Cordão | Bienal Sesc de Dança

02/09/2025

Compartilhe:
Foto: Sergio Fernandes

🇧🇷 🇺🇸

Entrevista com Malu Avelar | Pesquisa, direção e performance

Quais aspectos da obra de Geraldo Filme são explorados na performance e que reflexões ela propõe? 
A pesquisa parte da música Silêncio no Bexiga, composta por Geraldo Filme em homenagem ao sambista Pato n’Água, brutalmente assassinado durante a ditadura militar. Falar de Geraldo é lembrar que ele pertence à terceira geração de homens negros livres – seu avô foi escravizado. Um tempo em que a LGBTfobia era norma e, por isso, muitos registros desses homens carregam violências contra o que hoje chamamos de dissidências de gênero e sexualidade. Criar Cordão foi, então, pedir licença ao Seu Geraldo e evocar a entidade do malandro neste corpo sapatão, que exige passagem e questiona os binarismos e a heteronormatividade presentes até nos espaços tradicionais da negritude. A performance nasce desse entrecruzamento: ela reivindica presença histórica, ancestral e espiritual. É um modo de coreografar conversas com o invisível, tornando visível aquilo que facilmente se dilui nas celebrações coletivas, mas que permanece ecoando quando voltamos para casa.

O samba me ensinou a dançar com quem veio antes de mim. E é assim que sigo: em movimento

Foto: Sergio Fernandes
Foto: Sergio Fernandes

Como você articula o samba no seu trabalho e qual a influência dele na sua forma de ver o mundo?
Meu primeiro contato com a dança foi em casa, vendo minha mãe sambar. A gente ria enquanto eu tentava acompanhar seus passos, e ela fabulava: “Será que Lulu vai ser passista em uma escola de samba?”. O Carnaval, para nós, era uma relação de pertencimento, seriedade e alegria. O samba nunca foi apenas uma dança. Sempre esteve como algo a ser vivido. Quando iniciei minha formação, sabia que não estava indo “aprender a dançar” – isso eu já fazia. Eu estava indo aprender técnicas para ampliar meu repertório. Balé, dança contemporânea, tango e outras linguagens fizeram parte da minha formação formal. Já o samba e a congada me atravessam como experiência de vida. São expressões presentes na minha história, no modo como vejo o mundo. Por isso, não importa a música ou a linguagem que eu explore: meu corpo dança a partir de uma memória coletiva, histórica e ancestral. O samba me ensinou a dançar com quem veio antes de mim. E é assim que sigo: em movimento.

Como você enxerga o papel da dança na sociedade atual e o que ela pode mobilizar ou revelar sobre nossos tempos?
Eu enxergo a dança como uma prática da presença. Essa presença não precisa de falas elaboradas nem de ferramentas mirabolantes. Acredito que uma dança que parte desse estado físico e sensível tem a potência de incorporar essa conexão viva e efêmera que é estar em movimento. Isso nos aproxima da experiência de pertencimento a algo maior, a esse organismo vivo que é o planeta. Mas vivemos em uma sociedade colonizada, onde a lógica do “ter” se sobrepõe ao “ser” e ao “estar”. Tudo o que crio passa por um corpo preto e LGBTQIAPN+. Corpes como o meu carregam urgência: de existir, de contar a própria narrativa, de desejar outros futuros. Para mim, a dança é esse espaço de reinvenção, onde ser e estar se tornam potências. A dança tem essa capacidade de incorporar a presença e radicalizar discursos cristalizados, sem precisar dizer uma palavra.

Sinopse

Cordão

O compositor e cantor Geraldo Filme (1927-1995) desafiou o tempo e as limitações impostas. Guardião que cantarolou encanamentos e denúncias, foi militante negro e da presença de corpos LGBTQIA+ em bairros da cidade de São Paulo. Sua obra, em especial a música Silêncio no Bexiga, orientam a criação da performance de Malu Avelar, que se debruçou sobre a produção de Geraldo para analisar e tensionar a presença do corpo negro LGBTQIA+ no Carnaval e em espaços de resistência. Assim, a artista evoca a entidade do malandro Zé Pelintra e, como um corpo sapatão e preto, dança pedindo a bênção ao seu Geraldo Filme para poder dar continuidade à tradição do samba. Sua dança torna-se um rito de passagem e de sensibilidade para ativar outras escutas que permeiam o campo do conhecimento ancestral e espiritual.


🇧🇷 🇺🇸

Interview with Malu Avelar | Research, direction, and performance

Which aspects of Geraldo Filme’s work are explored in the performance, and what reflections does it propose?
The research begins with the song Silêncio no Bexiga, composed by Geraldo Filme in tribute to the samba musician Pato n’Água, who was brutally murdered during Brazil’s military dictatorship. Speaking of Geraldo is to remember that he belonged to the third generation of free Black men — his grandfather had been enslaved. It was a time when LGBTQIA+ phobia was the norm, and many records of those men bear the marks of violence against what we now call gender and sexual dissidence. Creating Cordão [Rope] was, therefore, a way of asking Seu Geraldo for permission and invoking the figure of the malandro within this Black butch lesbian body — a body that demands passage and questions the binaries and heteronormativity that persist even in traditional Black spaces. The performance emerges from this intersection — it asserts a historical, ancestral, and spiritual presence. It is a way of choreographing conversations with the invisible, making visible what easily fades within collective celebrations yet continues to echo once we return home.

Samba taught me to dance with those who came before me — and that is how I continue, in movement

Foto: Sergio Fernandes

How do you incorporate samba into your work, and how has it influenced your view of the world?
My first encounter with dance happened at home, watching my mother samba. We would laugh as I tried to follow her steps, and she would say playfully, “Will Lulu become a passista in a samba school?” For us, Carnival was a relationship of belonging, seriousness, and joy. Samba was never just a dance — it was always something to be lived. When I began my formal training, I knew I wasn’t going there “to learn to dance” — I was already dancing. I was there to learn techniques to expand my repertoire. Ballet, contemporary dance, tango, and other forms were part of my formal education. But samba and congada have shaped me as life experiences. They are expressions deeply embedded in my history and worldview. That is why, no matter the music or form I explore, my body dances from a collective, historical, and ancestral memory. Samba taught me to dance with those who came before me — and that is how I continue, in movement.

How do you see the role of dance in today’s society, and what can it mobilize or reveal about our times?
I see dance as a practice of presence. This presence does not require elaborate speeches or complex tools. I believe that a dance grounded in this physical and sensorial state holds the power to embody that living, fleeting connection that is in motion. It brings us closer to the experience of belonging to something greater, to the living organism that is the planet. But we live in a colonized society, where the logic of “having” overrides “being” and “existing.” Everything I create comes through a Black LGBTQIAPN+ body. Bodies like mine carry urgency — the urgency to exist, to tell our own stories, to envision other futures. For me, dance is this space of reinvention, where being and existing become forms of power. Dance has the ability to embody presence and radicalize crystallized discourses — without uttering a single word.

Synopsis

Rope

Composer and singer Geraldo Filme (1927–1995) defied time and imposed limitations. A guardian who sang of grievances and protests, he was a Black activist and an advocate for LGBTQIA+ presence in São Paulo’s neighborhoods. His work, especially Silêncio no Bexiga, inspired Malu Avelar’s performance, which draws on his legacy to analyze and delve into the presence of Black LGBTQIA+ bodies in Carnival and spaces of resistance. The artist also evokes the rogue figure of Zé Pelintra and, as a Black butch lesbian body, dances in a gesture of seeking Geraldo Filme’s blessing to continue the samba tradition. Her dance becomes a rite of passage and sensitivity, activating ways of listening that connect with ancestral and spiritual knowledge.

Conteúdo relacionado

Utilizamos cookies essenciais para personalizar e aprimorar sua experiência neste site. Ao continuar navegando você concorda com estas condições, detalhadas na nossa Política de Cookies de acordo com a nossa Política de Privacidade.