Incandescente presença 

01/08/2025

Compartilhe:

A genialidade criativa de Candeia, cantor e compositor que elevou a voz pela valorização do samba (foto: Acervo Selma Candeia)

Leia a edição de AGOSTO/25 da Revista E na íntegra

POR MANUELA FERREIRA

Enquanto preparava seu segundo disco, Cartola II, de 1976, o cantor e compositor Agenor de Oliveira, o Cartola (1908-1980), recebeu uma sugestão do seu produtor, o jornalista e escritor Juarez Barroso (1934-1976): o sambista deveria dedicar uma das faixas para uma composição entregue dias antes a Barroso. Uma letra escrita sob medida para o poeta do morro. Ela sintetizava o sentimento de busca interior e a necessidade de se reencontrar e foi assinada pelo cantor e compositor Antônio Candeia Filho, Candeia (1935-1978). Já respeitado na cena musical como compositor de sambas–enredos e de partido-alto, Candeia era um amigo próximo de Barroso. Certo dia, o jornalista lhe confidenciou o delicado momento pessoal que atravessava. Como resposta, surgiu “Preciso me encontrar”, um clássico da música brasileira, cuja beleza dos versos transcende a experiência individual para alcançar um significado universal.   

Encantado com a composição, Cartola decidiu gravá-la numa interpretação que popularizou e consagrou ainda mais Candeia entre os grandes nomes da música brasileira. “Foi uma trajetória curta, mas intensa. Meu pai nunca esteve só, eram muitos parceiros e amigos desde o início. Ele nunca fez nada sozinho na música. Tinha uma visão muito crítica, mas sempre se voltava para o coletivo e para o reconhecimento da cultura do samba”, explica a cantora Selma Candeia, filha do compositor. Antes, Candeia já havia lançado três discos–solo e participado de diversas coletâneas – dele, a cantora Clara Nunes (1942-1983) gravou “Sindorerê”, de 1974, e no ano seguinte, um de seus maiores sucessos, “O mar serenou”.  

MEU TERREIRO, MINHA MORADA
Era 1953 quando Candeia compôs, aos 17 anos, seu primeiro samba-enredo vencedor para a Portela – “Seis datas magnas” –, em parceria com Altair Marinho e incentivado pelo pai, Antônio Candeia, tipógrafo e flautista. Antes mesmo de seu nascimento, o ritmo ditava as reuniões na casa onde cresceu o compositor, no bairro de Oswaldo Cruz, na zona Norte do Rio de Janeiro (RJ). Os encontros resultaram na criação do bloco carnavalesco Vai Como Pode, uma das denominações que a azul e branco teve até ser batizada Portela, em 1935.   

Rodeado de músicos, Candeia aprendia a tocar cavaquinho, violão e pandeiro enquanto frequentava a escola e os compromissos da Igreja Católica, uma exigência da mãe, Maria Candeia. Os aniversários do garoto eram comemorados com roda de samba. Já na juventude, ele se interessou por capoeira, jongo, maculelê e candomblé. Ainda na Portela, a colaboração com o compositor Waldir de Souza, mais conhecido como Waldir 59 (1927-2015), trouxe prestígio à dupla. Uma delas, “Festas juninas em fevereiro” (1955), posicionou a escola em terceiro lugar na competição.   

O VERSO E A LEI
Já em 1957, a parceria originou “Legados de D. João VI”, que levou a Portela ao título de campeã. Para celebrar os 400 anos do Rio de Janeiro, em 1965, eles compuseram “Histórias e tradições do Rio Quatrocentão”, que levou a Portela ao terceiro lugar no carnaval daquele ano. Sem abandonar a música, Candeia ingressou na Polícia Civil, aos 22 anos, como investigador, em busca da estabilidade financeira. Logo ganharia fama de “durão”. Era início da década de 1960, e ele, paralelamente, participava do movimento de renovação do samba, impulsionado pelo Centro Popular de Cultura (CPC) em conjunto com a União Nacional dos Estudantes (UNE).   

Nesse período, ao lado dos cantores e compositores Picolino da Portela e Casquinha (1922-2018), organizou o grupo Mensageiros do Samba que, a partir de 1964, passou a se apresentar no Zicartola, histórico restaurante que funcionou no Centro do Rio e era comandado por Cartola e a esposa, Euzébia Silva do Nascimento, a Dona Zica (1913-2003).  Porém, na saída de uma festa, em 13 de dezembro de 1965, a vida de Candeia mudou drasticamente. Durante uma briga de trânsito, Candeia atirou nos pneus de um caminhão. O motorista reagiu, disparando contra Candeia e atingindo sua medula óssea, paralisando seus movimentos da cintura para baixo. Tinha 30 anos e havia sido aprovado em um concurso para oficial de justiça, mas a condição que se seguiu o obrigou a abandonar os planos.   

EM TRONO DE REI 
Aposentado por invalidez, enfrentou uma profunda depressão e, após o incidente, não queria ser visto ou fotografado usando cadeira de rodas. “Os primeiros anos foram difíceis. Com o tempo, ele voltou a ter autonomia e até dirigia o próprio carro, por exemplo. Ele foi revivendo, reabrindo nossa casa para os amigos”, lembra a filha. Mergulhado na música, Candeia passou a se dedicar integralmente ao samba. Em 1970, lançou Candeia, disco com doze composições de sua autoria, incluindo “Dia da Graça”, reconhecido como uma das mais significativas homenagens à Portela. No ano seguinte, gravou o álbum Raiz, que traz os sambas “Minhas madrugadas”, em parceria com Paulinho da Viola, e “De qualquer maneira”. Nesta última canção, ele usou a imagem da cadeira de rodas como uma metáfora de um rei em seu trono.  

Já em 1975, Candeia finalizou seu terceiro álbum solo, Samba de roda, no qual interpretou composições próprias, além de diversos cantos populares de rodas de capoeira, pontos de jongo e de candomblé, cantos populares de domínio público, como “Capoeira: Ai, Haydê”, “Paranauê” e “Maculelê: Sou eu, sou eu”. Ainda naquele ano, com a criação do grupo Partido em 5, ao lado de Casquinha (Otto Enrique Trepte), Joãozinho da Pecadora (João de Souza Barros), Wilson Moreira, Anézio do Cavaco (Anézio Tavares da Silva) e Velha da Portela (Euzébio do Nascimento), foi lançado o álbum Partido em 5, dedicado ao partido-alto, que recriava o ambiente de uma roda de samba, por exemplo, sem interrupções entre as faixas. A cada novo trabalho, refletia sobre suas vivências, a luta contra o preconceito racial e a defesa da cultura afro-brasileira. “As pessoas dividem as músicas dele em dois momentos: o Candeia em pé, momento em que ele era o compositor da Portela e tinha profissão de policial, e a hora em que ele começou a sentar naquela cadeira e não levantar mais. Era a música do Candeia em pé e a música do Candeia sentado. E as pessoas sabiam qual era de uma época e da outra. Dizem que a do Candeia sentado era mais triste”, afirmou o compositor Paulo César Pinheiro, em depoimento para o documentário Candeia (2018), dirigido pelo cineasta Luiz Antônio Pilar.  

Ao lado do compositor e cantor Cartola (1908-1980), Candeia em apresentação com o Conjunto Nosso Samba, na década de 1970 (foto: Acervo Arquivo Nacional)

VOZES DESCONTENTES
Insatisfeito com a comercialização dos desfiles das escolas de samba, incluindo a Portela que, a seu ver, promoviam o afastamento das camadas populares, que deram origem à tradição dos desfiles, Candeia tomou uma iniciativa. Em 8 de dezembro de 1975, o Grêmio Recreativo de Arte Negra e Escola de Samba Quilombo, ao lado de outros compositores, como Nei Lopes, Wilson Moreira (1936-2018) e Darcy do Jongo (1932-2001). A fundação se respaldou no manifesto crítico assinado pelo compositor, condenando as mudanças que havia observado nas agremiações, seja em termos de samba-enredo, alegorias e fantasias, até a presença de destaques e o tamanho das alas. Na época, a publicação foi ignorada pelas diretorias das agremiações carnavalescas.  

“Eu sou povo. Basta de complicações. Extraio o belo das coisas simples que me seduzem. Quero sair pelas ruas dos subúrbios com minhas baianas rendadas sambando sem parar. Com minha comissão de frente digna de respeito. Intimamente ligado às minhas origens. Artistas plásticos, figurinistas, coreógrafos, departamentos culturais, profissionais: não me incomodem, por favor. Sintetizo um mundo mágico”, escreveu Candeia na carta de intenções do Grêmio Recreativo de Arte Negra e Escola de Samba Quilombo. As cores da escola foram escolhidas por ele, cada uma carregando um significado: o dourado, representando o ouro e uma homenagem à Oxum (orixá cultuada pelas religiões de matrizes africanas, símbolo da riqueza, fertilidade e beleza); o branco, simbolizando a paz e a pureza; e o lilás, cor que Candeia associava à beleza floral e à representação da África. O símbolo adotado foi uma palmeira, em tributo ao icônico Quilombo de Palmares. Hoje a agremiação é administrada por Selma Candeia e funciona como centro cultural voltado a atividades artísticas e sociais.  

MAR DE MEMÓRIAS
Em 1978, as ideias compartilhadas por Candeia naquela carta de intenções foram aprofundadas e publicadas no livro Escola de Samba – A árvore que esqueceu a raiz, em parceria com o professor e escritor Isnard de Araújo (1939-2017). No mesmo ano, lançou o disco Axé! Gente amiga do samba, seu trabalho de maior reconhecimento. Um seleto grupo de artistas abrilhantou o álbum, incluindo a tradicional Velha Guarda da Portela, e as cantoras Dona Ivone Lara (1921-2018) e Clementina de Jesus (1901-1987). Na bateria, o toque especial de Wilson das Neves (1936-2017). A gravação foi marcada por uma batalha contra o estado de saúde debilitado do artista, com instantes de capacidade e outros de vulnerabilidades, nos quais era auxiliado pela esposa, Leonilda, e pelo produtor João de Aquino (1945-2022).   

Candeia faleceu em 16 de novembro de 1978, aos 43 anos, vítima de uma infecção renal, antes que o disco chegasse ao público. Atemporais, suas composições fazem parte do repertório de artistas como Zeca Pagodinho, Martinho da Vila, Paulinho da Viola, Teresa Cristina, Ney Matogrosso e Marisa Monte. O artista foi tema, ainda, do espetáculo musical É samba na veia, é Candeia, encenado pelo Teatro Oficina Uzyna Uzona em 2008. “Ficamos mais de 10 anos sem ouvir as canções do meu pai. Voltei ao [Grêmio Recreativo de Arte Negra e Escola de Samba] Quilombo apenas em 1998. Embora, antes da partida, ele tenha me dito para cuidar de sua obra, também tivemos que renascer para manter esse legado vivo. Hoje meus netos sentem orgulho quando reconhecem o sobrenome que eles têm”, arremata Selma Candeia. 

Na cadência do samba 
Em álbuns, shows e outras atividades, público pode vivenciar a diversidade desse gênero musical 

A sambista Clementina de Jesus em desfile ao lado de Candeia (foto: Acervo Selma Candeia)

O samba é celebrado em diferentes ações do Sesc São Paulo. Além de destaque em shows, espetáculos e outras atividades que compõem a programação das unidades, também é tema de álbuns do Selo Sesc. Entre alguns, o álbum Guerreira (2015), no qual a escritora Esmeralda Ortiz interpreta músicas sobre o poder transformador do gênero e apresenta a faixa “Saudação a mestre Candeia”, pot-pourri de canções que saúdam o compositor, com “Benguelê” (Gastão Viana e Pixinguinha), “Olha a hora Maria” (Candeia) e “Quem Mandou Duvidar” (Padeirinho e Jorge Luiz). Confira alguns discos e documentário dedicados à história do samba: 

SELO SESC  
Tia Cida dos Terreiros (2013)  
Produzido pelo Quinteto em Branco e Preto, o primeiro disco da sambista Tia Cida traz no repertório a tradição e o contemporâneo. Entre os compositores escolhidos, Bororó (1898-1986), Orestes Barbosa (1893-1966) e Candeia (1935-1978).  

Viver Gonzaguinha (2023)  
A obra de Gonzaguinha (1945-1991) recebe homenagem nesse álbum protagonizado pelo sambista Sombrinha, um dos criadores do Fundo de Quintal, acompanhado pelas participações de Martinho da Vila, Elba Ramalho, Criolo, Larissa Luz, Vidal Assis, Yvisson Pessoa e Zélia Duncan. 

Ouça os álbuns nas plataformas de streaming. Mais informações em sescsp.org.br/selosesc 

SESCTV  
Clementina (2019)  
Neste documentário dirigido por Ana Rieper, acompanhamos uma viagem visual e sonora pelas músicas e história da sambista Clementina de Jesus (1901-1987). Com a participação de Nei Lopes, Alcione, entre outros.  

Assista em: sesctv.org.br/doc 

A EDIÇÃO DE AGOSTO DE 2025 DA REVISTA E ESTÁ NO AR!

Para ler a versão digital da Revista E e ficar por dentro de outros conteúdos exclusivos, acesse a nossa página no Portal do Sesc ou baixe grátis o app Sesc SP no seu celular! (download disponível para aparelhos Android ou IOS).

Siga a Revista E nas redes sociais:
Instagram / Facebook / Youtube

A seguir, leia a edição de AGOSTO na íntegra. Se preferir, baixe o PDF para levar a Revista E contigo para onde você quiser!

Conteúdo relacionado

Utilizamos cookies essenciais para personalizar e aprimorar sua experiência neste site. Ao continuar navegando você concorda com estas condições, detalhadas na nossa Política de Cookies de acordo com a nossa Política de Privacidade.