Filmes Restaurados: Memória em Movimento

03/10/2025

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De 3 a 15 de outubro, o CineSesc exibe a mostra Coleção Restaurados, reunindo mais de dez longas-metragens de diferentes épocas, nacionalidades e estilos, em cópias digitais atualizadas para a tela grande.  

Mas, por que a restauração de filmes é tão importante para o cinema?

Para entender o processo de restauro, especialmente de filmes antigos produzidos ao longo do século XX, é importante olhar para o suporte físico que deu forma à linguagem cinematográfica: a película de 35mm. 

Até meados dos anos 2000, os filmes exibidos em salas de cinema eram projetados a partir desse material, com largura padrão e quatro perfurações por quadro, convenção internacional estabelecida em 1909, durante o Congresso Internacional de Fabricantes de Filmes em Paris.  

Ao longo do século XX, a concorrência com a televisão impulsionou mudanças técnicas significativas: surgiram lentes especiais para o formato widescreen, o som ganhou recursos estéreo e surround, e os padrões de exibição evoluíram.  

Ainda assim, a projeção em 35mm não era apenas uma tecnologia, era um ofício. Projecionistas manipulavam bobinas pesadas, faziam emendas na película, trocavam rolos a cada 20 minutos e imprimiam à exibição um caráter artesanal e único. Com o tempo, as cópias acumulavam riscos, desbotamento e marcas de uso, tornando-se verdadeiros testemunhos da sua própria história de circulação.  

A projeção em película permanece viva no CineSesc, que é hoje um dos poucos cinemas da cidade de São Paulo a manter sessões em 35mm, uma prática que reafirma o compromisso da unidade com a preservação da experiência cinematográfica em sua forma mais original. 

Rolo em película de 35 mm em preparação para exibição no CineSesc. Foto: Alf Ribeiro.


A partir dos anos 2000, no entanto, o cenário se transformou com a consolidação do formato digital conhecido como DCP (Digital Cinema Package). Ele trouxe padronização, redução de custos e maior agilidade logística, substituindo as latas metálicas por discos rígidos e transferências digitais. Entre 2010 e 2015, a maior parte das salas de cinema do mundo concluiu sua transição para o digital. Estúdios como a Paramount deixaram de distribuir cópias em película, marcando o fim de uma era. 

Hoje, o DCP é o formato universal de exibição, e embora tenha menos de 25 anos de existência, substituiu um padrão centenário. A mudança representa não apenas um avanço técnico, mas uma transformação profunda nos modos de produção, distribuição e fruição do cinema. O contato físico com o filme foi substituído por protocolos digitais e exibições automatizadas. Por outro lado, a durabilidade das cópias aumentou: arquivos digitais não sofrem desgaste físico como a película e podem ser replicados indefinidamente, mantendo a qualidade da imagem original. 

Mais do que facilitar a distribuição, o digital tornou-se essencial para a preservação da memória cinematográfica. Filmes originalmente realizados em película passaram a ser restaurados e digitalizados em alta resolução — 2K, 4K e até 8K — permitindo sua difusão em escala global e acesso por novos públicos. O DCP garante qualidade uniforme em diferentes salas e países, mas também impõe uma perda: a vibração da luz, o grão, a textura e a singularidade de cada cópia em película são traduzidas, mas jamais reproduzidas com precisão total. 

Restaurações cinematográficas costumam acontecer em efemérides e comemorações de obras fundamentais e seus criadores, reintroduzindo os filmes para novos públicos e gerações. É o caso de Minha Adorável Lavanderia (1985, Stephen Frears), marco do cinema britânico e da produtora Film4, cuja restauração em 2K sob supervisão do diretor de fotografia Oliver Stapleton faz parte da Coleção Restaurados, em comemoração aos 40 anos de seu lançamento.  

Outro exemplo é Psicose (1960, Alfred Hitchcock), que em 2022 foi restaurado em 4K na versão estendida, incluindo 13 segundos de cenas que haviam sido cortadas pela censura norte-americana, que seguia o rigoroso Código Hays. Agora, no CineSesc, é possível assistir ao filme como foi originalmente exibido nos cinemas, conforme a intenção de seu autor. 

Psicose (1960), de Alfred Hitchcock, foi restaurado em 4K em 2022, incluindo 13 segundos de cenas que haviam sido cortadas pela censura. Foto: Divulgação.

Também em 2022, O Discreto Charme da Burguesia (1972, Luis Buñuel), recebeu uma minuciosa restauração em 4K com apoio do CNC francês (Centro Nacional do Cinema e da Imagem Animada, equivalente à nossa Ancine) e realizada pelo laboratório L’Image Retrouvé. O trabalho envolveu a digitalização do negativo de 35 mm no Arriscan, correção quadro a quadro de arranhões e deteriorações e a remasterização da trilha sonora a partir da mixagem original. Supervisionada pelo diretor de fotografia Edmond Richard, a restauração, também presente na mostra, marcou os 50 anos do filme, vencedor do Oscar® de Melhor Filme Estrangeiro em 1973. 

Do Irã, Através das Oliveiras (1994, Abbas Kiarostami) foi restaurado em 2K pela Criterion Collection sob supervisão de Ahmad, filho do diretor, a partir do negativo original em 35 mm, com remasterização da trilha sonora monofônica para manter a naturalidade característica da obra. 

Já o clássico de terror Poltergeist: O Fenômeno (1982, Tobe Hooper) também ganhou atenção especial: em 2022 a Warner realizou sua restauração em 4K, lançada em Ultra HD, em comemoração aos 40 anos de um filme que redefiniu os caminhos do gênero sobrenatural. 

Mais do que um gesto técnico, restaurar um filme é um ato de cuidado com a história do cinema. A película não deve ser vista apenas como nostalgia, mas como patrimônio cultural e material. Muitos filmes produzidos em película apresentam cores, saturações e resoluções superiores às dos formatos digitais. Preservar e exibir filmes em 35mm é garantir que a memória estética e sensorial do cinema permaneça viva. 

No CineSesc, a convivência entre o digital e a película mostra que o cinema é, ao mesmo tempo, arte da permanência e da transformação. E enquanto a luz passar pela película, haverá memória sendo projetada. 

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