
Diretor e roteirista de Homem com H, Esmir Filho encontrou em Ney Matogrosso um protagonista das questões que movem seu trabalho desde o início da carreira (foto: Sergio Santoian)
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POR DIEGO OLIVARES
A vontade de desafiar convenções e de se expressar por meio da arte são os pontos em comum entre o multiartista Ney Matogrosso e o cineasta Esmir Filho, diretor e roteirista de Homem com H, filme que levou mais de 600 mil pessoas às salas de exibição entre a sua estreia, no início de maio, e metade de junho, antes de chegar ao catálogo da plataforma de streaming Netflix. Para contar a história de um dos principais cantores da música brasileira, reconhecido por sua personalidade transgressora, Esmir Filho voltou a temas recorrentes de sua filmografia. “Quando essa história chegou até mim, vi que ela dava continuidade a tudo que eu já tinha falado no audiovisual: pulsão, corpo, desejo, descoberta, afetividade, relação pai e filho”, conta.
Aos 42 anos, o diretor celebra o maior sucesso de sua carreira até hoje. Um caminho que começou a ser pavimentado no início dos anos 2000, quando se formou na Faculdade de Cinema da Fundação Armando Alvares Penteado (FAAP) e realizou os primeiros curtas-metragens: Alguma coisa assim (2006), que ganhou o prêmio de melhor roteiro no Festival de Cannes de 2006, e Saliva (2007), indicado para representar o Brasil no Oscar de 2008.
Seu primeiro longa-metragem, Os Famosos e os Duendes da Morte (2009), foi vencedor do Festival do Rio, em 2009, e selecionado para a competição oficial da Berlinale (Mostra Geração 14+) e do Festival de Locarno. Ganhou prêmios de melhor filme, direção e crítica nos festivais de Havana, Valdivia, Gramado e Guadalajara, além de ter entrado em cartaz nos cinemas da França, Japão e Portugal. Sempre interessado por diversos formatos, já trabalhou com o streaming, televisão (incluindo a série Filosofia Pop, do SescTV), realizou o espetáculo multimídia Kollwitzstrasse 52 (2012) e é um dos criadores do fenômeno da internet Tapa na Pantera, com a atriz Maria Alice Vergueiro (1935-2020), curta que viralizou no YouTube em 2006.
Neste Encontros, Esmir Filho compartilha suas inquietações e inspirações, além de revelar detalhes sobre o processo criativo de Homem com H. “Cheguei até o Ney dizendo que queria fazer com que as pessoas saíssem do cinema com vontade de viver, inspiradas para poder subverter em defesa da autenticidade delas. Acho que ele se encantou por isso, sabendo que a sua história tinha esse potencial. E aí se aproximou. Eu tinha certeza de que o Ney ia gostar”, orgulha-se.
CONTAR PARA RECONSTRUIR
Tenho uma memória remota do meu pai me contando histórias para dormir. Só que ele começava a contar e eu o parava para reconstruir a história. Ele falava: “O personagem abriu a porta e chegou em uma casa”. Aí eu dizia: “Não, pai, ele não chegou em uma casa, ele abriu a porta e chegou na lua. Conta para mim”. Aí ele continuava: “E daí, chegou na lua, encontrou um amiguinho…”, e eu retrucava: “Não, ele não encontrou um amiguinho, encontrou vários coelhos…”.
Acho que daí veio a minha grande paixão por recriar e reconstruir um mundo para poder dialogar. Porque eu faço cinema para conversar com as pessoas. Os meus filmes são as minhas teses emocionais e sensoriais. É a forma que eu desenvolvi para falar com o público. Lançar ideias, sensações, perguntas.

“Eu faço cinema para conversar com as pessoas. Os meus filmes são as minhas teses emocionais e sensoriais. É a forma que eu desenvolvi para falar com o público.”
(foto: Sergio Santoian)
FACES DA JUVENTUDE
Eu era bastante jovem quando fiz meus primeiros curtas, estava nos meus 20 anos. Acho que era um eu mais puro, no sentido de, realmente, dar voz a uma angústia, a questões da sexualidade. Acho que você percebe que virou um adolescente quando chora sozinho pela primeira vez. Porque a criança não chora sozinha, ela chora perto dos outros, ela quer mostrar ou pedir alguma coisa. Agora, quando você fecha a porta do quarto e chora sozinho, você virou um adolescente. Você toma contato com as suas dores e parece que ninguém te entende. Então, essa descoberta do íntimo sempre me encantou. E eu acho que isso reverberava no meu cinema: a intensidade e a sensorialidade que eu podia apostar com imagem e som para mostrar essa intensidade do jovem.
PRIMEIRO VIRAL
A gente brinca que o Tapa na Pantera é o vovô do YouTube, porque é o precursor dessa viralização de vídeos. Todo o processo foi muito orgânico. A Maria Alice Vergueiro [atriz (1935-2020)] tinha feito o meu primeiro curta em 16 milímetros, que se chama Ato II Cena 5 (2004). Eu gostava muito dela no teatro, é a dama do teatro brasileiro. Eu, Rafael Gomes e Mariana Bastos [codiretores do curta] fomos à casa da Maria Alice realizar um vídeo, que tinha outro roteiro, para o Festival do Minuto. Mas ela atendeu a gente já com aquela roupa [do Tapa na Pantera] e, enquanto a gente montava a câmera, aquele personagem começou a surgir de uma brincadeira e a gente continuou. Quando a gente enviou o curta para a seleção de festivais, alguém colocou no YouTube. Nós nunca soubemos quem foi. A partir daquele momento, as pessoas começaram a visualizar, e replicar. Por isso, eu digo que conheci o YouTube por meio do meu próprio curta. E, a partir daí, a gente entendeu, na pele, enquanto autor também, o que era viralizar: era algo que não dependia de nós.
INQUIETAÇÃO COMO INSPIRAÇÃO
Sinto que, como artista, estou sempre com a antena aberta para questões que me afetam. Porque eu acho que, se alguma coisa está me afetando nessa sociedade em que a gente vive, alguém também está inquieto. Você não está sozinho. Isso eu acho que aprendi depois de muito tempo até entender coisas sobre a minha vida íntima. Porque tem um momento ali que a gente cresce achando que algumas coisas só estão acontecendo com a gente. E daí, percebe que não, que os outros também sentem essas mesmas coisas. E que a nossa questão, como ser humano, é a comunicação. Acho que a partir dessas inquietações, quanto mais íntimo, mais universal. Então, acho que tem muito a ver com o estudo, a entrega, a sinceridade com o seu vetor de desejo, com o que você quer falar como criador. A história do Ney Matogrosso é um ótimo exemplo disso. Lembro quando eu estava lendo sua história de vida, ouvindo seus discos, e estava próximo dele, conversando, eu falei: “Espera aí. Essa história é minha também”.
HOMEM COM H
Quando recebi o convite da Paris Filmes para dirigir Homem com H, pensei: se tivesse um artista brasileiro que eu faria a cinebiografia, seria o Ney. Quando essa história chegou até mim, vi que ela dava continuidade a tudo que eu já tinha falado no audiovisual: pulsão, corpo, desejo, descoberta, afetividade, relação pai e filho. Veio o convite com liberdade para criar o roteiro. A primeira coisa que eu fiz foi escutar a discografia do Ney em ordem cronológica, para lembrar a trajetória dele a partir do que ele canta. Aí, li as biografias e o livro Vira-Lata de Raça (2018), que são as memórias escritas pelo próprio Ney. Ele começa esse livro dizendo: “Eu sempre reagi ao autoritarismo”. Eu achava essa frase muito forte. A partir daí, desenhei o recorte de um filme sobre liberdade. Sobre alguém que inspira liberdade. Precisei entender como ele conquistou essa liberdade, porque ela não foi dada. Nós não nascemos livres. Pelo contrário. Você nasce numa prisão social, cada um com a sua. Então, para você subverter, é necessário passar por muitos obstáculos e lutar por esse ponto de vista autêntico e único. Foi o que o Ney fez.
JESUÍTA EM PERFORMANCE
Os produtores queriam que fosse um filme com apelo para o público e, por isso, queriam um nome conhecido como protagonista. Eu, logo de cara, disse que, entre os atores conhecidos, o Jesuíta (Barbosa) exala o perfume do Ney. Tanto que, quando eu contava que estava escrevendo a cinebiografia do Ney, muita gente já falava que tinha que ser o Jesuíta no papel. Então, já havia um imaginário coletivo. Mas como ele tinha muita coisa do Ney dentro dele, o processo foi muito gradual. Fizemos uma imersão em livros, entrevistas e conversas com o Ney. Depois, muita preparação de elenco, para ele viver cada situação que o cantor viveu, em sala de ensaio, porque isso diz muito ao corpo do ator. O processo envolveu aulas de canto, preparação de corpo, dança, nutrição para perder quilos e ficar na silhueta. Além de toda a caracterização e figurino. Aí todo mundo fala que o Jesuíta incorporou o Ney. Na verdade, foi muito trabalho, porque esse “incorporar”, esse “transe”, é se soltar ao atingir o domínio da técnica.

DIÁLOGO COM O PÚBLICO
Se a gente fala só com a gente, não se chega a lugar algum. A gente não dialoga e não transforma. O filme do Ney e o Ainda estou aqui (2024) são dois exemplos muito claros de que você pode entrar na história e se sentir na pele do personagem. Você vive aquela história única, que é política e que está falando sobre existência, compreensão e sobre afeto, que conversa com todos. É saber usar a poesia para fazer com que aqueles que não concordam com você te escutem e te aceitem. Então, quero pensar sobre como eu vou falar para me comunicar com todo mundo. Para fisgar a atenção daquela pessoa que está distraída – para não dizer alienada –, mas que é sensível. Nós somos seres humanos, partimos do ponto de partida que somos sensíveis. Então, como atingir essa sensibilidade no espectador do lado de lá? Por meio da poesia.
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