
A obra trata do apagamento e da violência por que passam os corpos e a cultura negra e busca ressaltar sua pluralidade. De que maneira o grupo costurou essa diversidade e quais referências guiaram a narrativa?
Essa diversidade surge de referências vindas de nós, já que dentro do coletivo essa pluralidade é viva. Somos de diferentes zonas do Rio de Janeiro, e também temos uma intérprete de Salvador. Cada um tem mais propriedade num estilo de dança diferente, das danças urbanas/folclóricas às danças acadêmicas. A partir disso, colocamos uma palavra como influência para a criação, “descaminhos”, que extraímos da nossa primeira obra em conjunto Antes dos Descaminhos, pensando em de fato destrinchar as camadas do que é ser uma pessoa preta dentro de uma estrutura racial socialmente estabelecida. Com isso, “descaminhamos” muito durante o processo de criação para poder encontrar essa estrutura que é totalmente mutável a cada lugar que apresentamos.
A dança atua como espelho e catalisador das nossas questões sociais, políticas e culturais. Ela revela que realmente somos um corpo em movimento que resiste.

No espetáculo, as memórias apagadas são liberadas e expressas em cada corpo como espasmos. Como trabalharam a ideia dessa energia reprimida que se liberta e de que forma costuram as trajetórias diversas de dança dos integrantes do grupo?
No nosso processo, trabalhamos bastante a improvisação, porque intuitivamente acreditamos nesse caminho como o mais produtivo para um coletivo que tem muito a dizer quando se movimenta. Criamos uma rotina de encontros mais frequentes (o que não é tão simples para nós devido à nossa realidade hoje), para conseguirmos reconhecer ainda melhor nossas linguagens. Decidimos contar a história do maior contrabando, o maior tráfico que já existiu na história recente do mundo, e, principalmente, dos pretos e pretas na América. Pensando quais elementos da natureza foram explorados para que isso acontecesse. A água e o ar para as embarcações chegarem aqui, a terra que pisamos hoje e o fogo que devastou muito do que é nosso. Nossos corpos já dialogam muito bem – e com muita coerência – ao nos movermos: é isso o que buscamos potencializar.
Como vocês enxergam o papel da dança na sociedade atual e o que ela pode mobilizar ou revelar sobre nossos tempos?
A dança é uma linguagem potente de expressão, resistência e transformação. Mais do que entretenimento ou performance estética, atua como espelho e catalisador das nossas questões sociais, políticas e culturais. Ela revela que realmente somos um corpo em movimento que resiste. Nas danças urbanas, afro-brasileiras, contemporâneas, entre outras, vemos manifestações que reafirmam identidades, valorizam saberes e desafiam as normas impostas. Nas comunidades, por exemplo, dançar é um ato político, uma forma de existir com dignidade e potência. Em projetos sociais, escolas, coletivos e ocupações culturais, ela tem papel fundamental na formação crítica, na autoestima e na inclusão social de crianças, jovens e adultos. Ela educa para o sentir, para o respeito ao outro e para o pensamento criativo, cultivando e revelando frutos para o nosso futuro.

Investigando de onde surge o desejo que faz um corpo se mover, o Afrobunker mergulha nos apagamentos, desvios e ruídos que marcam os corpos pretos em sua caminhada. Nesta, que é a primeira performance cênica do coletivo, os dançarinos acessam suas trajetórias plurais para resgatar espasmos de memória, gestos interditados e histórias ocultadas. Encontrando ressonância na coletividade, seus movimentos se conectam, se cruzam e se acolhem, apontando para um desejo comum de reexistir através da dança. Resultados de descaminhos referentes a muitas vontades deixadas e apagadas, os corpos denunciam os contrabandos históricos a que foram submetidos – de cultura, de saberes, de modos de viver – e insistem em renomear o mundo a partir das suas próprias perspectivas. Para isso, dançam em busca de reviver vontades interditadas e escurecer o que foi clareado à força.
The piece addresses the erasure and violence suffered by Black bodies and culture, while seeking to highlight their plurality. How did the group weave this diversity together, and what references guided the narrative?
This diversity emerges from references within ourselves, since plurality is alive inside the collective. We come from different areas of Rio de Janeiro, and we also have a performer from Salvador. Each of us has deeper grounding in a specific dance style, from urban/folk forms to academic ones. From there, we chose a word to guide the creation: “mispaths”, drawn from our first collective work Antes dos Descaminhos [Before the Mispaths]. Our aim was to unravel the layers of what it means to be Black within a socially established racial structure. In doing so, we “mispathed” a lot throughout the process, until arriving at a structure that is entirely mutable depending on where we perform.
Dance acts as a mirror and catalyst for our social, political, and cultural issues. It reveals that we are, indeed, bodies in movement that resist.

In the piece, erased memories are released and expressed in each body as spasms. How did you work on this idea of repressed energy finding release, and how did you weave together the diverse dance trajectories of the group’s members?
Improvisation was central to our process, because we intuitively believe it is the most fruitful path for a collective with so much to express through movement. We established a routine of frequent rehearsals — not an easy task given our realities — to better recognize our languages. We decided to tell the story of the greatest contraband, the largest trafficking in recent history, especially of Black men and women in the Americas. We also reflected on the natural elements exploited to make this possible: water and air for the ships to arrive, the earth we walk on today, and the fire that devastated much of what was ours. Our bodies already communicate intensely and coherently when we move, what we seek is to amplify that.
How do you see the role of dance in today’s society, and what can it mobilize or reveal about our times?
Dance is a powerful language of expression, resistance, and transformation. More than entertainment or aesthetic performance, it acts as a mirror and catalyst for our social, political, and cultural issues. It reveals that we are, indeed, bodies in movement that resist. In urban, Afro-Brazilian, contemporary, and other forms, we see manifestations that reaffirm identities, value knowledge, and challenge imposed norms. In communities, for instance, dancing is a political act — a way of existing with dignity and power. In social projects, schools, collectives, and cultural occupations, dance plays a vital role in critical education, self-esteem, and social inclusion of children, youth, and adults. It teaches us to feel, to respect others, and to think creatively, cultivating and revealing outcomes for our future.
Investigating the origin of the desire that sets a body in motion, Afrobunker delves into the erasures, detours, and distortions that mark Black bodies along their journeys. In this debut collective work, the dancers tap into their plural trajectories to retrieve spasms of memory, forbidden gestures, and silenced histories. Resonating in collectivity, their movements connect, cross, and embrace, pointing to a shared desire to re-exist through dance. As mispaths tied to erased desires resurface, the bodies denounce the historical contraband to which they were subjected — of culture, of knowledge, of ways of living — and insist on renaming the world from their own perspectives. They dance to revive forbidden desires and to darken what was forcibly whitened.
Utilizamos cookies essenciais para personalizar e aprimorar sua experiência neste site. Ao continuar navegando você concorda com estas condições, detalhadas na nossa Política de Cookies de acordo com a nossa Política de Privacidade.