Le Sacre du Sucre [O Rito do Açúcar] | Bienal Sesc de Dança

02/09/2025

Compartilhe:
Foto: Ernest S Mandap

🇧🇷 🇺🇸

Entrevista com Lēnablou | Coreografia

Quais os pontos centrais levantados por Le Sacre du Sucre?
O espetáculo é um mawonaj (fuga do regime de escravidão) do pensamento, e convida a refletir sobre a intelectualidade e a vanguarda dos nossos ancestrais escravizados. Eu me aproprio da palavra silenciada e a reivindico, através da minha leitura íntima do simbolismo do açúcar, verdadeiro selo da colonização. A obra é construída em torno de três conceitos inerentes à matriz gwoka: O lawonn (círculo) remete a uma sociedade própria dos afrodescendentes, à margem do sistema; o makè-dansè (relação bailarino/tamborileiro) é a metáfora da relação com o outro; e o bigidi, a minha assinatura de escrita coreográfica.

O paradigma da fronteira entre corpo e som se anula, porque aqui ele se inverte: o corpo dançante é um corpo sonoro, e o corpo sonoro é um corpo dançante

Foto: Ernest S Mandap
Foto: Ernest S Mandap

Qual a relação do gwoka e de conceitos como o fap-fap em seu trabalho?
O gwoka é a matriz e a espinha dorsal da minha escrita coreográfica e de sua estética. Uma das chaves de leitura dessa dança é o caos corporal, a instabilidade e a imprevisibilidade do gesto, apoiado por uma descontinuidade temporal. Minha abordagem artística é revelar sua tecnicidade, propor uma ferramenta conceitual para a transmissão, a criação e a pesquisa. Por outro lado, o gwoka me oferece espaço de reflexão teórica sobre a filosofia e a antropologia do Caribe. A máxima guadalupeana bigidi mè pa tonbé (“vacila sem nunca falhar”) cristaliza a corporeidade e o imaginário caribenho. O bigidi é uma prática de movimentos que resistem à derrota dominando a desestabilização. Ela se encarna numa assimetria corporal, numa propensão a privilegiar apoios instáveis do pé, como os calcanhares e as bordas. Essa metalíngua dita a filosofia de vida do neocaribenho na capacidade de adaptação diante do caos e da imprevisibilidade da vida. Já o fap-fap é um conceito que vem da arte culinária e da expertise das nossas mães crioulas, capazes de criar em pouco tempo, com o que têm à mão. Essa é agora a minha maneira de pensar a escrita coreográfica, que integra e aceita a imprevisibilidade, o acidente, o “erro” como um reservatório de criação situado no tempo e no espaço. No meu pensamento, o paradigma da fronteira entre corpo e som se anula, porque no meu espaço (o Caribe), ele se inverte: o corpo dançante é um corpo sonoro, e o corpo sonoro é um corpo dançante. O som e o corpo, a dança e a música são a mesma figura, feita de ruptura, de silêncio-habitado , evitando a verticalidade.

Como você enxerga o papel da dança na sociedade atual e o que ela pode mobilizar ou revelar sobre nossos tempos?
A arte da dança é um dos últimos bastiões em que o sentido humano ainda pode se manifestar e ser preservado, tendo em vista a sociedade atual, que nos leva sorrateiramente a uma desumanização por meio da inteligência artificial. Seu papel é ainda mais fundamental e crucial, pois pode representar um reduto de resistência para afirmar a humanidade. Moldar corpos é moldar mentes: a dança deve assumir seu papel em sua dimensão política, que vai além do sentido artístico e estético. É uma arma milagrosa para reverter as forças das trevas sobre as desigualdades sociais e a destruição da vida.

Foto: Ernest S Mandap
Foto: Ernest S Mandap

Sinopse

Le Sacre du Sucre [O Rito do Açúcar]

A artista guadalupense Lēnablou contorna a história colonial de seu país – que tem no cultivo do açúcar um dos seus principais mecanismos –, refutando a narrativa de dominação e retomando gestos ancestrais. Em cena, propõe um percurso pela sabedoria e pelas criações da população neocaribenha. A artista costura seu espetáculo em torno da matriz gwoka, prática musical e coreográfica guadalupense que valoriza as expressões individuais e o improviso. Acompanhada de outros dois performers sobre o palco, que dançam, cantam e tocam os instrumentos percussivos, Lēnablou cultiva um diálogo entre o corpo dançante e o corpo sonoro. Transita entre cantos e movimentos instáveis, colocando em prática o fap-fap, a arte do imprevisível, uma estética da “harmonia do caos”. Apresenta, assim, uma ode à vida e à liberdade.


🇧🇷 🇺🇸

Interview with Lēnablou | Choreography

What are the central themes raised in The Rite of Sugar?
The piece is a mawonaj — an intellectual escape from the regime of slavery — and invites reflection on the brilliance and avant-garde spirit of our enslaved ancestors. I reclaim the silenced word and assert it through my personal interpretation of the symbolism of sugar, the true seal of colonization. The work is built around three concepts rooted in the gwoka tradition: lawonn (circle), which evokes a society of Afro-descendants on the margins of the system; makè-dansè (the relationship between dancer and drummer), a metaphor for connection with the other; and bigidi, my signature choreographic language.

Foto: Alexandre Boissot
Foto: Alexandre Boissot

The boundary between body and sound disappears — or rather, it reverses: the dancing body is a sounding body, and the sounding body is a dancing body

What is the role of gwoka and of concepts like fap-fap in your work?
Gwoka is the core and backbone of my choreographic language and its aesthetics. One key to understanding this dance is bodily chaos — instability and the unpredictability of gesture — supported by temporal discontinuity. My artistic approach seeks to reveal its technicality and propose it as a conceptual tool for transmission, creation, and research. At the same time, gwoka opens space for theoretical reflection on Caribbean philosophy and anthropology. The Guadeloupean saying “bigidi mè pa tonbé” [stumble but never fall] embodies the Caribbean imagination and corporeality. Bigidi is a practice of movement that resists defeat by mastering destabilization. It emerges in bodily asymmetry and a tendency to favor unstable supports — like heels and the outer and inner edges of the feet. This metalanguage expresses the neocaribbean’s philosophy of life and their capacity for adaptation in the face of chaos and life’s unpredictability. Fap-fap, in turn, is a concept rooted in culinary art — in the expertise of our Creole mothers, capable of creating quickly with whatever is on hand. It has become my approach to choreographic writing: embracing unpredictability, accidents, and “mistakes” as reservoirs of creation situated in time and space. In my point of view, the boundary between body and sound disappears — or rather, it reverses: in my world (the Caribbean), the dancing body is a sounding body, and the sounding body is a dancing body. Sound and body, music and dance, are one and the same: marked by rupture, inhabited silence, and a rejection of verticality.

How do you view the role of dance in today’s society? What can it mobilize or reveal about our time?
Dance is one of the last bastions where human meaning can still manifest and be preserved, especially in a society that quietly leads us toward dehumanization through artificial intelligence. Its role is even more essential and urgent — it can serve as a stronghold of resistance in the affirmation of our humanity. To shape bodies is to shape minds. Dance must take on its political dimension, which goes beyond art and aesthetics. It is a miraculous weapon to confront the forces of darkness that perpetuate social inequality and the destruction of life.

Synopsis

Le Sacre du Sucre [The Rite of Sugar]

Guadeloupean artist Lēnablou sidesteps her country’s colonial history — where sugar cultivation served as a central mechanism of domination  — rejecting the narrative of domination and reclaiming ancestral gestures. On stage, she traces a path through the wisdom and creativity of the neo-Caribbean population. She weaves her performance around gwoka, a Guadeloupean musical and choreographic practice that values individual expression and improvisation. Joined by two other performers who sing, dance, and play percussion, Lēnablou cultivates a dialogue between the dancing and sounding body. She navigates chants and unstable movements, embodying fap-fap, the art of unpredictability — an aesthetic of “harmony through chaos.” The result is an ode to life and freedom.

Conteúdo relacionado

Utilizamos cookies essenciais para personalizar e aprimorar sua experiência neste site. Ao continuar navegando você concorda com estas condições, detalhadas na nossa Política de Cookies de acordo com a nossa Política de Privacidade.