Epidemia de solidão 

30/09/2025

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Será que nunca estivemos tão sós? No século 21, quando o individualismo atinge novos contornos devido ao contexto socioeconômico, político e cultural, a solidão acendeu um alarme. Tornou-se uma palavra recorrente nos sites de busca, em pesquisas de comportamento, em rodas de conversa e, principalmente, objeto de estudo na área da saúde. Em novembro de 2023, a Organização Mundial de Saúde (OMS) declarou a solidão como uma epidemia global, uma ameaça à saúde física, psicológica e emocional de pessoas em todo o mundo. Com isso, a agência criou a Comissão Internacional para Conexão Social, cujo objetivo, em dois anos, é tornar essa questão reconhecida e dotada de recursos como prioridade global de saúde pública. 

“No Brasil, dados da Pesquisa Nacional de Saúde e do Estudo Longitudinal da Saúde dos Idosos mostram que praticamente metade das pessoas com 50 anos ou mais relata sentir solidão pelo menos ocasionalmente, aproximadamente uma em cada seis enfrenta solidão frequente. Fatores como sexo feminino, baixa escolaridade, morar sozinho, apresentar problemas de saúde ou depressão aumentam a probabilidade de solidão contínua”, descreve a psicóloga e professora da Universidade de São Paulo (USP) Deusivania Vieira da Silva Falcão. Esse quadro mostra, segundo a especialista, que iniciativas de diferentes setores da sociedade precisam ser postas em prática. “Esse conjunto de evidências deixa claro que a solidão não é apenas um estado emocional incômodo, mas um fenômeno complexo, com repercussões diretas sobre a longevidade. Combatê-la exige tanto ações individuais quanto políticas públicas capazes de fortalecer redes de apoio e promover conexões humanas significativas”, defende.  

Para o psicólogo, escritor e colunista Alexandre Coimbra Amaral, cada um de nós também precisa se questionar sobre comportamentos que reforçam o estado de solidão. “Por que tanta gente se sente tão solitária, em meio a multidões que se juntam em redes? As redes, que começaram se chamando ‘sociais’, viraram ‘redes solitárias’? Numa época tão narcísica, em que a selfie é a metáfora mais cotidiana de nosso desejo de sermos vistos, os olhos estão cansados de ver e de não serem vistos? Como fazer as pazes com a sociabilidade, com a amizade, com o amor entre pessoas íntimas? Como deixar de ser uma ilha e voltar a se sentir mais à vontade com a companhia e a intimidade?”, interroga.  

Neste Em Pauta, Falcão e Amaral discorrem sobre as nuances da solidão, seus efeitos sobre a saúde da população e possíveis caminhos de enfrentamento a essa epidemia global. 

Nós em meio à epidemia de solidão 
Por Alexandre Coimbra Amaral 

A solidão é um quebranto que pode se esconder em máscaras muito bem aceitas. Temos sido experientes em fazer cascas que escondem solidões, mas que no fundo escancaram o sofrimento das pessoas como um espelho ingrato, que as acompanha como uma segunda pele. Como em uma filmagem de selfie, o protagonista imagina que conversa com este outro além-tela. Pode imaginar milhões, e de fato estas multidões podem existir, embora não consigam ser garantia de qualquer companhia. Não há horizonte compartilhado no diálogo, há monólogos.   

Pessoas palestram diante de telas, como se acompanhadas estivessem. Cada vez menos testemunho alguma garantia de que este entrelaçamento seja real, inclusive porque fica mais difícil distinguir o real do que é inventado por algum robô. Como psicólogo, sou regido por uma profissão que me diz: escute somente o que te pedem para fazê-lo. Este código de ética me representa sobremaneira: não invado, não busco quem não me busca. Mas sou um tipo de andarilho cujo silêncio é capaz de se sentir à distância. No fundo, há gente. E gente é história viva, silêncio é linguagem, entre mim e os outros há uma teia de vida que se liga com o coração, com a mente e com o corpo todo.   

Dessa maneira, venho percebendo a solidão como fera que devora mais do que o razoável. Percebo-me, inclusive, entristecido por tanta solidão à volta, como se o mundo tivesse passado a ser um monte de gente ilhada, conectada à multidão com a facilidade de um sinal de internet, mas com o coração estando mais ímpar que o primeiro número além do zero. Como dois jovens amigos de uma empresa de tecnologia, que moram juntos em uma quitinete de menos de trinta metros quadrados em São Paulo, e que quase não se falam, dividindo as prateleiras da geladeira, o wi-fi e o silêncio de três samambaias.   

Como as pessoas que se cadastram em aplicativos de relacionamento e insistem em curtir inúmeros perfis que lhes interessam, mas que por alguma razão oculta até delas próprias desistem de continuar para além do “oi, tudo bem?” na conversa privada. Como os membros de grupos de WhatsApp que se mostram como “amigos de tanto tempo que se reencontram”, e cuja pobreza comunicacional não consegue ir além do parabéns pelo aniversário, memes e figurinhas trocadas para preencher um tanto do constrangimento de não ter o que dizer, de fato. Como um paciente que me contou uma história de um happy hour da empresa, em que todos se sentiam parte da conversa e ele se escanteava, bebendo mais do que gostaria, sem conseguir se inserir, indo embora à francesa sem que ninguém notasse sua falta.   

Como um amigo que me contou, uma certa feita, que ia à padaria comprar um único pão francês, por não ter com quem dividir o café da manhã. Ele comia o seu pão solo enquanto via as outras famílias vivendo nos apartamentos, se perguntando como tinha terminado daquela maneira. Como um motorista de aplicativo que escuta conversas de todos, sem poder interagir com ninguém, como se fosse um arremedo de pessoa. Como pessoas que planejam viagens sozinhas, buscando roteiros insistentemente, mas que não conseguem tempo livre e factível para tomar o rumo da estrada que desejam. Como um pescador que um dia me disse que não consegue mais se sentir em paz no meio do mar. A solidão não se esconde somente em meio à vertigem da aceleração contemporânea. Ela tem a cara também dos abismos que se firmaram entre vínculos humanos desde que o fenômeno da polarização política se radicalizou no Brasil. 

O cenário é pouco animador em sua temporalidade – não parece ter fim tão breve. Em novembro de 2023, a Organização Mundial da Saúde (OMS) decretou que a solidão é uma urgência de saúde global. Foi a primeira vez que se deu este tipo de ênfase a um problema que tem a aparência isolada, e aparentemente única, em quem sofre, mas que estamos sendo convidados a percebê-lo como um evento que colapsa o bem-estar de todo o planeta.   

Nomear a solidão como uma epidemia é entendê-la como fenômeno que já deixou de ser parte de uma idade específica (poderíamos pensar somente nos idosos), de uma determinada região do planeta ou de um tipo de circunstância temporária. A solidão se globalizou, atravessou fronteiras geográficas e temporais, virou um dos resultados de uma vida isolacionista. Estamos desconfiados uns dos outros. O isolamento nos encurrala, enquanto corremos os dedos em aplicativos que prometem o diálogo incessante com centenas de pessoas. Ao chegarmos em casa, é fácil que muitos se sintam sem ter a quem recorrer em caso de alguma agonia mais incômoda.    

De fato, há gente de toda raça, cor, idade, credo, lugar de origem, condição socioeconômica, sexualidade, gênero e corpo, experimentando esta condição como um final da linha (não da mesma forma): “não consigo compreender completamente como cheguei aqui, e tenho menos lucidez ainda para imaginar como reagir a essa força que me consome”. Parte das pessoas que sentem a vida dessa maneira pensam na morte como uma forma de dar fim a todo o sofrimento. Falar de solidão é falar de perda de sentido em uma história que precisa de energia e colaboração dos outros para ganhar cor. Acelera-me o coração saber que ainda falamos muito pouco disso, como se o problema fosse isolado. E você já entendeu que não estou falando somente sobre quem se sente num mar de solidão, em um naufrágio da companhia bem vivida. A solidão contemporânea é sobre nós todos, tentantes eternos em compreender um tempo que se ergue em fundações que se esfarelam muito antes de ganharem solidez. A solidão e o encontro são partes de nós, humanos, e deste século específico, em que estamos construindo biografias possíveis entre o sonho e o tempo.    

Por que tanta gente se sente tão solitária, em meio a multidões que se juntam em redes? As redes, que começaram se chamando “sociais”, viraram “redes solitárias”? Numa época tão narcísica, em que a selfie é a metáfora mais cotidiana de nosso desejo de sermos vistos, os olhos estão cansados de ver e de não serem vistos? Como fazer as pazes com a sociabilidade, com a amizade, com o amor entre pessoas íntimas? Como deixar de ser uma ilha e voltar a se sentir mais à vontade com a companhia e a intimidade? A conversa que une solidões a encontros parece ser demorada.  Não há esconderijo eficaz para o desejo de pertencer, de ser reconhecido e percebido como uma pessoa que vale a pena existir em meio ao caos.   

O que não podemos, jamais, e sobretudo neste tempo, é desistir da presença real, honesta, sem intermediação de telas, em que os cinco sentidos se fazem vivos. Solidão se trata com olhos úmidos, pele abraçando alegrias e dores, cheiro de colo de vó, gosto de comida compartilhada. Solidão é sintoma de falta daquilo que é essência, íntimo conhecido de nossa alma, muito antes de tudo se transformar numa certa virada de milênio. Ailton Krenak tem toda a razão: diminuir os vários níveis de distância entre os corpos não é somente uma forma de adiar o fim do mundo, mas também de dar um fim inadiável às solidões. Que possamos pisar suavemente sobre a Terra, como Krenak nos ensina, numa disposição amorosa com a existência, fazendo de cada ato banal a antítese da solidão que precisamos nos desensinar a viver.   

Alexandre Coimbra Amaral é mestre em psicologia pela Pontifícia Universidade Católica do Chile (PUC-Chile), psicólogo, palestrante, consultor de saúde mental em empresas, escritor, podcaster de Cartas de um terapeuta, e colunista da revista Crescer (Globo) e do portal Lunetas (Instituto Alana). Atuou como psicólogo no programa de televisão Encontro com Fátima Bernardes, da Rede Globo, e hoje participa de diversos programas de TV, na internet e em podcasts. Autor de quatro livros, entre esses Toda ansiedade merece um abraço (Paidós, 2023).  

Um desafio que atravessa gerações 
Por Deusivania Vieira da Silva Falcão 

“Muitos anos depois, perceberíamos que vivíamos nossos próprios cem anos de solidão.” Não na Macondo criada por Gabriel García Márquez (1927-2014), uma cidade fictícia, isolada do mundo e marcada por amores, perdas e silêncios, mas nas nossas metrópoles apressadas, entre ruas lotadas e apartamentos silenciosos. Cercados de telas que prometem conexão, afastamo-nos de diálogos genuínos. Entre notificações e agendas lotadas, faltam tempo, valores e disposição para relações significativas. Solidão não é apenas estar só, mas sentir-se só, invisível, mesmo na multidão. É a experiência subjetiva de perceber que os vínculos disponíveis não satisfazem as necessidades de afeto e pertencimento.  

Diferente do isolamento social, que é uma condição objetiva, identificada por fatores como manter poucos contatos presenciais ou participar raramente de atividades coletivas, a solidão é vivida por quem pode estar cercado de pessoas, mas sem se sentir conectado. O sociólogo estadunidense Robert Weiss descreveu dois tipos principais de solidão. A solidão emocional ocorre quando faltam vínculos próximos e íntimos, como um parceiro ou amigo de confiança. Já a solidão social está relacionada à ausência de uma rede mais ampla de relacionamentos e de oportunidades de participação comunitária. Essas formas podem existir separadamente, mas muitas vezes se sobrepõem e se intensificam, sobretudo em períodos de perda ou de grandes mudanças na vida. 

O fenômeno atravessa todas as idades, contextos e culturas. Entre os mais velhos, porém, tende a estar associada a eventos marcantes, como a morte de cônjuge, familiares ou amigos, e a problemas de saúde que limitam a mobilidade e reduzem as oportunidades de interação social. Pesquisadores destacam que a solidão é multifacetada e não pode ser medida por um único parâmetro. Enquanto alguns estudos recorrem a escalas padronizadas, outros utilizam perguntas diretas sobre a frequência com que a pessoa se sente só. Essa diversidade de métodos contribui para a variação dos resultados encontrados nas pesquisas. 

A intensificação dessa “epidemia silenciosa” reflete mudanças nos arranjos familiares, enfraquecimento de vínculos comunitários, transformações no trabalho e uso crescente de tecnologias. Polarização política, preconceitos e desigualdades estruturais fragilizam a coesão social e aumentam o risco de solidão, sobretudo entre grupos historicamente marginalizados. A menor participação em espaços coletivos e a cultura do individualismo reduzem as oportunidades de apoio mútuo. O chamado paradoxo da conectividade evidencia que o uso passivo e excessivo de redes sociais está associado a maior isolamento, enquanto o uso ativo e intencional pode fortalecer autonomia, bem-estar e até saúde cognitiva. Videochamadas, grupos virtuais e atividades online podem enriquecer vínculos, mas, quando substituem o contato presencial ou se tornam compulsivas, tendem a intensificar a desconexão. 

A Organização Mundial da Saúde (OMS) reconhece a solidão como problema emergente de saúde pública. Evidências mostram que ela aumenta o risco de ansiedade, estresse e depressão. Pessoas idosas solitárias têm mais chances de desenvolver transtornos mentais, ideação suicida e morrer prematuramente. A pandemia de Covid-19, ao impor distanciamento social, reforçou esse quadro, evidenciando a relação entre solidão e sofrimento psíquico em diferentes grupos, incluindo profissionais de saúde.  

Revisões internacionais indicam que os impactos físicos da solidão podem ser tão prejudiciais quanto os do tabagismo, da obesidade ou do sedentarismo, incluindo maior risco cardiovascular, comprometimento do sistema imunológico, distúrbios do sono, maior vulnerabilidade a infecções, declínio cognitivo e risco elevado de demência. Uma revisão sistemática com meta-análise, publicada em 2025 e reunindo estudos de diferentes países, identificou maior prevalência de solidão entre mulheres idosas e entre aquelas que vivem em instituições de longa permanência. 

No Brasil, dados da Pesquisa Nacional de Saúde e do Estudo Longitudinal da Saúde dos Idosos mostram que praticamente metade das pessoas com 50 anos ou mais relata sentir solidão pelo menos ocasionalmente, e aproximadamente uma em cada seis enfrenta solidão frequente. Fatores como sexo feminino, baixa escolaridade, morar sozinho, apresentar problemas de saúde ou depressão aumentam a probabilidade de solidão contínua. Esse conjunto de evidências deixa claro que a solidão não é apenas um estado emocional incômodo, mas um fenômeno complexo, com repercussões diretas sobre a longevidade. Combatê-la exige tanto ações individuais quanto políticas públicas capazes de fortalecer redes de apoio e promover conexões humanas significativas. 

O reconhecimento desse fenômeno tem inspirado ações no mundo. O Reino Unido criou uma Estratégia Nacional e um Ministério da Solidão; o Japão adotou políticas para enfrentar as “mortes solitárias” e investiu em projetos intergeracionais. Em uma visita ao Japão, conheci uma instituição de longa permanência integrada a uma escola, com refeitório e atividades compartilhados, promovendo vínculos e reduzindo barreiras etárias. A atmosfera era de solidariedade entre as diversas gerações: crianças e adolescentes ajudavam as pessoas idosas nas refeições, enquanto elas, por sua vez, ensinavam jogos e compartilhavam histórias. Fiquei com a nítida impressão de que aquele espaço não era apenas um lugar de cuidados, mas de vida em comunidade.  

Na área da saúde, a “prescrição social” vem ganhando força, permitindo que médicos encaminhem pacientes para atividades culturais, grupos de interesse e ações de voluntariado, reconhecendo que conexões humanas podem ser tão terapêuticas quanto intervenções medicamentosas. No Brasil, embora ainda incipientes, há iniciativas promissoras, como grupos de convivência em unidades de saúde, programas de visitas domiciliares, atividades promovidas pelo Sesc, cursos de inclusão digital e universidades abertas ao público 60+. Esses espaços fortalecem redes de apoio e oferecem o sentimento de pertencimento.  

Mas combater a solidão exige mais do que políticas públicas e programas formais. É também um convite a uma mudança de hábitos e de cultura. Significa resgatar a importância de estar presente de forma genuína, escutando, olhando nos olhos e partilhando momentos sem pressa. Significa criar e conservar laços que resistam às distâncias físicas e emocionais. Pequenos gestos, como visitar um vizinho, ligar para um amigo ou convidar alguém para um café, podem parecer simples, mas constroem pontes invisíveis capazes de fortalecer o sentido de viver. 

Se a solidão é uma epidemia, o antídoto não está apenas na presença física, mas na conexão com sentido: sentir-se visto, ouvido e valorizado. Essa é uma responsabilidade coletiva. No fim, o que nos mantém vivos não é apenas o ar que respiramos, mas os vínculos que cultivamos. E talvez a pergunta mais urgente seja: quantas vidas poderíamos salvar hoje apenas nos fazendo presentes?  

Deusivania Vieira da Silva Falcão é professora associada da Universidade de São Paulo (USP),com pós-doutorado na área de psicogerontologia pela University of Central Florida, nos Estados Unidos. Psicóloga e mestra em psicologia social pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB), palestrante e podcaster do Viver Podcast. Presidente (2024-2026) da Associação Brasileira de Psicogerontologia. Publicou vários artigos científicos em revistas nacionais e internacionais, além de livros na área de psicologia do envelhecimento, sendo A família e o idoso: desafios na contemporaneidade (Papirus, 2010), laureado com o Prêmio Jabuti. 

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