Circo expandido 

01/08/2025

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Seja no picadeiro, nas ruas ou no teatro, a arte circense encanta diferentes públicos a partir de uma diversidade de temas, linguagens, corpos e gerações de brincantes (foto: Joan Ward)

Leia a edição de AGOSTO/25 da Revista E na íntegra

POR MARIA JÚLIA LLEDÓ 

No começo da década de 1990, quando a artista Cibele Mateus tinha apenas cinco anos, um carro de som passou pelo bairro Parque Imigrantes, no município paulista de São Bernardo do Campo, anunciando a chegada do circo. Com ele, trapezistas, malabaristas, palhaços e outros saltimbancos chamaram a atenção da menina. Havia, também, uma atração especial: Angélica. Finalmente, Cibele veria ao vivo e em cores a apresentadora e cantora favorita da televisão. No final, ao lado das irmãs, a menina percebeu que se tratava apenas de uma sósia que “parecia mais a nossa vizinha Sandra, só que com o cabelo pintado de loiro”, descreveu.  

Mesmo assim, o arrebatamento foi instantâneo. “Esse circo mambembe do qual não sei o nome, feito de gente com a cara da nossa vizinha, gente negra mestiça, indígena, cigana, deficiente, trans… essa gente da chamada classe popular, é esse circo que caminha pelas estradas encantando os mais diversos cafundós dos Brasis, incorporando em suas apresentações, além de virtuosismos milenares do circo, o chamariz popular do momento”, definiu a artista no catálogo para o CIRCOS – Festival Internacional Sesc de Circo [leia mais no boxe Respeitável público!], em que apresentará, neste mês, o espetáculo Vermelho, branco e preto

Eis o circo, senhoras e senhores: uma arte multifacetada e, por que não, tão enigmática quanto a sala dos espelhos, onde nos perdemos e nos encontramos simultaneamente. Um espaço que – com ou sem lona e picadeiro – é capaz de surpreender, espantar e fazer gargalhar crianças, jovens, adultos e idosos. Um território onde podem confluir dança, teatro, música, trapézio, malabarismo, contorcionismo, palhaçaria e tantas outras linguagens artísticas. Cada qual à sua maneira, em diferentes tamanhos, o circo abraça uma diversidade de temas, corpos, raças e gêneros, numa estrutura ora simples ora pomposa, mas sempre focada em surpreender o público.  

PRIMEIRO ATO 
Na corda bamba, o nascimento do circo oscila entre divergências e concordâncias. Historiadores afirmam que as expressões artísticas que hoje compõem o circo nasceram há milhares de anos nas mais diferentes culturas. No Egito antigo, por exemplo, na tumba de Beni Hasan, há uma pintura de mulheres malabaristas, contudo não podemos afirmar que já havia circo ou que ele foi, porventura, frequentado por Cleópatra. Isso porque o circo moderno, tal qual o conhecemos, foi inaugurado no século 18, quando o cavaleiro inglês Philip Astley (1742-1814) reuniu atletas equestres de origem militar e companhias itinerantes, cujos artistas eram chamados de saltimbancos e praticavam acrobacias e funambulismo (o exercício de andar no alto, de uma ponta a outra, sobre um arame) em espaços públicos. As apresentações aconteciam em um único espaço, numa pista circular – daí a derivação da palavra “circo”.  

No Brasil, os primeiros grupos circenses vindos do exterior chegaram no século 19 e passaram a se apresentar em espaços públicos ou em locais cobertos improvisados. Até o século 20, a arte circense era realizada em ruas, feiras, tendas e mesmo em espaços teatrais, ou seja, não somente sob as lonas. Ao longo dos séculos, em constante transformação, o circo foi se adaptando aos lugares de sua itinerância para, então, interpretar, em suas múltiplas expressões, os desejos, sonhos, injustiças e desafios da sociedade. Desde o princípio, o circo sincroniza-se ora com o passado, ora com o presente. 

“O circo de lona, de picadeiro, palhaço, trapezista, bailarina, pipoca, maçã do amor, ele existe ainda. E que bom. Tem mais de 500 circos de lona circulando pelo Brasil. Desde aqueles pequeninos – uma família com quatro ou cinco pessoas e mais dois ou três artistas –, até gigantes. Ao mesmo tempo, a gente tem companhias de uma, duas, três, quatro pessoas que circulam nos centros urbanos, nos teatros… Ou seja, existem outras formas de se produzir circo que são coexistentes”, explica Marco Bortoleto, professor doutor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e coordenador do Grupo de Pesquisa em Circo (Circus).  Portanto, “o circo na contemporaneidade é a coexistência de formatos e modelos diversos, incluindo os mais clássicos”, complementa o pesquisador.  

Há 24 anos, a Troupe Guezá trabalha com diferentes corpos e gêneros contrariando estigmas que historicamente predominaram na cena circense (foto: Emcenaprodutora)

OFÍCIO BRINCANTE 
Atriz, diretora e educadora social, Cibele Mateus viu seu mundo virar de ponta-cabeça depois da passagem do “circo de lona montado num terreno baldio em São Bernardo”. Aos 14 anos, ingressou em sua iniciação artística e, logo depois, teve seu primeiro encontro com a Commedia dell’Arte, espécie de teatro popular que surgiu na Itália em meados do século 15, que conta com personagens fixos, uso de máscaras e apresentações com música, dança, acrobacias e diálogos. “Eu fui capturada por esse imaginário da Commedia dell’Arte, desse artista mambembe que vai aonde o povo está e que faz de tudo: é acrobata, ator, produtor, dança, canta. Então, fiquei por muito tempo, e ainda hoje, perseguindo esse ideal do artista completo”, conta Mateus.   

Em paralelo, fez oficinas de danças brasileiras e se encontrou nas manifestações populares, quando conheceu a Companhia Mundu Rodá, de Juliana Pardo e Alício Amaral. Foi nesse momento que teve o primeiro contato com o cavalo-marinho, brincadeira popular da Zona da Mata Norte de Pernambuco, que iria mudar a rota de sua carreira. Enquanto isso, com a Companhia As Marias, que havia fundado, se dedicou ao teatro de rua e já apresentava suas divergências com a Commedia dell’Arte. “Eu, enquanto mulher negra, sempre estava ali fazendo os papéis dos servos: Ragonda, Brighella, Arlecchino. Isso começou ainda sem tanta consciência racial, mas me incomodava. Fiquei na companhia até 2017”, recorda.  

Ao questionar os papeis da Commedia dell’Arte, Cibele Mateus passou a investigar quem seriam os intérpretes populares brasileiros. A partir daí, começou sua busca pelos brinquedos populares. Numa residência artística com o grupo Mundu Rodá, foi apresentada a Mestre Martelo, reconhecido há 45 anos pelo personagem Mateus, no Cavalo Marinho Estrela de Ouro, da Zona da Mata pernambucana. Depois de muita pesquisa e prática, a atriz foi brincar de Mateus em 2014, instruída pelo mestre. Desde então, é essa figura cômica que pinta o rosto de carvão, que ela leva aos palcos, ruas e outros espaços. “Eu não sou o Mateus da tradição, porque não brinco num grupo de tradição e hoje, o Mateus que eu brinco, ele tem, lógico, uma raiz e uma inspiração maior no cavalo marinho, mas também faço meu percurso buscando outras manifestações dessa cara preta: tem o Mateus, do reisado, tem o próprio Benedito, do mamulengo e outras figuras cômicas dentro desse guarda-chuva. Eu acho muito importante, e o circo está aberto, como sempre esteve, a receber outras comicidades que não necessariamente precisam ser chamadas de palhaços para poder estar nesse lugar”, explica.  

A artista e educadora Cibele Mateus no espetáculo Vermelho branco e preto, como o personagem Mateus, inspirado na figura homônima do cavalo-marinho e do reisado, e no Benedito, do mamulengo (foto: Mateus Tropo).

Imersa em tantas referências, Cibele Mateus acredita que são essas particularidades que definem o circo no Brasil. “Acho que a característica desse nosso circo se dá pela nossa formação: somos um povo ancorado nessa terra, que é indígena, e é da diáspora negra, por conta da escravização. A maioria da população é preta e parda. Então, esse circo vai ter características dessa mestiçagem. Por exemplo, a gente vê a palhaçaria que é feita no Norte e no Nordeste, não só a palhaçaria como as outras técnicas também, e elas carregam muito mais forte esse lugar da cultura afro-brasileira, afro-indígena”, observa a atriz, que está organizando, junto a Odília Nunes, o livro Mateus de uma vida inteira, sobre o Mestre Martelo. 

Ao refletir sobre o circo na contemporaneidade, a atriz, que nos últimos anos também vem dirigindo espetáculos circenses, observa que além de uma preocupação com as raízes culturais, os artistas brasileiros investigam seus próprios temas. “Estou dirigindo, agora, uma artista do Tocantins, de Taquaruçu, que a avó foi quebradeira de coco de babaçu. Então, ela está trazendo essa história do coco de babaçu dentro da palhaçaria dela e construindo um solo para falar sobre essas mulheres quebradeiras de coco. Assim, os temas vão variando e são muito condizentes com o seu território, com a sua cultura, com o seu gênero, com a sua raça. Eu acho que é um pouco esse caminho – a gente tem a necessidade de falar sobre as nossas questões”, define.  

DE MÃO A MÃO 
Você já ouviu falar da mulher-macaco? Famosa atração circense do século 19, a mexicana Júlia Pastrana (1834–1960), que sofria de hipertricose, uma doença que faz nascer pelos grossos e escuros por todo o corpo, foi explorada e exposta pelo circo como uma “aberração”. A atriz Jéssica Teixeira levou essa história ao palco em Monga, premiado monólogo que fez temporada no Sesc São Paulo em 2024, e que retoma a discussão na atualidade. Mulheres com corpos fora de um determinado padrão estético, como Pastrana, entravam no critério “exótico”, fosse pelo peso, pela altura ou por outras características. Graças à passagem do tempo, revoluções sociais e culturais se encarregaram, aos poucos, de mudar essa realidade.  

Para a acrobata Rubia Neiva, de 47 anos, o preconceito com seu corpo “fora dos padrões” para compor uma pirâmide humana lhe causou espanto e revolta. “Tinha esse lugar do homem musculoso sempre embaixo, e em cima, aquela mulher com corpo infantil. Na minha época, havia mulheres que faziam esse lugar de ‘portora’ [o portô é o artista que segura ou sustenta outro, seja no solo ou em aparelhos aéreos, permitindo que este realize movimentos acrobáticos], de quem está na base na técnica chamada mão a mão. Mas as mulheres que estavam nessa posição eram vistas como algo ‘exótico’, como a figura da ‘mulher barbada’. Ou seja, não eram corpos respeitados”, conta.   

Filha de mãe advogada e pai engenheiro, foi no encontro com o circo, ainda criança, em oficinas no Tendal da Lapa, na zona Oeste de São Paulo, que Rubia encontrou sua expressão. Até que em sua formação, na França, com o mestre húngaro Guezá, passou por uma reviravolta. “Eu sempre fui um corpo desrespeitado no circo. Eu era muito pesada para ficar em cima ou muito leve para ficar embaixo. E aí, ele me trouxe a possibilidade de ficar no meio, que está em cima e embaixo também [porque outra pessoa pode vir por cima na pirâmide]. Foi aí que eu comecei a descobrir, no meu corpo, essas possibilidades”, recorda. Depois da passagem pela França, Rubia criou a Troupe Guezá, que ganhou o nome de seu mestre e a referência à “troupe” em francês, também como homenagem.  

Há 24 anos, o coletivo acrobático é composto por diferentes corpos e gêneros, um chamado natural para a sua fundadora, que encontrou na diversidade a grande força do grupo. “Hoje em dia, com essa mudança, a gente já enxerga todos esses corpos – mulheres, não binários, trans – como corpos que são pertencentes, que podem fazer o que eles quiserem com as suas adaptações. As pessoas foram chegando porque a gente ia trazendo sempre essa questão do respeito aos corpos. Então, o que sinto de diferença nesses 24 anos é que, assim como a sociedade, o circo foi evoluindo”, observa Rubia, que leva o espetáculo Corp+s, neste mês, ao CIRCOS – Festival Internacional Sesc de Circo [leia mais no boxe Respeitável público!] 

A atriz e educadora Cibele Mateus acrescenta que o circo ainda colocava nesse lugar de “exótico” pessoas com deficiências e pessoas negras. “Hoje, virou-se uma chave nesse lugar de a pessoa contar a sua história, ter o seu lugar de fala. Isso é muito importante e o circo está sempre se movendo conforme a sociedade se move. A gente tem espetáculos com pessoas trans falando sobre as questões de gênero, pessoas falando sobre questões de raça, enfim, o feminismo está dentro do circo, também, nesse lugar da palhaçaria feminina, que sempre foi muito masculina e hoje se percebe outro tipo de comicidade, que afirma esse território”, constata. 

No espetáculo Vetus Venustas, da companhia Cíclicus, o diretor e fundador argentino-espanhol Leandro Mendoza constrói uma ponte entre gerações (foto: Manel Ulls).

ENTRE GERAÇÕES 
Num sótão, onde se guardam objetos velhos, empoeirados, obsoletos, descartáveis, surgem personagens reclusos em caixas, até então esquecidas. A partir daí, a reativação de uma memória coletiva e o retorno à vida cênica refutam: há, sim, vida, valor e sentido naquilo que foi descartado. Neste cenário, desenrola-se o espetáculo Vetus Venustas[em tradução livre, Beleza Antiga] da companhia Cíclicus, fundada pelo diretor argentino-espanhol e dramaturgo Leandro Mendoza. Também em cartaz no CIRCOS, o projeto artístico, que mescla acrobacia, trapézio e outras expressões, nasceu da necessidade de uma reflexão sobre a velhice no mundo do circo contemporâneo.  

Para isso, o processo de criação baseou-se em pesquisas, trocas de relatos, trabalho físico e questionamentos levantados entre os membros do coletivo. Das indagações, surgiram temas como medo, cuidado, valor e fragilidade. Segundo o diretor, não se trata apenas de um espetáculo, mas de uma experiência para seus criadores. Para Mendoza, além de uma crítica ao destino dado a esses corpos – exilados de suas próprias trajetórias –, Vetus Venustas também constrói uma ponte entre duas gerações no palco: afinal, não pode haver presente ou futuro sem memória.  

“Do ponto de vista da prática artística, o projeto levanta questões sobre como repensar os formatos cênicos para integrar a diversidade etária, como adaptar os processos criativos para incorporar diferentes ritmos e necessidades e como romper com o paradigma do novo como único valor estético. Também sugere uma redefinição do conceito de profissionalismo: ser profissional não é apenas ser ágil ou jovem, mas ter uma trajetória, um saber situado, uma perspectiva construída ao longo dos anos”, escreve o diretor no catálogo do festival.  

Mendoza acrescenta, ainda, que o espetáculo é uma aposta na criação coletiva entre gerações. “E é, sobretudo, uma advertência de que a arte não pertence apenas ao presente imediato, mas também àqueles que a construíram, viveram e continuam sustentando com seus corpos, suas histórias e suas memórias.” Ao final, o circo na contemporaneidade mostra-se  capaz de abarcar desejos e contradições humanas sem nunca se encaixar num modelo único.  

Como aquela serpente de plástico, que salta de uma pequena caixa e nos prega uma peça, a arte do riso, do risco, do imprevisível, da poesia, do susto… é também a arte de todos. “O circo é tudo isso ao mesmo tempo. Olha que maravilha. Ele não elimina modelos anteriores para gerar modelos atuais. Você vai ter um show de drag queen no circo, ao mesmo tempo em que tem um palhaço nos moldes do século 19 circulando. Isso é bonito”, celebra Marco Bortoleto. 

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