Leia a edição de Dezembro/25 da Revista E na íntegra
POR RODRIGO GARCIA LOPES
ILUSTRAÇÃO CARCARAH
Sextina*: A Tradutora
Ela andava pelo château como um fantasma.
Havia terminado de traduzir o livro
E o perdera. Ela o deixara junto às flores secas,
Em cima do dicionário na janela.
Foi quando sua imagem, no espelho, reapareceu
E a sala encheu-se de relâmpagos.
Esperou um pouco. Mais relâmpagos
Lhe deram o aspecto de uma fantasma
Enquanto contemplava a janela.
Ela serviu-se de vinho branco. Tudo pareceu
Exatamente uma das cenas do livro
Que ela traduzira: Flores Secas
(Seus personagens pitorescos, suas vidas secas).
No devaneio, até se esquecera dos relâmpagos
Quando Blanche Durée apareceu,
Puro osso, branca como a página do livro
Que ela ainda não escreveu, fantasma
Folgada, sorrindo, pairando na janela.
“Palavras”, disse a autora, “não são janelas.
Você deixou as minhas veias secas,
Não foi nada fiel ao traduzir meu livro.
Agora não passo de uma reles fantasma,
Tão fugaz e real quanto esses relâmpagos
Ou a lua nos Alpes que, mais cedo, apareceu”.
E, tão rápido quanto veio, Blanche desapareceu.
Tudo o que ficou foi a janela.
Pensou: “Não serei eu a verdadeira fantasma,
Esta sextina com cheiro de relâmpagos,
Esse dicionário mudo, essas flores secas,
E esse vazio imenso, onde repousava um livro?”
Passou a noite procurando, obsessiva, por seu livro,
Como a suíça que nunca mais apareceu.
E caminhando no escuro do château, entre relâmpagos,
A tradutora olhou para suas mãos, vazias, secas,
E para a chuva tamborilando nas janelas
Como os pensamentos de um fantasma.
Ela dormia quando o livro reapareceu:
Estava na janela, junto às flores secas,
E pairava como um fantasma entre os relâmpagos.
(Château de Lavigny, Suíça, 11/5/2024)
*Sextina: forma criada pelo trovador provençal Arnaut Daniel, provavelmente adaptada. São 39 versos, divididos em seis sextetos e um terceto final. Não usa rimas, mas repete palavras finais em uma ordem específica.

Message in a Bottle
Fale dos pássaros que pairam
acima do mar, em noites azuis,
apenas para serem salpicados
com pérolas de espuma e luar.
Fale dos ventos que escrevem nomes
na areia, das vozes que o recife
abafa em sua garganta de coral:
fantasmas de camaradas, sussurros
que dissolvem-se na névoa salgada.
Fale das estrelas de dia, invisíveis,
Do mar severo como um comandante
Que escuta, ao pé do ouvido,
As primeiras palavras
Do último habitante de uma ilha.

Hino ao Pântano
(Aos pescadores do Pântano do Sul)
Espante o caos & a serpente
roube o ouro do arrebol
Nut, portal do horizonte,
sob as escamas das almas
Meu belo Nilo infinito
Tarrafeando as estrelas
Promessas de céu e terra
lento papiro das ondas
Milhões de dias ainda
Milhões de anos ainda
Tire as estivas da noite
E arraste o barco do sol
Rodrigo Garcia Lopes nasceu em 1965, em Londrina (PR). É poeta, romancista, tradutor, compositor e jornalista. Tem 22 livros publicados e dois álbuns. Seu romance O trovador (Record, 2013) foi finalista do Prêmio São Paulo de Literatura de 2014. Em 2019, seu Roteiro literário – Paulo Leminski, foi um dos três vencedores do Prêmio da Biblioteca Nacional do Brasil para Melhor Livro (Categoria Ensaio Literário) de 2018. Em 2023, a Kotter Editorial, de Curitiba, lançou Poemas coligidos (1983-2020), reunindo seus sete livros de poemas na íntegra. Tem três livros publicados na Itália e um em Portugal. Em 2024, lançou, pela Penguin-Companhia das Letras, Zona e outros poemas, de Guillaume Apollinaire.
Carcarah nasceu em Brasília (DF), em 1979, é ilustrador e ator. Dividido entre as artes plásticas e o teatro, já expôs obras no Brasil e em Portugal. Publicou em revistas, ilustrou livros e CDs. Desde 2008 integra o grupo Cemitério de Automóveis, atuando e produzindo diversas peças teatrais.
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