
* Por Mariléa de Almeida
Afeto é uma palavra que circula no cotidiano muitas vezes como sinônimo de sentimentos positivos e romantizados. Por isso, é comum, quando elogiamos alguém, dizer que a pessoa é “afetiva”. Para a nossa reflexão, gostaria de me deslocar desse uso mais corriqueiro do termo para visualizarmos nas experiências negras a potência política dos afetos. Nas últimas décadas, cada vez mais se reconhece nas Ciências Humanas a importância do afeto ao lado da razão, do cálculo e da estratégia nas múltiplas dinâmicas da vida. Esse tem sido o fundamento teórico central do que atualmente chamamos de virada afetiva. Nos Estados Unidos, desde a década de 1990, e no Brasil, nos últimos anos, a abordagem tem sido usada pelas teorizações feministas e queer. Apesar das diferentes filiações teóricas em torno dessa abordagem há, pelo menos, três convergências que merecem destaque. Primeiro: afetos dizem respeito às afecções que atravessam os nossos corpos e pensamentos; segundo: a rejeição de uma hierarquia entre mente e corpo para a construção do conhecimento; terceiro: há afetos que alargam nossa potência e há outros que a diminuem. Se, por um lado, atualmente a virada afetiva alcançou visibilidade, por outro, podemos afirmar que ao longo da História inúmeras experiências negras evidenciaram como as dinâmicas afetivas e os códigos emocionais são incorporados nos processos de socialização racial. As expressões dessas afecções, por inúmeras vezes, validam a eliminação física ou subjetiva de pessoas negras. Essas experiências materializam uma correlação entre corpo, afeto e política.

Em termos pessoais, a lição mais longeva sobre essa conexão ocorreu dentro de casa. Minha mãe é sacerdotisa de terreiro da Umbanda e, durante minha infância e adolescência, uma vez por semana, o quintal de nossa casa ficava cheio de pessoas que a procuravam para o atendimento espiritual.
Ao serem afetadas, pessoas negras e pobres buscavam conforto espiritual para problemas como desemprego, alcoolismo e adoecimento, mas também horizontes de futuro por meio da busca amorosa, trabalho e estudo. Foi assim que, muito cedo, descobri que sofrer e sonhar estão conectados às condições de existência.
Mais tarde, quando percorri os quilombos do estado do Rio de Janeiro como pesquisadora, adensei a percepção de que grande parte das dores e angústias que ouvi era causada por injustiças sociais naturalizadas com base nas diferenças de raça, classe e gênero. Daí a potencialidade das ações de mulheres quilombolas que, a fim de fortalecer os laços que as pessoas estabelecem entre elas e com o território, mobilizam circuitos afetivos que atravessam a coletividade. Assim, o orgulho de ter nascido no quilombo, o medo de ver seus corpos e territórios sob risco, bem como a raiva diante das violações de direitos, são transformados em agenciamentos políticos. Nesse sentido, o afeto amoroso pela comunidade e pelo território não é um gesto abstrato, mas é materializado por meio de ações contra a máquina de morte. O que aprendi no quintal da minha casa e nos territórios quilombolas? Para continuarmos vivas, estamos fadadas coletivamente ao amor, cujas práticas envolvem cuidados espiritual, mental e material.

* Mariléa de Almeida é historiadora, psicanalista e professora na Universidade de Brasília. Pesquisa como o afeto constitui espaços de vida, projetos coletivos e lutas políticas. É autora de “Devir quilomba: antirracismo, afeto e política nas práticas de mulheres quilombolas
Com o tema Amor e Vida das Mulheres, Mariléa de Almeida é a palestrante de abertura do Maré Delas, evento que traz uma programação potente dedicada ao protagonismo feminino. Este ano, mergulhamos em um tema que atravessa e transforma vidas: o amor como força ativa, criadora e política – capaz de desafiar estruturas, reconfigurar relações e ampliar redes de solidariedade entre mulheres.
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🔗 Confira a programação completa: sescsp.org.br/projetos/mare-delas
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