ancestralidade é tempo
e pra entender a caminhada,
há de se ter calma
há de se respirar fundo
há de se fechar os olhos
soltar o corpo
e aquietar o coração
para entender a caminhada, é preciso se atentar
escuta…
escuta o que vem de mais profundo na sua respiração
sente o que vem de mais profundo na sua lembrança
imagina uma linha, um fio….
ele está nas suas mãos, mas você não vê o final dele
você começa a caminhar, a seguir esse fio…
ele passa por memórias,
lá tem lugares, tem gente, tem cor, tem cheiro….
o que você vê lá?
a fogueirinha do quintal
o pé de amora
o fogão à lenha
as cartas escritas
as plantas, tão bem cuidadas… lavanda… babosa…. avenca
o lampião na casa de barro
a água correndo
sabe qual é avenca? parece que as folhas estão flutuando no ar
o que você sente lá?
a fumaça do cigarro
o cheiro do roçado
da grama cortada
o tempero da comida que acabou de sair do fogo
o gosto do missô
a terra molhada
o som dos atabaques
o gosto do pavê… a lembrança até do pote, da cor dele na geladeira…
a feijoada….
o cheiro do almoço
quem você vê lá?
a rodopiar no quintal?
os cabelos ao vento
quem tá lá gosta de dançar?
gosta de sorrir?
gosta de escutar?
gosta do silêncio?
silencia e segue o fio
Quem você vê lá?
qual a primeira mulher que você segurando esse fio?
uma amiga?
uma voz que você admira, que gosta de ouvir cantar?
é a sua mãe?
é sua avó?
é alguém que cuidou de você quando você era uma criança?
sorria pra essa mulher
como ela é?
ela é forte?
ela é frágil?
ela forte e frágil?
ela cuidou ou precisava ser cuidada?
quais as dores dessa mulher?
Sorria pra ela
continua seguindo o fio
quem agora tá segurando ele?
é alguém que você conheceu em vida?
ou conheceu só por fotografias?
quem é essa mulher?
o fio não acaba….
quantas outras mulheres aparecessem?
o quão comprido ele é?
imagina que atravessa cidades, atravessa montanha, atravessa o mar, atravessa o infinito
quem é a mulher mais ao longe que você vê?
imagina que com o fio, as mulheres que você encontra no caminho, passam a te acompanhar
quantas agora estão aí com você?
nâo dá mais pra se sentir só, não é?
Imagina então o lugar mais distante, mais profundo…
ali você vê uma mulher… no tempo mais antigo que o seu pensamento pode chegar
é a sua primeira ancestral
licença….
ela te olha,
te recebe
como ela é?
que cheiro ela tem?
como é sua pele?
os seus cabelos?
como é sua voz?
que idade ela tem?
você se vê nela?
lembra do fio?
essa mulher, sua primeira ancestral, tá segurando o final dele
como ele termina?
ele entra na terra?
ele desliza na água?
ele rodopia no vento?
ou ele vira fogo?
estrela? cosmos?
a sua primeira ancestral, segurando o final desse fio, mostrando de onde ele vem…
o que você lá?
o que você sente lá?
nesse olhar profundo,
ao seguir o seu fio,
ao se encontrar no aqui e agora
você olha pro passado, mas também olha pro presente… olha pro futuro
você sabe que tem dor
as que você carrega, as que o mundo te deu, as que os seus antepassados não deram conta de acalmar
você sabe que tem dor,
mas você sabe que também tem força
que tem alegria, que tem desejo,
acalma
confia
o caminhar não é só
olha pra traz, confia
escuta as vozes das suas ancestrais
a sabedoria de quem veio antes,
que abriu os caminho para você
presta atenção nos caminhos que você também tá abrindo
presta atenção nos caminhos que precisam ser fechados
reverencia essas mulheres
elas te contam segredos de como seguir, de como se fortalecer, de como se ancorar
confia
a sabedoria das ancestrais está em nós
“começo, meio e começo…”*
Fevereiro de 2024
Texto escrito por Cibele Mion do Nascimento, técnica de programação e integrante da Comissão Mulheria do Sesc Sorocaba inspirado nos depoimentos de funcionárias do Sesc Sorocaba
*Conceito de Nêgo Bispo (Antônio Bispo dos Santos | 1959-2023), escritor, mestre quilombola, lavrador, formado por mestras e mestres de ofícios.
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