Os caçadores malinques, meus ancestrais do Mali, pedem perdão aos animais que matam. Na peça, propomos redescobrir a consciência do que significa comer. Permanecer em conexão com nós, com os humanos explorados. Não inventei esse sistema dramático, mas tentei redescobrir a dimensão coletiva e ritual do espetáculo. Nos EUA, meu papel foi interpretado por uma atriz de Nova Orleans, que sabe o que é uma cerimônia, e aqui no Brasil, Mariela Santiago será a mestre de cerimônias. Para as duas, assim como para mim, não se trata apenas de entretenimento. Eu realmente acredito no ritual, na comunhão. Este espetáculo não é um figurino que se troca por outro. Há uma dimensão real, verdadeira.

Como você enxerga o papel da dança na sociedade atual e o que ela pode mobilizar ou revelar sobre nossos tempos?
Não sou coreógrafa, mas diretora e autora. A maioria dos meus espetáculos tem uma dimensão de dança, e para Autophagies, pedi que [o elenco] trabalhasse uma gestualidade inspirada na agricultura. Mas muitas danças vêm dos intérpretes. A dança e a música permitem expressar o que o texto não consegue dizer. Tal como no teatro e na performance, a dança nos coloca em presença. Hoje em dia, isso é importante porque estamos sujeitos a imagens virtuais que nos afastam da realidade.

Autophagies. Foto: Argenis Apolinario
Foto: Argenis Apolinario

Sinopse

Autophagies [Autofagias]

O espetáculo se coloca entre as artes cênicas e uma degustação coletiva. Mariela Santiago faz o papel de mestre de cerimônias, convidando o público para uma espécie de eucaristia documental. Durante a encenação, a preparação de um mafê (ensopado africano) é acompanhada por histórias sobre seus ingredientes. Por trás de cada alimento, está uma história de migração, conquista colonial ou formas de exploração de pessoas e do meio ambiente. A diretora Eva Doumbia propõe recontar as origens dos alimentos através da culinária e, por meio de palavras e anedotas, conectá-los à experiência pessoal. A intenção é tomar consciência do que temos no prato. O trabalho insere comida no centro do palco para reexaminá-la a partir de uma série de paradoxos, e propõe que comamos conscientemente, tomando nossos hábitos e preconceitos como ponto de partida para a reflexão.


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Interview with Eva Doumbia | Text and Direction

Autophagies [Self Eaters] deals with the political dimension of food. For you, what is the relationship between food, consumer society, and the colonial legacy?
The more I work on this text, the more I understand that food is the basis of politics, of relations between humans, and between all species. The nourishment of some enables the reproduction of others. For humans, it is the starting point of colonization. I say the problem began for us, Black people, with the white madness for sugar. But it started earlier. The Roman Empire colonized and imposed its crops. Wheat has been at the center of trade in the Middle East since Antiquity. What feels contemporary is that we are no longer aware of this. We eat dead animals without connecting them to their living bodies, and we do not know who grew our vegetables. We are disconnected from life.

Autophagies [Self Eaters] manages to integrate smells and flavors. It is important for me to think of the arts differently, and cooking can be spectacular.

Autophagies. Foto: Argenis Apolinario
Foto: Argenis Apolinario

Your work is highly hybrid and conceived as a documentary Eucharist. How does it combine different languages, and what role does ritual play in the work?
The text was shaped by historical and culinary research, discussions, and improvisations. Dance emerged quickly, because the first performer was a dancer. At first, I cooked myself, but I cannot cook for 200 or 300 people. Then we met Alexandre, who is both a chef and a former actor. I think Autophagies [Self Eaters] manages to integrate smells and flavors. Before that, I had already created a play with hairstyling. It is important for me to think of the arts differently, and cooking can be spectacular. All ceremonies and rituals involve food or drink. We eat the bread embodied in Christ, we sacrifice a lamb for Eid. The Malinke hunters, my ancestors from Mali, ask forgiveness from the animals they kill. In the play, we propose rediscovering the awareness of what eating means. To stay connected to ourselves, and to exploited humans. I did not invent this dramaturgical system, but I tried to rediscover the collective and ritual dimension of performance. In the United States, my role was played by an actress from New Orleans who knows what ceremony means, and here in Brazil, Mariela Santiago will serve as master of ceremonies. For both of them, as for me, it is not about entertainment. I truly believe in ritual, in communion. This is not a costume to be changed for another. There is a real, genuine dimension.

How do you see the role of dance in today’s society, and what can it mobilize or reveal about our times?
I am not a choreographer, but a director and author. Most of my shows include a dimension of dance, and for Autophagies [Self Eaters] I asked the cast to work with a gesturality inspired by agriculture. But much of the dancing comes from the performers themselves. Dance and music allow us to express what text cannot say. As in theatre and performance, dance places us in presence. Today, this matters because we are surrounded by virtual images that detach us from reality.

Synopsis

Self Eaters

The performance unfolds between the performing arts and a collective tasting. Mariela Santiago serves as master of ceremonies, inviting the audience to a kind of documentary Eucharist. Onstage, the preparation of a mafé (African stew) is accompanied by stories about its ingredients. Behind each dish lies a history of migration, colonial conquest, or the exploitation of people and the environment. Director Eva Doumbia retells the origins of food through cooking, words, anecdotes, and linking them to personal experience. The aim is to raise awareness of what we have on our plates. Food takes center stage to be reexamined through paradoxes, and the work invites us to eat consciously, using our habits and prejudices as a starting point for reflection.

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