
Das primeiras roças aos restaurantes contemporâneos, o historiador João Luiz Máximo da Silva mostra como a comida conecta povos, territórios e memórias em uma teia de sentidos que vai além do prato.
JOÃO LUIZ MÁXIMO DA SILVA é doutor em história social pela Universidade de São Paulo (USP), na área de história da alimentação. É professor e coordenador dos cursos de pós-graduação gastronomia: história e cultura e cozinha brasileira, do Senac São Paulo. Também é autor de vários artigos na área e dos livros Cozinha modelo – O impacto do gás e da eletricidade na casa paulistana (1870-1930), (Edusp, 2008) e 12 Ingredientes e uma dose – Uma viagem pelo Brasil através da comida (Editora Alaúde, 2023)
A alimentação é um tema transversal, com raízes que se ramificam para diversas áreas além da nutrição. Cultura, geografia, política, meio ambiente, religião e economia são algumas de suas múltiplas dimensões. Considerar esses aspectos é importante para a construção de uma consciência crítica sobre nossos sistemas alimentares, que impactam o outro e o planeta.
Somos a única espécie que produz e prepara seus alimentos. Com práticas sempre envoltas em subjetividade e cultura. A comida se conecta com os territórios, com os povos e com os indivíduos de maneira singular.
Segundo o historiador e pesquisador da alimentação João Luiz Máximo da Silva, “comer é um conjunto de rituais e símbolos que definem o que nós somos, definem a nossa identidade e a nossa cultura”. Das primeiras roças cultivadas, à invenção da gastronomia, nossa alimentação abrange múltiplas dimensões.
Embarque nessa história de conexões na entrevista a seguir:
Como poderíamos definir o que é o comer?
Vou repetir o que digo quando começo minhas aulas de história da alimentação, para os estudantes de gastronomia: Comer é uma atividade das mais primordiais para a espécie humana. É como respirar. Ou seja, todo mundo come. Qualquer espécie, qualquer ser vivo se alimenta.
A questão é que, para a espécie humana, isso ficou um pouco mais complicado. Então, eu sempre começo na pré-história para tentar entender como é que diferenciamos a nossa forma de comer e, mais do que isso, como é que o ato de comer nos diferenciou. Porque somos a única espécie que cozinha, que prepara os alimentos.
Comer com as mãos, criar utensílios e talheres, e a própria ideia de comer juntos. Acho que isso é muito próprio da espécie humana.
Então, a ideia de comer é um conjunto de rituais e símbolos que definem o que somos, definem a nossa identidade e a nossa cultura. É o comer pensando nessas múltiplas dimensões, da preparação dos alimentos à atribuição de símbolos a esses alimentos. É algo que vai muito além do que simplesmente ingerir algo com fins nutricionais, para poder matar a fome e continuar sobrevivendo.
De que forma a alimentação se constituiu como um eixo central na formação da identidade das sociedades?
Eu diria que a partir do momento que nós nos constituímos como espécie, que começamos a desenvolver os primeiros grupos humanos, que vão se tornar as primeiras civilizações, a alimentação sempre foi central. Em um primeiro momento, claro, como forma de sobrevivência. Mas a partir daí, podemos considerar que todas as civilizações ao longo da história vão estabelecer a alimentação como pauta principal. É inevitável. É o que Lévi-Strauss fala, que a comida está na passagem do que seria o estado selvagem para o estado de cultura. Então, todas as civilizações, todos os grupos humanos, vão ter um foco na alimentação.
Eu brinco que se você quer saber qual é o alimento mais importante de uma sociedade, é só ver se tem um mito para ele. Se tiver mito, é porque ele é central. Na Mesoamérica, por exemplo, você tem o milho. Nós vamos ter nossos mitos, nossas utopias, e até o paraíso, muitas vezes, ligado a determinados alimentos. Entre alguns grupos nórdicos, eles consideravam que quando os guerreiros morriam, eles iam para Valhalla. E na mitologia nórdica, esse paraíso tinha porcos sendo assados o tempo todo, nunca acabavam. Então, dá para entender que o porco tem uma importância fundamental para essa sociedade. Em várias mitologias religiosas vão dizer: “Olha, a terra onde corre leite e mel”. Tem sempre alimento envolvido. O paraíso é um lugar onde você vai comer bem aquilo que é importante para a sua cultura, sua identidade e sua religião.
Pensando na história do Brasil, como os sistemas alimentares foram estabelecidos?
Hoje discutimos algo que não se discutia antes, que são os sistemas alimentares dos vários grupos, dos povos originários, que aqui viviam. Durante muito tempo, negligenciamos isso, como se não houvesse nada a acrescentar. Aliás, a própria ideia de cozinha brasileira se funda nisso, nós fomos colonizados dessa maneira. Os portugueses vão trazer o seu sistema alimentar, os seus valores alimentares e, quando não havia possibilidade, tentavam adaptar ao que existia aqui.
Então, as pessoas estão se voltando para tentar entender esses sistemas alimentares, essas culturas alimentares que existiam e como elas são importantes para pensarmos a própria ideia do que são as cozinhas brasileiras. De como se fundam a partir desses sistemas alimentares.
E o cruzamento que tem, porque nesse período da chegada dos portugueses, que é o início da Era Moderna, é o período em que a humanidade assistiu a uma grande troca de alimentos. A nossa identidade vai nascer justa[1]mente dessas trocas, da presença do colonizador e da perda de parte desses sistemas alimentares, culturais e religiosos ligados aos alimentos, que foram se esvaindo ao longo da nossa história.
Você falou sobre esse fluxo de ingredientes da América, causado pela presença dos colonizadores. Que movimentos você considera como os principais?
O trânsito alimentar foi uma coisa impressionante nesse período todo. Pensando no caso da América do Sul, eu diria que o principal é o milho. É o principal alimento dos povos hispano-americanos, mas hoje já sabemos que ele tem importância fundamental na alimentação brasileira há milhares de anos. Uma planta que foi domesticada na mesma América, mas que sofreu um segundo processo de domesticação na região Amazônica.
A bacia amazônica é um dos maiores polos de diversificação alimentar e de domesticação de alimentos. Dali, o milho se espalhou para o restante do sul da América, levado principalmente pelos guaranis, e vai para a Europa levado pelos colonizadores portugueses e espanhóis. E avança pelo mundo inteiro, sendo uma das principais culturas agrícolas hoje.
É claro que já temos uma outra situação, pois estamos falando de uma planta que é importantíssima para a indústria alimentícia, com muitos produtos ultraprocessados feitos a partir dela. Mas eu diria que, entre as várias plantas que circularam pelo mundo, o milho é a mais importante.
No caso do Brasil, as pimentas também são um caso impressionante devido à sua diversidade e profunda importância cultural, histórica e econômica. Possuímos uma vasta variedade de pimentas nativas e introduzidas que, historicamente, passaram por um processo de adaptação que resultou em variedades exclusivas. Além disso, as pimentas carregam um significado simbólico para diversas comunidades indígenas e grupos tradicionais, o que as torna elementos essenciais da identidade cultural brasileira.
Hoje em dia, você não consegue imaginar a gastronomia de vários países do mundo, como Índia, Coreia, países do Sudeste Asiático, sem a pimenta do continente americano, que é a Capsicum. As pimentas dominaram quase todas as gastronomias ao redor do mundo.
E tivemos vários alimentos que fizeram o caminho contrário também. Pensar a cozinha brasileira, por exemplo, com todas as carnes que a gente utiliza, que são de animais domesticados que foram trazidos pelo colonizador. Galinhas, bois, carneiros, ovinos e caprinos, absolutamente todos foram trazidos. Esse processo de globalização no período moderno tornou as cozinhas muito misturadas. Não existe cozinha pura, feita só com seus ingredientes locais. Desde o período moderno, isso não existe mais.

Como os aspectos sociais e biológicos influenciam na percepção do gosto e das sensações alimentares?
Tem uma discussão bem aprofundada sobre isso. O que eu costumo trabalhar com meus alunos é que a ciência avançou para considerar que nós temos cinco sabores: amargo, azedo, salgado, doce e umami. Nós temos quimiorreceptores no nosso aparato sensorial para captar essas substâncias. E então é definida essa ideia do gosto.
Agora, tem outras coisas que normalmente acabamos considerando como gosto, mas que cientificamente não são consideradas, que são as sensações. A picância, por exemplo, é uma sensação. Se olharmos para a literatura, isso está muito misturado. E épocas diferentes vão ter percepções diferentes desses sabores.
O Massimo Montanari, no livro Comida como cultura (Senac São Paulo, 2024), fala que o gosto é uma experiência histórica, na tentativa de definir isso. Então, há uma definição dos gostos como algo científico. Mas a questão é como a espécie humana percebe isso, e essa percepção passa não apenas por questões biológicas, mas também por questões culturais.
Por muito tempo, a aristocracia europeia definiu o conceito de “comida boa”. Mas já não temos a aristocracia para ditar o que é o quê. Quem define os padrões alimentares hoje?
A gastronomia se constituiu dessa maneira. Só que ela não dita mais as regras como antes. Não tem esse poder todo e, inclusive vai se debruçar sobre outras coisas. Já a indústria alimentícia tem um poder grande hoje. Ela vai se mover por essas culturas alimentares impondo uma forma de se alimentar.
Claro que estamos falando de sociedades bem mais complexas hoje em dia. Mas a gente vê que quem trabalha com alimentação, como o nutricionista, tenta recuperar as antigas formas de se alimentar e as culturas alimentares locais que estão sendo quase que varridas por esse padrão que a indústria alimentícia acaba impondo.
Qual é o papel da comensalidade na gastronomia? E como essa experiência coletiva se manifesta historicamente e nos contextos contemporâneos?
A gastronomia se funda nessa ideia da comensalidade. Têm várias definições sobre gastronomia, mas uma delas, que o Carlos Dória fala muito, é que a gastronomia é um fenômeno público. Não existe gastronomia individual. E você pode pensar: “ah, mas eu não posso preparar um prato diferente para comer em casa sozinho?”. Pode, mas isso não é gastronomia. A gastronomia é a ideia de comensalidade, ela se funda nisso.
Claro que ela mudou ao longo da história. Nas cortes europeias, você tinha lá grandes mesas com serviço à francesa. Quando surge o restaurante, muda a maneira como servimos e experienciamos a gastronomia.
Claro que você vai até lá pela comida, mas não só. Você tem o serviço, vai sentar-se numa mesa com amigos, com a família. Dificilmente alguém vai ao restaurante sozinho, se não for uma situação mais corriqueira, de almoço no meio do dia de trabalho. Então, um dos valores que a gastronomia tem e que pode oferecer para nós é essa ideia de comensalidade. E eu acho que é um elemento extremamente importante na gastronomia.
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