
POR BETHÂNIA PIRES AMARO
ILUSTRAÇÃO CATARINA BESSELL
Leia a edição de AGOSTO/25 da Revista E na íntegra
Ainda nesta tarde comentei com alguns colegas sobre os perigos de se andar de metrô nesta cidade, especialmente às dezoito horas, quando os trens ficam repletos de malandros que se aproveitam da multidão para empreender seus crimes abjetos. Não sou bobo, se ando incólume há quase duas décadas pela linha vermelha em pleno horário do rush é porque desenvolvi uma série de táticas estratégicas. A primeira eu coloco em prática assim que saio do escritório: confiro o travamento da pasta de documentos e a coloco debaixo do braço, bem rente ao corpo. Quero só ver tentarem me arrancar esta belezinha, seria um espetáculo.
Descendo as escadarias da estação, mantenho uma distância razoável das pessoas ao redor e observo o entorno. Já à parede se escoram uns dois ou três malandros, com bonés ao contrário e mãos no bolso, vigilantes. A segurança já foi melhor por estas partes, hoje em dia um cidadão de bem precisa cuidar pessoalmente do próprio pescoço e dos poucos pertences que o magro salário lhe autoriza. Caminho com pressa, como se dominado por um propósito essencial, até me deparar com o volume de corpos que se afunila frente às catracas. Este é sempre um momento sensível, ante a impossibilidade de averiguar cada um daqueles inúmeros rostos – nestas horas valho-me de minha altura considerável e de meu porte masculino, que, embora pouco musculoso, compensa com determinação as deficiências da força. Estou quase do outro lado quando uma mulher tenta me empurrar, a sabidinha; dou um tranco para o lado até senti-la ceder e se desequilibrar, estatelando-se sobre o piso e abrindo um espaço que atravesso rapidamente, sem olhar para trás.
Vou seguindo a corrente que vira à esquerda, um pouco nauseado pelo cheiro de pastéis e pães de queijo que se vendem nos quiosques. Sempre os passo bem à margem, os quiosques nada são além de um reduto de vagabundos, que ali esmolam as moedas do troco suado dos pagantes. Que tantos consigam pular a catraca com esta facilidade é um insulto – com aquele absurdo valor da passagem seria de esperar que tivéssemos algum conforto no trajeto. Olho ao redor, mas não se veem em lugar algum os uniformes pretos dos funcionários do metrô; neste horário mesmo, quando mais se fazem necessários, é que desaparecem, completamente indiferentes aos sufocos da gente trabalhadora que apenas tenta voltar para casa.
Enfim paro diante do vão, sou o quinto da fileira, o trem chega lotado, nesta espera chegam mais e mais corpos que pressionam sem tréguas as minhas laterais. Avanço devagar, irritado com os malditos fura-filas, os dedos que apertam a pasta já escorregadios e pegajosos. Quando as portas se abrem diante de mim, quase sou atropelado; embarco não por vontade própria, mas em razão do fluxo de pessoas que me cercam e me impulsionam. Acotovelo-me até os assentos, todos ocupados, mas ao menos ali no meio, longe das portas, consigo respirar com mais tranquilidade. Venho balançando há uns bons dez minutos ao ritmo das frenagens e arrancadas quando vejo entrar o malandro.

Avisto-o assim que cruza as portas: as tatuagens, o nariz perfurado tortíssimo, as calças folgadas que facilitam esconder os produtos dos crimes, caindo por cima de tênis novos demais, claramente roubados. Ando nesta linha há anos, conheço de cara o tipo desses patifes. O pilantra dá um olhar rasteiro para os lados, certamente escolhendo a próxima vítima. Para logo atrás de uma senhora, a tonta nem percebe.
Tento acompanhar seus movimentos, mas a massa de passageiros me bloqueia a visão; ainda assim, o trajeto deve estar sendo proveitoso, porque depois de cinco ou seis estações o sacana ainda está ali, sempre mudando de lugar e se aproximando um pouco mais. Lá pela décima estação ficamos lado a lado, eu que não vou abdicar de minha posição privilegiada por causa deste sacaninha. Ele tenta vir se encostando, fungando com aquele nariz retorcidíssimo, num solavanco eu me distancio e encaro-o ameaçadoramente – o malandro, surpreendido, tem mesmo a pachorra de parecer intimidado, encolhendo-se para longe.
Afinal se aproxima minha estação de destino, vou me apertando pelo corredor, um olho na saída, outro no malandro, mal chegamos e o tratante dá o bote – aproveita o freio brusco do motorista para se inclinar para trás e tentar me apalpar, como se tivesse tropeçado e buscasse apoio, mas nitidamente atrás da minha carteira, para correr assim que as portas se abrissem. Eu que não lhe darei esse gostinho! Apanho-o logo pela gola da camisa, passo-lhe uma rasteira que o derruba com força no chão e então lhe desfiro um poderoso golpe no meio da cara. O pilantra pede misericórdia, Jesus, eu sou pai de família, já conheço bem as ladainhas desses canalhas, ergo mais uma vez o braço para o segundo soco.
— Quero ver roubar alguém agora, mané!
Saio satisfeito com uma estação de atraso, detrás de mim começam os gritos, o patife uiva que eu lhe quebrei o nariz, até parece, vaso ruim não quebra, e de todo modo mais torto do que já é aquele nariz não poderia ficar.
Bethânia Pires Amaro nasceu em Recife, em 1988, foi criada na Bahia e reside em São Paulo (SP). Seu primeiro livro O ninho (2023), publicado pela editora Record, foi vencedor na categoria contos dos Prêmios SESC, APCA 2023 e Jabuti 2024.
Catarina Bessell nasceu em São Paulo (SP), onde reside, é artista gráfica graduada em Arquitetura e Urbanismo na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP), com um master em ilustração pela Fundação Alberto Mondadori, em Milão, na Itália.
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