
Inspirada pela herança afetiva da avó, chef Heloísa Bacellar enxerga a cozinha como espaço de autonomia, transmissão de saberes e educação dos sentidos.
HELOÍSA BACELLAR é chef de cozinha e de confeitaria, formada pelo Le Cordon Bleu de Paris. Pesquisa, testa e escreve sobre receitas, comidas e modos de receber, sendo autora de diversos livros, como Cozinhando para amigos e Cozinha brasileira – histórias e receitas (Editora DBA, 2008 e 2019). Foi uma das fundadoras da escola de gastronomia Atelier Gourmand, em São Paulo.
Cozinhar a própria comida é sinônimo de autonomia e empoderamento. É um ato capaz de transmitir tradições, histórias e habilidades para futuras gerações. As crianças aprendem ao observar e ajudar os adultos a cortar, misturar e porcionar ingredientes.
A cozinha pode ser um verdadeiro laboratório vivo, onde se dividem responsabilidades, afetos, sabores e receitas. Um lugar para todos, para compartilhar tarefas, formar o paladar e construir habilidades que nos acompanham na vida adulta e ajudam a pensar o mundo ao redor de outras formas.
Foi assim com a chef Heloísa Bacellar, que vivia entre as panelas da avó na infância. Na entrevista a seguir, Helô, como gosta de ser chamada, fala sobre a transformação que cozinhar promoveu na sua vida e a sensação de liberdade que esse exercício dos sentidos pode proporcionar.

O que o ato de cozinhar representa na sua vida?
Acredito que é um ato de amor gigantesco. E amor tanto para comigo mesma, porque acho que isso me dá vida, me move e me deixa feliz, quanto para outras pessoas. Quando estou triste, faço um bolo. Cozinhar me alimenta e, às vezes, gosto até mais de cozinhar do que de comer.
Ao cozinhar, conseguimos fazer algo pelo outro. É um tipo de doação, porque tem um envolvimento enorme de oferecer comida para uma pessoa que você gosta. Então, considero um ato de amor. Para mim, isso é algo muito profundo, muito intenso e que eu vivencio o tempo inteiro.
Sem contar que cozinhar é desafiador. Eu sou uma pessoa que gosta de planejar. Gosto de imaginar, de organizar esse imaginário e tentar fazer algo diferente, criativo. Depois, realizo. Às vezes dá certo, às vezes não dá. É uma tentativa, e experimentar tem muito disso. Se por acaso não ficar perfeito, está tudo bem. A cozinha é um lugar de experimentação extremamente importante na vida das pessoas.
E como foi que você começou a se interessar pela cozinha?
Foi muito pequenininha e numa época em que crianças não iam para a cozinha. Eu tinha fascínio pela experimentação da cozinha, porque é um lugar de transformação. Acho incrível ver cenoura, farinha, açúcar, ovos e fermento. De repente, você juntou aquilo tudo seguindo uma determinada fórmula, uma lógica, e essa mistura vai se transformar em algo surpreendente.
A cozinha é um laboratório de vida, porque tem coisa que, se juntar um mais um, vai dar dois. Mas tem outros casos que vai dar qualquer número, menos dois! Acho isso muito emocionante, e foi o que me conquistou na infância. A cozinha abre mundos novos para você a cada minuto.
Mesmo com essas mudanças, algumas famílias ainda têm receio de trazer as crianças para a cozinha, seja pelos perigos, seja pela bagunça. Que diferença faz aprender a “navegar” pela cozinha desde criança?
Cozinhar tem uma parte muito lógica, que, se a pessoa cresce entendendo, facilita bastante depois. São ensinamentos que ficam para a vida.
As minhas filhas, por exemplo, cresceram na cozinha. Elas faziam as lições de casa sentadas na bancada, e se a professora perguntasse, eu teria que mentir, porque ela dizia que tinha que sentar bonitinho na cadeira, com o corpo todo reto, encostado em uma mesa. Teoricamente, eu estava fazendo errado, mas elas estavam felizes, e era isso que me interessava. Elas aprenderam a conviver nesse lugar que tinha muitas coisas interessantes, mas também alguns perigos. E aprenderam sobre esses perigos.
Um bom exemplo é o forno. Antes de ligar, eu dizia: “Vamos colocar a mãozinha aqui dentro do forno, que está frio. Agora, vamos ligar e vocês vão ver, já já”. Quando voltávamos, estava morninho. E eu ensinava: “Olha como esquentou!”. Aí fechava de novo. Um tempo depois, mostrava que já estava ficando bem quente. E então a criança vai entendendo. Porque não adianta simplesmente falar para a criança que aquilo queima. A cozinha é um laboratório sensorial, e a criança só vai aprender sentindo.
Que impactos você acredita que as heranças culinárias têm?
Acho que são gigantescos, porque são aprendizados. Se pegar a minha avó como exemplo, ou a maior parte das pessoas, elas são cozinheiras caseiras. E na geração da minha avó, não tinha como estudar culinária. Ela aprendeu na vida, com a mãe dela, com a tia dela. São saberes que foram transmitidos pelas pessoas, tradições orais.
Eu aprendi muito de ficar observando ela fazer. Colocava um banquinho no canto e ficava olhando. A minha mãe entrava e falava: “Filha, vai brincar lá fora”. Eu dava uma volta e voltava para lá (risos). E ela falava: “Você precisa tomar sol”. Eu respondia: “Tá bom, depois eu vou”. E voltava para a cozinha.
É incrível saber técnicas e ter tudo cheio de explicações e porquês, eu adoro. Mas valorizo muito as pessoas que podem até não ter a explicação química ou física para determinado fenômeno, mas que têm uma sabedoria imensa ali.
Então, a cozinha é algo vivo, que está sempre em movimento?
É ultravivo! E acho que é um lugar libertador. Porque se você gosta de cebola, coloca mais. Se detesta, põe um pouquinho ou não põe. Isso vale para mil coisas, tem uma liberdade gigantesca. Na confeitaria, você tem algumas coisas que são mais rígidas, porque se você mudar toda proporção, a fonte de calor ou o tempo de forno, aquilo pode não dar certo. Mas mesmo ali, você pode criar.
Por isso é que considero importante estudar, e não é só sobre ir para uma escola de culinária. Conversar com as pessoas é estudar. E então você consegue transformar receitas, você consegue criar um mundo
Você diria que uma boa comida vai além do sabor? O que mais precisa entrar no prato?
Ela vai além do sabor e acho que é interessante porque ela mexe com todo o nosso sensorial. Quando você está aprendendo a cozinhar, acho que precisa virar uma chave. O ponto certo de uma receita não aparece só no paladar. Você aprende a escutar. Então, na hora que você está dourando a cebola, começa a ter um barulhinho característico. Quando você vai dissolver o açúcar em um suco, no começo você sente os grãozinhos, até que eles se desfaçam. A cor dos alimentos muda e o cheiro também.
A cozinha é um lugar que você pode exercitar os senti[1]dos. O primeiro impacto é muito visual e olfativo. Por exemplo, se colocarem uma comida com cheiro ruim, como algo queimado, na sua frente, aquilo não vai ser agradável.
A gente come com os olhos, e tem comida que é naturalmente mais bonita. Mas se a comida é naturalmente mais sem graça, podemos transformar o visual dela. Por exemplo, uma marmita, por mais simples que seja, pode ser organizada para que seja apetecedora. Afinal, ninguém gosta de abrir o pote e estar tudo jogado de qualquer jeito lá dentro. Até aquele mexido que você vai fazer com o que sobrou na gela[1]deira, tenta dar uma graça nele, colocando um verdinho. Vai despertar a vontade de comer. Mesmo que uma comida não seja tão bonita, a gente mostra a beleza dela de uma outra forma. Tem que mostrar o aconchego que ela pode te trazer.
Que comida é capaz de aproximar todo mundo em volta da sua mesa?
Pão é pão! O pão é extremamente agregador. Não precisa ser feito com trigo, há muitas possibilidades. O chocolate também tem esse poder de criar vínculo. E tem comidas que têm muito carinho envolvido, como os bolos. Cheiro de bolo no forno é uma delícia! Também adoro queijo. Então, penso numa mesa com esses quatro. Comidas feitas para dividir. A mesa é um lugar para ser compartilhado e a comida que é de compartilhar tem outra vida.
E se pudesse dar um conselho para quem tem medo de colocar os pés na cozinha, qual seria?
Para algumas pessoas, parece que a vida precisa ser tudo ou nada. E não precisa ser tudo ou nada. Isso se aplica à cozinha. Você não precisa cozinhar todo dia, do mesmo jeito que você não precisa correr todo dia. Você pode correr duas vezes na semana e você pode cozinhar duas vezes na semana. Se você está aprendendo, vai tentar cozinhar um dia na semana e depois no final de semana. É sobre equilíbrio.
E a cozinha é um ótimo lugar para exercitarmos a humildade. Então, comece pelo simples. Cozinhar arroz ou preparar um purê de batatas. Algo que eu sempre falo é que, se você quer aprender a fazer algo, se dedique àquilo. Leve a sério o que você está fazendo, se concentre e siga o passo a passo, que as chances de dar certo são gigantescas. Acredite que você vai conseguir. E, sabe, se a torta que você desenformou quebrar, lembre-se que você não vai morrer por conta disso. Jogo de cintura é muito importante na cozinha.
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